Apesar de ser conhecido como o mestre do terror, talvez a maior qualidade da obra de Stephen King seja seu enorme talento para criar personagens tridimensionais, humanos, críveis. Ele retrata como poucos o estadunidense comum do interior e geralmente são esses tipos os protagonistas de seus livros.

Sua segunda grande sacada, após criar tais personagens, é envolver o leitor de tal forma em suas vidas que você passa não só a se identificar com eles, mas sentir quase como se eles fossem parentes ou amigos. Só então, quando você já está apegado a eles, o horror começa. Assim, quando as coisas horríveis finalmente passam a acontecer, você realmente se importa com quem está enfrentando a situação. É mais eficaz, e também mais sádico.

Duma Key é mais um romance de Stephen King a se escorar nas características descritas nos dois parágrafos acima. E, como acontece com alguns outros de seus livros, às vezes a mera construção dos personagens acaba sendo bem melhor do que o terror proposto.

Temos aqui a história de Edgar Freemantle, um empreiteiro que sofre um terrível acidente num canteiro de obras e perde um braço, além de sofrer danos neurológicos. Como parte de seu processo de recuperação, ele se muda para a ilha quase deserta de Duma Key, na Flórida, e passa a pintar quadros como forma de terapia.

Acaba por descobrir um talento impressionante para as artes. Suas pinturas são tão assombrosas que ele não demora a desconfiar que haja algo de sobrenatural por trás delas, ligadas a mistérios antigos que cercam a própria ilha de Duma Key. Sinistro, não?

Delfos, Duma Key

Até que não, na verdade. Praticamente dois terços do livro são devotados à vida de Edgar após o acidente. Sua longa recuperação, a mudança para a ilha, a amizade com um dos poucos vizinhos, a produção dos seus quadros e a descoberta de seu talento pela comunidade artística da região.

Analisando friamente, este livro é um grande novelão. Mas a levada é tão bacana que isso não é nenhum demérito, apenas uma constatação honesta. O que interessa aqui são os personagens e suas relações. Como eles agem e reagem. Claro, há o elemento sobrenatural, mas quer saber? Ele nem de longe é tão interessante quanto as vidas normais do protagonista e seus coadjuvantes.

De fato, quando a história muda o foco para o terror propriamente dito, como era inevitável que o fizesse, decai bastante. Principalmente porque King passa apenas a requentar conceitos já utilizados antes, em trabalhos mais marcantes. Toda a parte aterrorizante deste livro me lembrou de muitos dos elementos usados por ele em A Coisa (ou It, se preferir), por exemplo.

Mas até você se dar conta disso, já era. Você já foi fisgado pela história de Edgar e não importa mais que o desfecho não seja tão legal quanto os dois terços iniciais. Essa é outra coisa na qual King é mestre, requentar e reciclar suas próprias ideias e vícios narrativos de forma que ainda mantenha a qualidade geral do livro e jamais fique parecendo algum tipo de estafa criativa.

Duma Key pode não ser um de seus livros mais marcantes, mas certamente mantém a solidez geral de sua obra. Uma boa leitura, embora mais recomendada para os já mais iniciados em seu universo.

CURIOSIDADE:

– O livro foi publicado no Brasil pelas editoras Objetiva em 2009, Suma de Letras em 2012 e Ponto de Leitura, em formato de bolso (versão analisada nesta resenha), em 2014.