A essa altura você já viu o título dessa matéria e deve ter chegado a três possíveis conclusões. Que eu não posso estar falando sério e, portanto, esta é uma matéria de cunho humorístico com aqueles títulos chamativos tão famosos no DELFOS. Ou está pensando que eu enlouqueci. Ou que finalmente revelei ao mundo meu mau gosto cinematográfico.

Eu lhe asseguro que não é nenhum dos casos. Sim, estou falando sério. Até onde sei, ainda não enlouqueci. Não completamente, pelo menos. E meu gosto cinematográfico continua refinado como sempre, com uma dieta sólida de zumbis, filmes gore e explosões.

Então, antes que você me mande para aquele lugar e comece a fazer pipi na minha foto, peço que você termine de ler esta matéria, pois vou dar argumentos sólidos e claros para defender meu ponto de vista. Ao final, se não estiver convencido, aí sim pode prosseguir com a profanação da minha imagem. Nesse meio tempo, passemos ao que interessa.

M. NIGHT SHYAMALAN E EU

Delfos, M. Night Shyamalan
“Quer dizer que eu tô morto o tempo todo?”

Conheci o diretor de origem indiana, creio, da mesma forma que todo mundo, ao assistir a O Sexto Sentido no cinema no já distante ano de 1999. E, como todo mundo, adorei o filme. Como fã de quadrinhos de super-heróis, chapei ainda mais com Corpo Fechado, até hoje meu favorito de sua filmografia, e virei fã do cara. Gosto até mesmo de seus trabalhos posteriores, que passaram a ser duramente criticados e, é verdade, começaram a apresentar alguns defeitos graves, não estando à altura dos dois longas supracitados, dos quais quase todo mundo gosta.

Acho Sinais e A Vila divertidos e eficientes como suspense e até A Dama na Água, sendo uma fábula (longe de ser um dos meus gêneros favoritos) tem lá seus predicados. O negócio para mim só começou a degringolar mesmo com Fim dos Tempos. Lembro que, ao assisti-lo, pensei algo como: esse cara está jogando sua carreira no lixo. Está virando uma piada e é uma pena, pois ele é um dos melhores diretores recentes de cinema de entretenimento puro.

O Último Mestre do Ar foi o último prego do caixão. Sua credibilidade parecia totalmente perdida mesmo trabalhando com Will Smith em Depois da Terra, outro filme ruim de doer. Para completar a desgraça, ele ainda foi se meter num subgênero que eu, particularmente, abomino, o terror found footage. Assisti A Visita por mera questão de completismo e nada mais.

Se ele tivesse feito escolhas melhores, hoje poderia estar ocupando a posição e o prestígio que um Christopher Nolan desfruta, só para dar um exemplo de diretor de puro cinemão hollywoodiano. E sim, quando falei exatamente isso na reunião delfiana secreta, todos os outros me olharam da mesma forma que você está me olhando agora. Mas já me estendi demais. Agora sim vamos logo ao que importa, os argumentos!

5 – UM FILME RUIM NÃO É SINÔNIMO DE DIRETOR RUIM

Delfos, M. Night Shyamalan
A Vila é só alegria.

A maioria das pessoas (e com isso, me refiro principalmente ao público médio do cinema) geralmente pensa que, se um filme é ruim, o diretor automaticamente também o é. Alguns pensam até que a culpa pela ruindade é única e exclusivamente do diretor. E isso simplesmente não é verdade.

Sim, é possível um mau diretor arruinar uma produção inteira ou um bom diretor, numa fase ruim, fazer besteira. Todo grande diretor tem ao menos um longa que gostaria de apagar (ou o público gostaria) de sua filmografia. Mas geralmente muitos outros fatores são envolvidos nessa equação. Não vou me estender muito sobre essa questão porque isso já é um outro assunto totalmente diferente e pode até render uma nova matéria só sobre isso em um futuro próximo.

Voltemos ao tema deste texto, o desprezado M. Night Shyamalan. Ele dirigiu pelo menos dois grandes longas, O Sexto Sentido e Corpo Fechado (este eu considero seu melhor filme). Tudo que veio depois foi duramente criticado e esculachado tanto por crítica quanto por público (embora Sinais tenha sido um sucesso de bilheteria). Vou entrar na onda, deixar minhas opiniões pessoais de lado, e considerar por um instante, junto com a esmagadora maioria, que o resto de seus filmes é de fato ruim. Consigo fazer isso numa boa. O que eu não consigo é dizer que o motivo disso é ele ser um diretor sem qualidade. Isso, meus muitos anos como cinéfilo, e também minha formação acadêmica na área, não permitem.

Delfos, M. Night Shyamalan
Night tentando justificar o injustificável.

Trata-se de fazer uma análise amoral e aprofundada, separando cada aspecto que forma um filme. E se os aspectos que influenciam negativamente na qualidade de um filme nada têm a ver com a função do diretor, logo, um filme ruim não é sinônimo de diretor ruim.

A má qualidade dos filmes de M. Night não necessariamente é ligada a seu talento atrás da cadeira principal. Dois argumentos muito utilizados nas críticas: ele repete sempre a mesma fórmula. E as histórias ficaram cada vez mais absurdas e cheias de furos de roteiro.

Advinha só, isso tem muito mais a ver com a função de argumentista/roteirista que com a de diretor. Tudo bem que ele costuma escrever os próprios filmes, logo, a culpa ainda é dele. Mas dele como criador de histórias, e não como contador. É outro departamento completamente separado.

4 – ELE SABE DIRIGIR ATORES

Shyamalan é um bom diretor de atores. Diga o que quiser, mas, na maioria de seus filmes, a interpretação não é um problema. Bruce Willis está fantástico em Corpo Fechado e O Sexto Sentido e Mel Gibson teve seu último bom papel em Sinais antes de endoidar completamente.

https://www.youtube.com/watch?v=JFu11ilRsOE

Os elencos de A Vila e A Dama na Água também estão bem afinados. Ok, Mark Wahlberg e Zooey Deschanel estão horríveis em Fim dos Tempos. Convenhamos, ele também não faz milagre. Ninguém consegue afinar esses dois.

3 – ELE É ÓTIMO DIRETOR DE ATORES MIRINS

Delfos, M. Night Shyamalan
“Vai por mim que eu vou te deixar bem na fita!”

Outra característica típica de um diretor acima da média é o trato com atores mirins. Crianças são notoriamente difíceis de se lidar num set de filmagem (eu já tive essa experiência). Dirigi-las em frente às câmeras é pior ainda. Todo mundo do ramo diz que pior que crianças em cena, só animais. Poucos conseguem realmente boas interpretações de crianças. Spielberg é o nome que todo mundo lembra. Shyamalan também consegue esse feito.

Haley Joel Osment é o melhor exemplo. E não, ele não era um gênio da atuação, um talento prodígio. É só ver que ele estourou com O Sexto Sentido, depois fez A.I. sob a batuta de Spielberg e desapareceu sem deixar vestígio por anos, até retornar mais recentemente nos últimos filmes do Kevin Smith. Coincidência? Acho que não.

Do moleque de Corpo Fechado, passando pelos irmãos de Sinais, as crianças em seus filmes sempre mandam muito bem. Menos o elenco de O Último Mestre do Ar, mas isso é a exceção da regra. Provavelmente ele estava desanimado por constatar onde sua carreira foi parar.

2 – ELE SABE CRIAR RITMO E TENSÃO

O indiano sabe construir um filme. Sabe quando deve ir com calma e quando acelerar as coisas. E sabe provocar tensão quando quer. Volto ao exemplo de Corpo Fechado. Se puder, reassista ao filme sem prestar atenção na história e nos diálogos, tente se focar apenas na composição das cenas e em seu ritmo.

Corpo Fechado é uma raridade entre blockbusters hollywoodianos. É inteiramente composto de planos longos, demorados, com movimentos de câmera sutis e delicados. É um filme parado que não deixa transparecer isso. Isso é ritmo, meu amigo. Isso também é estilo, que é assunto para outro tópico.

Delfos, M. Night Shyamalan
“Eu vejo ETs que não suportam água…”

Veja Sinais e ignore a história cheia de buracos (alienígenas invadem um planeta cuja superfície é 70% água sendo que esta é sua única fraqueza? Sério mesmo?). Esse negócio é tenso. É de grudar na poltrona, sendo que não mostra quase nada. Ele usa muito bem do artifício de que a sugestão e imaginação é mais poderosa que qualquer imagem (isso até ele finalmente mostrar um extraterrestre…) e é muito bem sucedido.

A maioria dos diretores atuais simplesmente não consegue usar dessa simples característica, confundindo-a com truques baratos como a trilha sonora que sobe ou o famigerado gato que pula de trás da porta. Eu vi esse filme no cinema. Naquela cena do milharal, quando Mel Gibson vê apenas uma perna do alienígena se escondendo, todo mundo pulou. E, ao que me consta, arrancar uma reação dessas de uma plateia é sempre sinal de missão cumprida.

https://www.youtube.com/watch?v=2YkYyWFycXA

1 – ELE TEM ESTILO, E DOS BONS

Tá, o Uwe Boll também tem estilo e eu não o defenderia como estou fazendo com Shyamalan (bem longe disso). Ter estilo não é sinônimo de qualidade. Você pode ter estilo e este ser uma grande droga. Tony Scott tinha um estilo de filmar inconfundível e eu odiava sua estética. Shyamalan tem estilo, e eu considero dos bons.

Já entrei um pouco nesse quesito no tópico acima ao falar de Corpo Fechado e seu ritmo lento, porém nunca arrastado. Você não vê isso no cinemão de entretenimento estadunidense, apenas nos independentes e nas produções européias. Só por trazer essa outra pegada para o cinema-pipoca, o cara já mereceria respeito. Mas tem mais.

Ele sabe compor ótimas cenas. Esteticamente bonitas e interessantes, mas sem que isso passe à frente do próprio filme e se torne mais chamativo que ele. Volto a Corpo Fechado. Veja essa cena do começo, a partir dos 3:37 (por algum motivo, não consegui colocar o vídeo direto aqui, então clica no link), a câmera passeando entre o espaço nos bancos, Bruce Willis tirando a aliança e te contando muito sobre o personagem sem recorrer a um close de suas mãos. É simples, direto e extremamente eficaz, sem contar muito bacana. Qualquer outro mané faria o feijão com arroz do plano e contraplano com uma tomada geral para contrabalançar.

“Ah, claro, é fácil dar exemplos de um filme bom dele. Quero ver fazer isso com os ruins”. É pra já. Fim dos Tempos, como já estabeleci, nem eu, que defendo todos os seus longas anteriores, gosto. Pois bem, veja a cena abaixo.

https://www.youtube.com/watch?v=l21oSVhvVEk

É ou não é legal? Com a quantidade certa de função para a narrativa e virtuosismo técnico. E, contudo, este filme é, de fato, uma pilha de estrume.

“Mas você está tirando as coisas do contexto. Claro que quase todo filme péssimo tem ao menos uma característica redentora”. Isso é verdade, não estou discutindo isso. Bem como não estou falando sobre música, figurinos ou tonalidade da fotografia, elementos que de fato não fariam sentido nessa discussão. A característica redentora que discuto aqui é justamente o “fator Shyamalan”, tudo que é responsabilidade sua.

Claro, as pessoas normais não vão ao cinema para ver se o cara fez planos de mais de dois minutos de duração ou filmou tudo em ângulos oblíquos. Mas mesmo inconscientemente, esse tipo de coisa acaba sendo absorvido pelo público. Tanto que é sempre melhor assistir a uma produção capitaneada por um diretor com pulso firme e estilo demarcado, do que por um operário padrão, tipo um Brett Ratner da vida, que só faz o básico, com competência, mas sem a menor criatividade.

ENTÃO, AFINAL, QUAL É O PROBLEMA DELE? POR QUE ELE NÃO CONSEGUE MAIS FAZER BONS FILMES?

Delfos, M. Night Shyamalan
“O caminho do sucesso é por ali.”

Já está estabelecido que seu problema definitivamente não é a direção. Mas então por que ele desperdiça seu considerável talento em filmes que ninguém gosta? Bom, eu diria que são por dois fatores interligados: ego e o fato de que ele não é um bom roteirista.

Hollywood costuma inflar o ego das pessoas. Quando ele estourou cedo, com um filme que todos adoraram, e virou um dos mais famosos representantes do seu gênero, todo mundo ficou chamando o sujeito de gênio e ele acreditou. E também acreditou que tudo que fizesse a partir de então seria igualmente bom.

Ele passou a se achar um autor. Como aqueles que colocam seu nome com apóstrofe e “S” antes do título. E por que não? Afinal, ele não só dirige, como cria seus próprios argumentos e escreve os roteiros. Ele controla cada etapa criativa do filme.

O problema é que de fato ele tem competência na direção para fazer praticamente qualquer coisa nessa função. Mas ele simplesmente não é um bom roteirista e seu ego fez com que demorasse a perceber isso. Faltou humildade e autocrítica.

Não só ficou muito tempo preso à fórmula da reviravolta final que ajudou a transformar numa verdadeira praga na época de sua maior popularidade, como parecia que seus filmes posteriores eram construídos inteiramente a partir desse artifício. Uma vez é surpresa, duas passa, a terceira já é forçar a barra, na quarta já encheu o saco. Ele alienou o público com o vício do final surpresa.

Depois seus roteiros foram ficando ainda mais esburacados e absurdos, com criaturas mágicas que saem por um túnel na piscina de um condomínio e pólen assassino levado pelo ar. Só coisa fina! Era como se ele não percebesse essa escalada do ridículo, o que é triste. E, se percebeu, deve ter pecado pela soberba. “Eu sou M. Night Shyamalan, eu surpreendi o mundo com a revelação de O Sexto Sentido. Posso escrever qualquer tranqueira e o público vai assistir mesmo assim”. Provou-se que isso não era verdade.

Delfos, M. Night Shyamalan
“Eu quero que você vá assistir Vidro!”

O estilo do roteirista se sobressaiu ao do diretor. Ele virou o cara que só faz filmes de suspense com toques sobrenaturais, o sujeito que está sempre tentando fazer o mesmo filme e repetir seu maior sucesso. Faltou diversificar, passear por outros gêneros. Novos ares poderiam ter ajudado a não cansar o público e até ter renovado sua inspiração como escritor.

Quando finalmente parece ter dado o braço a torcer e aceitado que não era um roteirista tão bom quanto pensava e aceitou dirigir um roteiro de terceiros, optou por O Último Mestre do Ar. Isso é que é azar. Isso é que é fazer escolhas erradas.

O RENASCIMENTO SHYAMALÂNICO?

Contudo, após atingir o que eu considero o fundo do fundo do poço com o medonho A Visita, ele parece ensaiar uma volta à velha forma. Fragmentado foi um bom filme. Ainda longe de seus melhores momentos, mas resgatando elementos positivos suficientes para deixar os fãs otimistas.

Claro, muito disso se deve novamente à famigerada surpresa no final. Mas uma que faz, como disse na resenha, que você queira ver novamente o longa imediatamente, agora sob uma nova ótica. São poucas as produções que atingem esse efeito.

Resta saber se Vidro, o final da trilogia, conseguirá devolvê-lo novamente ao panteão dos grandes diretores hollywoodianos. Como fã do cara, torço para que aconteça. E fico curioso para saber o que ele fará em seguida. Estará condenado a repetir os mesmos erros e desperdiçar essa sobrevida? Ou será que ele aprendeu a lição e, com um pouco mais de autocrítica, tentará melhorar suas fraquezas? O tempo (e as bilheterias) dirá.