Notícias de uma tropa de elite particular

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Alfredo, Alfredo de la Mancha, Delfos, Mascote, Alfred%23U00e3o, Delfianos

A fascinação dos milionários por miséria e pobreza é bem engraçada. O cinema brasileiro talvez seja o menos democrático do mundo inteiro e o pouco patrocínio e as leis de incentivo que existem são freqüentemente arrebanhados por grandes produções que contam com atores globais e que têm em sua equipe, via de regra, pessoas que provém justamente da elite econômica (o que é bem diferente da elite intelectual, como a baixa qualidade desses filmes demonstra). Isso fica bem claro ao assistirmos a Tropa de Elite e constatarmos que aquele longo minuto de patrocínios que antecede todo filme nacional está ainda maior. E olha que é uma produção distribuída pela multinacional Paramount, dirigida por um diretor com algum renome e estrelada por um global.

Essa pouca variação na equipe produtora da sétima arte tupiniquim rende também uma pouquíssima variação nos gêneros, devido a uma equação básica. A elite econômica brasileira é fascinada por miséria. Só a elite consegue fazer cinema neste país. Logo, todo filme brasileiro trata de algum tipo de miséria ou de coisas sociais.

Não dá para negar que, desde a popular “retomada”, praticamente todos os longas considerados bons feitos no nosso país tratam de alguma coisa no eixo favela/nordeste/ditadura. Os muito criativos conseguem sair disso e fazer uma comédia sem graça com a maior cara de novela televisiva. Falta ao cinema nacional a criatividade para fazer algo protagonizado, por exemplo, por jovens da classe média. Algo com o qual o público do cinema não fascinado por miséria, mas que gosta desta forma de arte a ponto de perceber o sacrilégio de colocar a Adriane Galisteu como protagonista, possa se identificar. Mas o assunto aqui não é o cinema nacional como um todo, mas dois dos filmes que focam justamente nesse eixo supracitado: Tropa de Elite e Notícias de Uma Guerra Particular.

O primeiro é um filme de ação recente. Talvez o melhor filme de ação feito no Brasil e, assim como os antigos filmes do Schwarzenegger, visa apenas a diversão. Curiosamente, embora se encaixe no eixo favela/miséria/ditadura que infesta nosso nada criativo cinema, se diferencia da maioria deles por ser um cinemão de entretenimento, assim como o grosso da produção Hollywoodiana.

A única coisa que o separa de um filme do Tarantino (que normalmente são até mais violentos) é que sua história acontece por aqui. Assim, não vemos aquela polícia do “você tem o direito de permanecer calado”, mas algo mais próximo da nossa realidade. Polícia sádica e corrupta. Traficantes sádicos com “consciência social” e daí em diante. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Afinal, para todos os efeitos, Tropa de Elite é uma ficção e, assim como toda ficção, tem que ter um quê de realidade para ser crível e poder contar sua história.

Tropa de Elite não tem a menor intenção documental, mas acabou levando as pessoas a pensarem na situação. Que ótimo. Melhor ainda é que conseguiu ser assistido pelo povão, o que é mais do que se pode dizer da imensa maioria dos filmes nacionais que chegam a passar nos cinemas (até porque a maioria nem passa). De qualquer forma, é minha opinião de que ele foi supervalorizado. Ele não me tocou mais do que Sin City, por exemplo, que é tão violento quanto (se não mais), mas tem uma fotografia lindíssima, ao contrário de Tropa, cujas câmeras com mal de Parkinson e closes claustrofóbicos realmente estão longe da estética que considero ideal na sétima arte.

Assim, quando vejo as pessoas discutindo como ele é “um tapa na cara da classe média” e coisas assim, começo a me indagar. Primeiro, o longa não traz nenhuma novidade. Todo mundo sabe que a polícia é violenta, corrupta e abusa do seu poder. Todo mundo sabe que a classe média financia o tráfico. E todo mundo sabe que a vida no Rio está bem próxima de uma guerra civil. Da última vez que estive lá, era comum completos desconhecidos me pararem na rua para me “xingar” de paulistano filho da p*** e em seguida reiterar que “eram de gangue”, como se isso os desse alguma forma de respeito que o dia a dia em sociedade lhes negou. Quando uma cidade chega a esse ponto, realmente começa a ficar difícil continuar chamando-a de “cidade”, e não de campo de guerra.

Segundo: a classe média REALMENTE se viu naquele filme? Particularmente, me identifico muito mais com as situações mostradas em algo como Simpsons e South Park do que com Tropa de Elite. E mais, as situações mostradas nesses desenhos me incomodam e me fazem pensar muito mais (duas características primordiais do humor nonsense utilizado por ambas). Talvez até porque eu mesmo me sinto mais próximo daqueles personagens e de suas atitudes do que de um bando de pessoas sádicas vivendo uma guerra particular.

Notícias de Uma Guerra Particular, doravante chamado apenas de “Notícias”, é um documentário feito pelo magnata João Moreira Salles que, apesar de faturar mais em um dia do que a maioria de nós vai ganhar em uma vida, não parece ter em suas prioridades cinematográficas gastar parte dessa grana no cachê de um bom narrador (aliás, aquela narração que abre o filme é pavorosa e poderia ganhar uma Framboesa de Ouro como a pior da história – parece ter sido falada por um cachorro entediado e com conjuntivite).

Notícias foca mais ou menos na mesma coisa que Tropa de Elite (e todo o restante dos filmes nacionais). Ou seja: favela. Tráfico. Policiais. No caso dos dois filmes, não é a polícia comum, mas o Bope. Claro, os roteiristas de Tropa de Elite devem ter assistido a Notícias, mas tirando algumas “homenagens”, como a cena do pneu queimado e alguns personagens claros do folclore brasileiro (como a polícia corrupta e os universitários de ONG, onde se concentram aqueles que são delfianamente apelidados pelo paradoxo de ricos comunistas), a semelhança entre os dois pára por aí, o que deixa ainda mais curioso os camelôs terem vendido o dito-cujo com a etiqueta de Tropa de Elite 2. Daqui a pouco vai virar uma franquia na linha de Star Wars, com os últimos episódios saindo antes dos primeiros.

Notícias, como o documentário que é, já foi feito justamente para colocar o assunto em pauta, sugerir que as pessoas pensem sobre ele. Mas não é bem isso o que acontece. Poucas das declarações ali mostradas são realmente dignas de nota e nosso amigo da família Unibanco não teve a mesma sorte da qual desfrutou seu colega (aquele da dinastia Meirelles) quando conheceu Gilberto em outro documentário que trata de temas afins. Aliás, será que brasileiro algum dia vai fazer um documentário falando sobre coisas diferentes?

Enfim, Notícias também não traz novidades. Em suas entrevistas, falaram com moradores, policiais e traficantes, e todos seguiram seus clichês até o osso. O policial não sente remorso quando mata suas vítimas. O bandido vai fazer ainda pior quando sair da cadeia e quer ser visto como um Robin Hood verde-amarelo (o que fica claro quando fala que vai roubar de quem tem muito para dar para quem não tem nada). Outro, quando questionado se não tem medo de morrer cedo, responde com o chavão “todos vamos morrer”. Já os moradores falam sobre a vida na favela, a ajuda dos traficantes, o medo da polícia e a fascinação das “cocotinhas” (palavra usada por eles), por guris que andam com armas grandes empunhadas. Ora, mas até aí, todo mundo sabe que os traficantes estão para a favela como os Rock Stars estão para a classe média.

A única entrevista realmente digna de nota é de um fulano que não sei quem é nem o que faz (aliás, o vício dos documentários de mostrar o nome dos entrevistados apenas uma vez já deveria há muito ter sido abolido – ninguém lembra de TODOS lendo o nome só na primeira vez que o sujeito aparece). O incógnito em questão fala coisas bem legais e a que eu mais gostei foi que, assim como os EUA querem fechar a produção do narcotráfico da Colômbia, ele gostaria de ir até lá fechar a fábrica da Colt. E tem toda razão, afinal, armas têm um efeito muito mais devastador na sociedade do que drogas. Mesmo ele, contudo, não fala apenas coisas dignas de nota. Uma de suas frases, “o tráfico promete mais respeito para um jovem do que o que ele teria se optasse por ser um entregador de farmácia”, embora verdadeira, parece anúncio de ONGs feitas de graça por publicitários amadores desesperados por um emprego.

Talvez seja o fato de esse assunto já ter sido excessivamente discutido no cinema nacional o que faz com que tudo que vemos sobre isso tenha um amargo gosto de deja vu. Talvez simplesmente não tenha mais nada a ser mostrado que já não tenha sido exaustivamente feito antes. Os filmes de favela no Brasil estão no mesmo ponto de estagnação que as comédias românticas estadunidenses. Eventualmente, aparece um mais legal (para quem quer exemplos, Tropa de Elite no nosso caso e Letra e Música, no caso dos gringos), mas isso não é o suficiente para salvar o gênero.

Agora saindo dos filmes e falando sobre o que eles abordam, eu tive um professor que foi capaz de resumir bem a situação do nosso país. Segundo ele, no Brasil, os únicos que têm a ilusão de leis são os membros da classe média. Isso porque os mais abastados a compram e a subvertem em favor de seus questionáveis ideais e ainda piores atitudes. Já os muito pobres não são protegidos pela polícia, mas atacados (uma das entrevistadas de Notícias diz que é comum a polícia entrar na casa deles e pegar aparelhos de som e demais produtos adquiridos legalmente). Quando muito, têm que criar a própria lei para sobreviver. Afinal, um trabalho visto como honesto pode não lhes fornecer o mínimo essencial, ao contrário do tráfico, que além da grana, ainda lhes dá mulheres, fama, mulheres e respeito, sem esquecermos, é claro, das mulheres.

É um permanente estado de exceção. Será que um dia isso terá um fim ou será que, como a CPMF, o “provisório” da história vai se tornar apenas motivo de piada? Isso só vamos saber no próximo capítulo. O pior é que esse capítulo pode demorar muito para chegar, já que a situação está praticamente inalterada há tempos.

Amanhã você confere, na estréia da coluna Pensamentos Delfonautas uma outra reflexão inspirada pelo filme do novo tremendão nacional. Não é uma resposta a este texto, como fizemos no debate sobre cotas raciais, pois vai por um caminho bem diferente. Não perca!