Heavy Metal: Revolução feita por tradicionalistas

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O Heavy Metal é, em todas as suas subdivisões, um dos mais preconceituosos e herméticos estilos musicais. São vários os fãs que se acham revolucionários e dotados de senso crítico diferenciado apenas por escutar um estilo tido como marginalizado pelo sistema (denominação genérica típica de posers revolucionários). Claro que a última afirmação tem seu fundo de verdade – basta verificar a programação da mídia musical jabazenta e a paupérrima divulgação de shows do estilo para constatar que o Metal nunca foi um chamariz comercial. Porém, é verdade também que o preconceito e o conservadorismo dentro dessa vertente do Rock se equiparam à discriminação fomentada contra ele. Ou seja, grande parte dos headbangers é hipócrita: combate a intolerância ao mesmo tempo em que a pratica, muitas vezes de forma bem mais radical.

Ao longo dos anos, são vários os exemplos dessa prática perniciosa. O Iron Maiden, maior ícone do Rock pesado depois do Black Sabbath, sofreu ataques tanto da mídia especializada (?) quanto dos fãs mais xiitas quando lançou, em 1986, o hoje clássico Somewhere in Time. Diziam, os arautos da verdade absoluta – que esquecem o caráter extremamente emocional e, portanto, individual da música – que a Donzela estava mais comercial (outra nomenclatura supérflua e genérica que se tornou um escudo para os fãs mais tradicionalistas quando suas bandas preferidas inovam) por usar guitarras sintetizadas e por incluir o teclado de forma mais contundente nas canções. Não compreendiam que a banda procurava uma válvula de escape para, simultaneamente, renovar-se e manter sua essência. Muitos dos que criticavam a banda à época são os mesmos que hoje classificam o álbum supracitado como item obrigatório na discografia básica de qualquer headbanger que se preze.

Outra polêmica carregada pelo grupo até hoje é o guitarrista Janick Gers. Tido pela maioria ortodoxa (e aqui eu me incluo nela) como um instrumentista inferior aos inquestionáveis Dave Murray e Adrian Smith por, em apresentações ao vivo, assassinar solos originalmente compostos pelo último e por, em estúdio, utilizar timbres mais sujos e agressivos do que aqueles consagrados na fase oitentista do grupo. Toda essa aversão reside na formação musical de Janick, que é mais calcada no Hard Rock simples do que no Heavy Tradicional. Por isso, essa repulsa deve ser depositada em quem o escolheu para integrar uma banda cujo estilo não combina perfeitamente com a sua concepção musical mais despojada, típica de um Rock ‘n’ Roll descompromissado. E nem venha dizer que você não aceitaria um tentador convite como esse.

Mais um exemplo explícito do tradicionalismo inerente ao estilo é a incapacidade dos headbangers de aceitar a radical mudança de ares de um dos melhores vocalistas da história, o ex-Helloween Michael Kiske. Após ter deixado a banda alemã em 1993, no qual já tentava incluir a sua nova mentalidade musical, Kiske colocou a sua vontade e a sua liberdade musical acima das conveniências mercadológicas do Heavy Metal. Ousou mais do que qualquer banda do estilo, tocando um Pop Rock honesto, oriundo da alma, sem amarras. Por meio de declarações sinceras e, consciente do seu papel como músico, Kiske revelou toda a sua decepção com uma indústria musical dominada pelo capitalismo selvagem, que consagra bandas robóticas e fabricadas e despreza aquelas que valorizam o sentimento e a liberdade artística.

Para Kiske, são raros os fãs que verdadeiramente valorizam a criatividade e que compreendem as suas inovações musicais. Ainda segundo ele, grande parte dos metaleiros é gente de cabeça fechada, que não consegue apreciar outros estilos musicais, o que já foi, inclusive, abordado aqui no DELFOS. Assim, esse extraordinário músico e ser humano reacendeu uma discussão ao mesmo tempo antiga e atual: o que é mais desonesto e comercial? Construir uma carreira sem inovações dentro de um estilo um tanto quanto marginalizado ou ser versátil e passear por estilos diferentes e mais acessíveis? Fico com a primeira opção. Quando uma banda constrói uma carreira respeitável, mas burocrática porque carece de arrojo (como o AC/DC e o Motörhead), ela se acomoda numa base de fãs formada ao longo dos anos que, inevitavelmente, comprará tudo o que a banda lançar, independente da qualidade do trabalho. Além disso, o grupo corre um sério risco de estuprar sua criatividade em nome da segurança financeira, o que a torna engessada e vai de encontro ao propósito de ser músico, ainda mais de Heavy Metal.

Outra banda que causou “indignação” no meio Heavy foi o Metallica, com o lançamento do Load e do Reload. A banda havia mudado não só no quesito musical, mas também na indumentária e no logotipo, que já não transmitia a agressividade de outrora. Os bangers mais apressados logo os chamaram de traidores e se perguntavam se aquele era mesmo o Metallica que havia concebido a obra-prima Master of Puppets. E era sim. Para falar a verdade, os dois álbuns mencionados são bastante honestos e refletem fielmente o momento conturbado que a banda vivia. Drogas, bebidas, problemas familiares e o sucesso repentino contribuíram para a formação da atmosfera sombria presente nos discos. Musicalmente falando, Load e Reload (que deveriam ser um álbum duplo) são discos pesados, cheios de feeling e mais experimentais. E essa última palavra, junto com a supervalorização da questão estética – que, para muitos, tornou-se mais crucial do que a música em si – incomodou os batedores de cabeça sem causa, que não se dão ao trabalho de pensar o Heavy Metal, mas querem apenas curti-lo.

Há ainda tantos outros exemplos de experimentações que causaram aversão aos bangers. O próprio Metallica, quando lançou o Black Album (talvez o mais bem pensado disco da carreira da banda, já que conseguiu conciliar acessibilidade com o peso e a agressividade inerentes ao grupo), em 1991, dividiu opiniões. Os admiradores de longa data, baseando-se na ótima repercussão mercadológica capitaneada pela famigerada MTV (emissora dona de uma necessidade mórbida e efêmera de eleger e descartar superastros de tempos em tempos de acordo com as suas convicções financeiras), dizem que o declínio começou nessa época. Estes fãs, que reprimem a ousadia ao mesmo tempo em que abraçam a segurança, quase nada têm de revolucionários. Por isso, não conseguem compreender que o Black Album foi um projeto extremamente arrojado, com o objetivo claro de expandir a sua legião de fãs e de, conseqüentemente, popularizar (termo odiado pelos conservadores elitistas) o Heavy Metal. Afinal, ser comercial nem sempre é sinônimo de produzir trabalhos ruins. Ser comercial honestamente é ter a capacidade de modernizar o seu som sem desprezar as suas raízes para, dessa forma, abrir espaço para o Metal na grande mídia, o que é, simultaneamente, o sonho e o pesadelo dos bangers. Quando, apesar da qualidade, determinada banda não consegue uma divulgação e reconhecimento razoáveis nos veículos de comunicação massificados – aqueles mesmos que, desonestamente, tiram onda de imparciais – logo os headbangers se “revoltam” contra essa discriminação. Mas, quando outra banda (como o Metallica, por exemplo) consegue ser valorizada e atinge o estrelato, então os mesmos insurretos torcem o nariz para a banda em questão. Afinal, o que quer essa parte dos metaleiros?

O Slayer com o South Of Heaven, álbum da maior qualidade, foi criticado quando do seu lançamento apenas por ser menos veloz que o velocíssimo e revolucionário Reign In Blood. O Dream Theater com o “Pop” Falling Into Infinity, o Angra com o “demasiadamente batucado” Holy Land, o Helloween com o “excessivamente experimental” Pink Bubbles Go Ape, o Sepultura com o antropofágico Roots. O que importa para grande parte dos fãs não é o fato de uma banda conseguir inovar e se manter relevante, mas sim de repetir fórmulas prontas que deram certo no passado.

Contudo, as intolerâncias supracitadas são apenas algumas gotas num oceano de preconceitos. Ao visitar os paupérrimos fóruns metálicos, que servem para desmistificar a lenda de que a maioria dos headbangers é gente progressista e de idéias arejadas, é fácil perceber preconceitos relativos a especulações acerca da opção sexual de determinados músicos (quem não já ouviu comentários sobre a possível homossexualidade do Andre Matos devido aos seus antigos agudos estridentes? E a pejorativa transformação do nome Edguy em Edgay apenas por essa banda cultuar a irreverência e a alegria em suas músicas? É até desnecessário apontar o paradoxo de pessoas que se consideram revolucionárias terem preconceitos retrógrados como esses), como se o caráter ou a competência profissional desses indivíduos dependesse de escolhas pessoais, as quais, numa sociedade teoricamente democrática, devem ser respeitadas sem concessões. É a tão comum e nociva inversão de valores, tendência fundamentada na ignorância capaz de priorizar quesitos irrelevantes para estereotipar assuntos de primeira grandeza.

E de onde vem a discriminação acima mencionada? Do machismo, outra perniciosa característica intrínseca ao Heavy Metal. Desde a sua concepção, o Metal é movido por uma necessidade mercadológica de parecer mal, de rejeitar o sentimentalismo diante da racionalidade, mesmo sendo um dos estilos mais emocionais que já existiram. É por isso, certamente, que até hoje os instrumentistas roboticamente virtuosos e frios são mais valorizados do que aqueles que priorizam o feeling à velocidade, o experimentalismo à mesmice. É também por conta dessa imposição financeira que bandas como Helloween e Gamma Ray, que no início das suas carreiras veneravam o bom humor e até a utopia socialista (lembra-se de Future World?), tiveram que passar por um processo de mecanização com o passar dos anos, o que resultou em discos mais introspectivos e pessimistas e o que, em última instância, jogou no lixo a originalidade ideológica desses grupos (compare a capa antiga do Helloween que está aí do lado com a capa mais recente, na nossa galeria de fotos e veja se estou mentindo).

O Heavy Metal nasceu nos subúrbios ingleses e se transformou numa expressão artística de pessoas marginalizadas pela sociedade, oriundos da base da pirâmide social. Hoje, pelo menos no Brasil, é um estilo musical consumido e muitas vezes tocado pela classe média. Como não poderia deixar de ser, esse estrato social transfere para a música todo o seu conservadorismo e seu falso moralismo. Boa parte do público headbanger alimenta uma revolta fútil e localizada, que se expressa apenas no campo emocional. Aquela velha história do “esse cara deve gostar de pagode”, sabe? Como seria bom se esse descontentamento oco fosse canalizado para quebrar a inércia dessa classe social.

É por todas as limitações impostas pelos fãs e, conseqüentemente, pelo mercado, que o Metal tem se tornado um estilo quase imutável e sem fantasias de mudar o mundo e coisas do tipo. As minhas, alimentadas durante os primeiros anos de headbanger, já começam a desaparecer. Só irão sobreviver por conta de uma minoria pensante e verdadeiramente preocupada com os rumos que este fascinante estilo de música e, principalmente, de vida, tem tomado. Por sorte, essa minoria é a maioria dos que freqüentam e escrevem para o DELFOS.

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