Torquemada vai ao cinema

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Sugestionado por maliciosos, porém respeitabilíssimos colegas de trabalho, me vi diante de pernicioso exercício: assistir a uma projeção em cinemascópio. Falaram-me sobre incríveis efeitos visuais criados por computadores, sobre belíssimas moças que protagonizavam mui virtuosas heroínas em cavalheirescas aventuras. Falaram-me sobre o quão prazeroso e lúdico seria aventurar-me neste mundo de fantasias. Como conhecem minha infinita propensão à tolerância a novos hábitos, aderi à empreitada. Propus-me assistir a uma película criada pela mesma casa que concebeu um dos mais falaciosos ícones da cultura infantil: aquele que vive cometendo atentado ao pudor, o desrespeitosamente sem-calças Pato Donald.

Seguindo recomendações, dirigi-me a um daqueles templos do consumismo moderno, baluartes da expropriação do trabalho das classes menos favorecidas: um shopping center. Certamente que chegará um dia em que esses monstros serão convertidos em bastiões das causas populares, tomados por famintos porém revolucionários cidadãos de bem privados de seus mais básicos direitos. Sonho com isso; no entanto, voltemos ao cinemascópio.

No âmago do monstro, deparei-me com as tais salas de projeção. Um grupo de pessoas, muito ruidosamente, amontoava-se naquela localidade. Por um fugaz instante, acreditei haver ali alguma possibilidade de decência: avistei algumas famílias. Pensei quão gratificante seria minha estada neste local. Afinal, famílias felizes e sorridentes como aquelas que povoam os comerciais de margarina são sempre o prenúncio de alegres folguedos. Ledo engano, caros colegas. Meu martírio estava apenas a começar.

Dirigi-me ao local destinado à compra de entradas e logo fui atingido por um garotinho portando um recipiente gigantesco contendo pipocas que exalavam um cheiro insuportável. O pequenino deixava pelo chão atrás de si um rastro de seu nada saudável alimento. Persegui-o com o olhar na esperança de que fosse severamente repreendido por seus pares por comportamento tão inadequado.

Para meu espanto, ao chegar no local onde se reuniam seus familiares, entregaram-se todos vorazmente a retirar do recipiente, sem qualquer higienização prévia das mãos, aquele gorduroso alimento. Aaargh! Que visão terrível. Isso daria náuseas em qualquer pessoa asseada! Gargalhavam, diziam coisas sem nexo, e trocavam toda a sorte de imundícies enquanto se alimentavam. Consumindo avidamente bebidas gaseificadas, os mais jovens entregaram-se a uma estapafúrdia disputa: venceria aquele capaz de emitir o mais significantemente sonoro arroto. As famílias felizes converteram-se em selvagens urbanos. Quanta ingenuidade a minha. Que mais poderia esperar em tão degradante ambiente? Se o DELFOS é o Grande Satã da internet, sem dúvida os shoppings o são do mundo offline.

Pois bem. Iniciada a projeção, tudo o que vejo é mais uma tentativa de ludibriar as mentes. Um pequenino e verborrágico automóvel vermelho assume lugar de destaque numa historieta cuja mensagem principal é disseminar a idéia da supremacia dos moradores das grandes cidades cosmopolitas sobre os moradores das cidades interioranas. Trata-se claramente de uma tentativa de menosprezar o legado da gloriosa Revolução Russa. Senhores, no esplendoroso ano de 1917, os camponeses russos assumiram as rédeas de seu país. Camponeses revolucionários que, em minha desafortunada sessão de cinemascópio, foram reduzidos a um guindaste velho e enferrujado, com visíveis comprometimentos em suas faculdades mentais.

É inadmissível, senhores, que os camponeses sejam retratados de maneira tão jocosa. É inadmissível que os camponeses necessitem dos préstimos de um bólido cosmopolita com um incontrolável espírito competitivo e capitalista para fazer parte de um momento vitorioso. Não, senhores! Os camponeses foram vitoriosos por suas próprias idéias. Inspirados no mártir revolucionário Vladmir Lênin (que gloriosamente ilustra a coluna de hoje), fundaram uma nação pautada pelo igualitarismo, pela fraternidade, pela ausência do espírito consumista propagandeado por nossos vizinhos imperialistas do norte. Por isso, presto aqui minha singela homenagem a esse bravo ideólogo da revolução. Quanta altivez inspira seu retrato. Quiçá o fará também nas mentes poluídas e depravadas destes nerds satanistas que misturam mulheres com alimentos!

Imaginem, senhores, o tamanho da minha frustração. Claramente, fui vítima da malícia de meus companheiros que me pregaram uma peça. Expuseram-me a uma situação ridícula. Logo eu, propenso às novas experiências e defensor da tolerância aos hábitos e crenças alheios. No entanto, que poderia eu esperar?

Demonstremos altivez, senhores. Perdoemos as almas menores. Fui vítima de um truque, quiseram ridicularizar-me. Compartilho com vocês minha penosa experiência. Compartilhem, senhores. Compartilhar é o caminho mais seguro para se ter uma visão divina.