O texto abaixo foi escrito em 2012, e permanecia inédito até hoje. Ele foi revisado, atualizado e publicado em abril de 2022, graças ao interesse manifestado pelo nosso público na crítica de Terror no Estúdio 666. Obrigado pela força, meus camaradinhas!

O delfonauta com certeza já ouviu falar de “filmes trash” ou simplesmente “filmes B”. Todo mundo tem alguma ideia do que é isso, mas são poucas as pessoas que sabem valorizar ou realmente curtir essas obras. Por experiência, no entanto, sei que boa parte dos fãs de cultura pop tem potencial para se divertir muito em filmes B. Assim, caso você ainda não seja versado no gênero, senta aí, pegue um estojo de maquiagem barata, e prepare-se para mergulhar no estilo mais fanfarrão da sétima arte.

UM POUCO DE HISTÓRIA SOBRE FILMES B

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Nos idos de 1930, na era dourada de Hollywood, existia uma cultura de double feature. Sabe como hoje você compra um ingresso para assistir a um filme da Pixar e antes da atração principal tem um curta, que normalmente é mais experimental? Era quase a mesma coisa, mas ao invés de um curta, antes do filme que você pagou para ver era exibido um outro filme. Este era mais curto (normalmente com cerca de 70 minutos) e com um orçamento mais baixo. Estes “aperitivos”, amigo delfonauta, eram os filmes B originais. O nome se refere ao fato de que era o filme secundário, e não aquele que você pagou para ver.

Assim como a Pixar faz hoje com seus curtas, os filmes B eram a forma de os grandes estúdios testarem novos talentos sem incumbir-lhes de tanta responsabilidade. E, assim como a Pixar faz hoje, a venda para os exibidores era casada. Quer mostrar o filmão que vai levar público, caro exibidor? Então precisa mostrar também os “aperitivos”. Porém, assim como acontece com os curtas da Pixar hoje, estas obras começaram a ganhar seu próprio público.

OS FILMES B ORIGINAIS

Estes filmes B tradicionalmente eram do gênero western, mas nos idos dos anos 50, começaram a tender para gêneros mais tradicionalmente nerds, como o terror e a ficção científica. Obviamente, eles sofriam bastante com suas restrições orçamentárias. Monstros que eram claramente pessoas fantasiadas, maquiagem mal feita e atuações toscas eram comuns nessas produções.

As mentes criativas por trás deles logo começaram a perceber que não dava para fazer algo sério se a qualidade técnica não conseguia convencer o espectador a suspender a descrença. E foi aí que “filme B” deixou de ser metáfora para “filme ruim” e se tornou um estilo. O que era necessidade virou técnica.

FILMES B E A PIADA INTERNA

Particularmente, hoje eu gosto de definir um filme B como uma piada interna. Uma brincadeira que só quem fez e quem curte entende. Um filme B hoje sabe que é um filme, e faz questão de não deixar o espectador se esquecer disso. Ele não tenta te “enganar” ou te convencer que aquilo é real. Pelo contrário, ele fica a todo momento piscando para você, como se dissesse “ei, você sabe que tudo que está rolando aqui é brincadeirinha, né?”.

Essa forma de encarar a si mesmo possibilita que um filme B aborde temas mais espinhosos, quase sempre envolvendo sexo e violência.

Existem muitas formas de o filme conseguir isso, e não necessariamente apelando para a metalinguagem. A mais comum é a estética do exagero. Sangue a rodo, tripas, atuações absurdas, explosões apocalípticas quando uma bicicleta atropela um carrinho de cachorro quente… O limite é a criatividade do roteirista e do diretor.

Assim, um filme B hoje pode ser de vários gêneros, mas não interessa se estamos falando de um Testosterona Total, um Sessão da Tarde ou mesmo um de seus gêneros mais tradicionais, o slasher, um elemento sempre está presente: o humor.

O HUMOR NO BIZARRO

O que impede esses filmes de atingirem um público mais mainstream é justamente isso: nem todo fã de cinema compreende que tudo que está lá é “só brincadeirinha”. É o cara que sai da sala durante uma sessão de Mandando Bala reclamando que o protagonista já matou meio mundo (eu vi isso acontecer). Eles não entendem que aquilo é ruim, sim. Mas foi cuidadosamente planejado para estar naquela tênue linha que separa o “simplesmente ruim” daquilo que é “tão ruim que é bom”.

E atingir este ponto não é fácil de conseguir, amigo delfonauta. Exige muito repertório, habilidade, e principalmente bom gosto. Sim, bom gosto. E só para você não poder negar isso, no próximo tópico vamos falar de…

NOMES RELACIONADOS A FILMES B

Tem muito cineasta atual que construiu toda sua carreira em cima da estética e da linguagem dos filmes B. Quentin Tarantino e Robert Rodriguez são os primeiros que todo mundo lembra, provavelmente por causa do seu projeto conjunto Grindhouse, mas também por causa do seu apelo em meio aos intelectuais.

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Como ousa entregar meu segredo, Corrales?

A verdade é que eles já faziam filmes B antes de Grindhouse. Lembra do sangue jorrando na cena dos Crazy 88 em Kill Bill? Ou até mesmo a piada do “eles não são 88 de verdade, só gostam do nome”? Pulp Fiction e Um Drink no Inferno, por exemplo, são típicos filmes B. Pode-se dizer que esses dois diretores fazem “filmes B com pedigree”, que de alguma forma caíram nas graças da elite cinematográfica. Mas tem muita gente boa no meio que faz filmes B mais roots e que jamais concorreriam a um Oscar.

Claro, teve gente que nunca fez outra coisa além de filmes B, como o diretor Roger Corman, ou boa parte dos atores que já trabalharam nos filmes de Tarantino (Pam Grier, a Jackie Brown, vem à mente). Tem também aqueles que começaram a carreira nos filmes B e, assim que puderam, abandonaram o barco. E me refiro a nomes de primeiro escalão como Jack Nicholson, Francis Ford Coppola e o diretor de O Silêncio dos Inocentes, Jonathan Demme. E como esquecer do rei da bilheteria, James Cameron, aquele mesmo, de Avatar e Titanic. Sabe qual foi seu primeiro filme? Piranha II: Assassinas Voadoras.

FILMES B NO MAINSTREAM

O maior exemplo de trueza, no entanto, está naqueles que conseguiram atingir o mainstream sem nunca abandonar a linguagem e o estilo B. Esses são os caras que burlaram o sistema. Fuck the police! Falo de nomes como Tim Burton (e não me limito apenas ao óbvio Marte Ataca, mas a praticamente toda sua filmografia – ele já fez até um filme sobre o diretor Ed Wood) e o multioscarizado Peter Jackson.

Provavelmente você sabe que Peter Jackson começou a carreira fazendo filmes de zumbi fanfarrões e ultraviolentos, como o divertidão Fome Animal. Mas já reparou o quanto dessa estética vazou para O Senhor dos Anéis ou para King Kong? Não, estes dois não são filmes B, de forma alguma, mas sua linguagem característica, planos e estéticas bebem muito dessa fonte. E mesmo assim o diretor levou uma pá de Oscars.

Talvez o exemplo mais claro de “filmes B no cinema mainstream” é o tremendão Homem-Aranha 2. Não vou falar aqui como se fosse novidade que o diretor Sam Raimi começou a carreira com a trilogia B Evil Dead. Você sabe disso. Mas já reparou nessa cena?

OCTOPUS ACORDA!

Dada a história do diretor, é compreensível relacionar a cena a Evil Dead. Porém, toda a estética não é característica apenas do Evil Dead, mas de filmes B em geral. Repare comigo, na ordem:

– A expectativa para o ataque gerada pelo gancho vazio, que outrora prendia os braços mecânicos.

– O primeiro grito da enfermeira, ao mesmo tempo em que a câmera se aproxima.

– Os ataques em que você vê o que está acontecendo pelas sombras (técnica antiga para economizar custos).

– A moça sendo arrastada rumo ao fundo escuro enquanto arranha o chão.

– O médico levantando a serra elétrica acima da mesa.

– A visão do monstro.

Tudo isso, absolutamente tudo isso, não surgiu no Evil Dead. Sim, foram técnicas utilizadas no filme que deu fama cult ao Bruce Campbell, mas é uma linguagem que já existia antes, e que sempre foi ligada ao cinema B. E cá está ela, sendo perfeitamente aplicada em um filme do mais divertido e popular dos super-heróis, provando de uma vez por todas que hoje em dia, filme B é estética, e não sinônimo de porcarias ou de baixo orçamento.

Outro exemplo que vale citar é a carreira de George Lucas, o nerd mor que fez fortuna com duas das maiores criações da cultura pop, Star Wars e Indiana Jones. Pois, embora ambos sejam típicos blockbusters e nenhum deles use elementos tradicionais da linguagem do cinema B, os dois bebem e muito na ambientação dos filmes B antigos. O próprio Lucas reconhece essa influência, atribuindo-a às matinês que curtia em sua juventude. Você há de concordar que Star Wars não é, de forma alguma, cinema da mais alta qualidade. Mas também há de concordar que poucos longas são tão divertidos. E agora você sabe o motivo!

INDICAÇÕES DE FILMES B

Depois de tanta falação, que tal assistir a alguns filmes? O delfonauta mais atento já percebeu a imensa quantidade de links ao longo do texto. Quase todos levam a um filme B resenhado no acervo delfiano de matérias. Porém, tem muita coisa boa e mais desconhecida. Aqui vou indicar três delas. Não são necessariamente os melhores da história, mas são deveras criativos. Eles brincam bastante com a linguagem tradicional dos filmes B e me apeteceram muito. Além disso, são desconhecidos o suficiente para ser praticamente certo que muitos delfonautas não os conhecem.

Eu não sei se eles saíram no Brasil, então não sei dizer se há e quais são os títulos nacionais. O que posso dizer é que todos tiveram lançamento massivo na Argentina e podem ser encontrados sem muita dificuldade em sua próxima viagem pela terra dos hermanos.

1 – Behind the Mask: The Rise of Leslie Vernon

Comecemos por Behind the Mask: The Rise of Leslie Vernon. Este é uma homenagem / análise / quase um trabalho acadêmico sobre o gênero mais comumente relacionado ao cinema B: o slasher.

Aqui acompanhamos uma equipe fazendo um documentário sobre Leslie Vernon, um serial killer mascarado que pretende seguir os passos de Freddy Krueger e Jason Voorhees. Leslie é um sujeito deveras simpático e atencioso, que vai explicar para a equipe do documentário absolutamente todo o simbolismo por trás dos clichês dos slashers. Isso inclui, mas não se limita, aos motivos pelos quais a virgem sempre sobrevive e até por que o vilão nunca pode correr. E você imagina como é difícil parecer estar andando enquanto todos os outros estão correndo o mais rápido que podem?

Os dois primeiros atos do filme focam na preparação para o ataque e nos diálogos desconstruindo os slashers. O clímax é em uma festa cheia de sexo e drogas onde Leslie pretende fazer seu grande debut. É aí também que se torna um slasher gone wrong, onde vemos a aplicação de tudo que Leslie nos ensinou até então. Para completar, o elenco ainda conta com a participação de Robert Englund, o Freddy fuckin’ Krueger em pessoa!

Meio falso documentário, com ingredientes deliciosos, como muita comédia e uma pitada leve de terror, fazem com que Behind the Mask seja não só instrutivo e divertido, mas também o maior sinal de amor e respeito que o cinema slasher já recebeu (sim, eu diria que se compara ao primeiro Pânico nesse aspecto). Se você curte filmes como A Hora do Pesadelo, Halloween ou Sexta-feira 13, é essencial que você assista a este. E, se não curte, é ainda mais essencial, para entender todo o simbolismo que envolve estes filmes tão pouco valorizados.

Este filme recebeu uma continuação, intitulada Before the Mask: The Return of Leslie Vernon, que visa desconstruir sequências, prequências e remakes (o que também lembra Pânico 2). Foi financiado via kickstarter e, dependendo da doação, os fãs podiam inclusive ganhar o direito de serem assassinados no filme. Legal, não? =]

2 – Feast

Um grupo de pessoas está em um bar quando entra alguém dizendo que não podem sair, pois “eles” estão lá fora. Quem são eles? O que são eles? A única coisa que sabem é que quem sair morre. E também não é bom ficar perto das janelas.

Assim como o anterior, este também visa desconstruir o gênero slasher, mas faz isso com menos profundidade e mais diversão. Ao contrário de Leslie Vernon, este não mistura gêneros. É pura e simplesmente uma comédia, cujo nível de aproveitamento vai depender do seu repertório no gênero. Talvez não seja o melhor caminho para você começar a conhecer o cinema B, mas sem dúvida é o filme B mais puro e mais roots do qual tenho conhecimento.

Exemplo de uma piada típica: cada vez que um personagem aparece pela primeira vez, popa um letreiro falando do seu arquétipo e sua expectativa de vida em um filme tradicional. E logo em seguida acontece algo que vai totalmente contra isso. Por exemplo, entra um cara heróico no bar, já dando ordens. Um dos outros clientes pergunta “quem diabos é você?”. Ele olha com cara de macho, a câmera pausa e o texto o apresenta como “Herói. Expectativa de vida: pretty fuckin’ good”. A imagem despausa e ele responde “eu sou o cara que vai salvar sua vida”. Dois segundos depois, ele está morto.

Para quem não entra na brincadeira, tudo parece idiota e sem sentido. Porém, se você sabe como as coisas funcionam em um slasher tradicional e está a fim de brincar, Feast é o melhor exemplo de “filme B” que eu consigo pensar.

Ah, e o elenco conta ainda com o Henry Rollins, do Black Flag; e com Jason Mewes, o Jay do Jay e Silent Bob, interpretando, como sempre, a si mesmo. E a produção executiva tem nomes famosos, como Matt Damon, Ben Affleck e até o mestre do slasher e diretor de Hora do PesadeloPânicoWes Craven.

3 – How to be a Serial Killer

Talvez o mais desconhecido filme da lista, este teve uma distribuição tão limitada que eu sinceramente não sei como diabos cheguei a ele. Mas cheguei, e gostei muito do que vi.

Aqui conhecemos Mike Wilson, um sujeito extremamente simpático, articulado e educado, que por acaso é um serial killer. E ele quer um pupilo, que encontra na figura de Bart (nada a ver com o Simpson). Assim, acompanhamos as desventuras dos dois em meio às altas confusões nas quais eles se metem, intercaladas por divertidíssimas palestras motivacionais explicando detalhadamente cada uma das lições, motivos e recompensas para você perseguir uma frutífera carreira como assassino serial.

Uma comédia descompromissada, How to be a Serial Killer é o que exige menos repertório das três indicações que fiz aqui e, por causa disso, pode ser um bom lugar para começar se você está se aventurando nos filmes B pela primeira vez.

DELFOS KILLS AGAIN… IN SPACE!

E assim, amigo delfonauta, encerro este “pequeno guia” para você se juntar a nós no seleto grupo dos apreciadores de filmes B. Lembre-se, não tem mais a ver com a qualidade nem com dinheiro, mas com a estética, temática e linguagem.

Tem muito filme B que realmente é porcaria, mas tem muita coisa genial que passa despercebida pelo grande público e das quais você, como delfonauta, tem tudo para gostar. Portanto, não se limite aos filmes B com pedigree da dupla Tarantino/Rodriguez. Quando você se abrir para o gênero como um todo encontrará um admirável mundo novo no qual, ao contrário de Hollywood, ainda reina a criatividade.