A crise no Senado e a crise de valores

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A crise que há mais de seis meses acomete o Senado, Câmara revisora de grande importância para equilibrar a representação dos estados e onde deveriam ser travados debates no mais alto nível sobre temas fundamentais para o progresso da nação, é, ao contrário do que se pode pensar ao ler e acompanhar o noticiário, reflexo de uma crise muito mais profunda: a crise na sociedade brasileira.

Em uma análise macroscópica – extremamente necessária para desconstruir a idéia bastante propalada de que a política tradicional e sua podridão formam um mundo descolado da realidade do homem comum – o que ocorre em Brasília nada mais é do que o espelho daquilo que presenciamos diariamente no trânsito, nas ruas, nos hospitais, nas escolas e universidades, nos serviços público e privado. A corrupção e o desvio ético e moral se disseminaram de tal maneira que, em terras tupiniquins, a honestidade passou a ser característica dos ingênuos. Vivemos em um país que naturalizou os hábitos e costumes ilícitos.

Dessa maneira, é ilusória a perspectiva de que a simples renúncia ou o afastamento do presidente do Senado, o camalêonico peemedebista José Sarney (talvez o parlamentar que melhor simbolize o que há de pior na política nacional), moralizaria, de forma instantânea, a instituição. A personalização da crise, isto é, a responsabilização e a demonização de um ou de poucos personagens, é maléfica porque atende apenas aos interesses dos que foram forçados a mudar os nomes, mas fazem de tudo para manter o arcaísmo e as práticas patrimonialistas que lhes beneficiaram.

A deliquência – esta é a melhor palavra a ser usada – no Congresso Nacional ou, se preferir, Casa dos Horrores (como argutamente definiu a publicação inglesa The Economist), é, assim como na sociedade brasileira, generalizada. Tucanos, democratas, dissidentes peemedebistas (aqui incluídos Jarbas Vasconcelos e Pedro Simon, cujo mutismo em relação à complicadíssima situação da governadora Yeda Crusius é bastante eloquente) e alguns petistas, todos membros da bancada que condena Sarney e reforça o coro por sua saída, também já foram pegos cometendo pequenos ou grandes deslizes, pecados ou pecadilhos. É, por assim dizer, a bancada da indignação seletiva, como se existisse meio termo em questões éticas. Para ficar só em dois exemplos:

– Arthur Virgílio (PSDB), um dos ídolos da parcela reacionária e udenista da classe média brasileira e um dos mais aguerridos opositores do governo e da tropa de choque sarneyzista, admitiu recentemente ter recebido empréstimo de Agaciel Maia, ex-diretor geral do Senado, quando passou por dificuldades financeiras em viagem ao exterior. Além disso, o sempre vociferante Virgílio é acusado de enviar um funcionário do seu gabinete para estudar artes na Europa à custa do erário.

– Tião Viana, um dos líderes do PT no Senado, partido que antes de chegar ao poder se notabilizou pela defesa intransigente da moral e da correção política, pagou a exorbitante conta do celular da filha com dinheiro público. PT e PSDB. Tão diferentes e às vezes tão iguais.

O Conselho de Ética, por sua vez, que, como o próprio nome revela, deveria prezar pela boa conduta e punir os senadores delinquentes, é, na verdade, um reduto do corporativismo e do compadrio. Seu atual presidente, Paulo Duque (PMDB), é o segundo suplente – isto é, ele não precisou receber um voto sequer para ocupar o cargo que ocupa – do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e fiel aliado de Sarney. Na semana passada, ele fez o que dele se esperava: arquivou sumariamente, como possibilita o regimento da Casa, todas as ações – representações e denúncias – por quebra de decoro parlamentar protocoladas pela oposição contra Sarney. Responsabilidade na edição dos atos secretos? Nepotismo? Tráfico de influência? Desvio de dinheiro da Petrobras para empresas fantasmas ou de propriedade da família? Para o conspícuo senhor Paulo Duque, nenhuma dessas irregularidades infringiu os três princípios básicos norteadores da administração pública: a impessoalidade, a transparência/publicidade e a moralidade. Nada disso merece ser investigado porque denúncias não podem ser baseadas apenas em “recortes de jornal”.

Analistas e cientistas políticos propõem algumas medidas administrativas para debelar a crise e aperfeiçoar as instituições democráticas do país. Sugere-se, por exemplo, para reduzir o comportamento patrimonialista e o fisiologismo – tipo de relação política calcada no pragmatismo em que a cessão de cargos e poder pelo governo funciona como moeda de troca para cooptar partidos e obter favorecimentos – a diminuição do número de cargos comissionados e de diretorias, mudanças na legislação referente aos senadores suplentes (que não precisam prestar contas à opinião pública e, por isso, atuam sem qualquer escrúpulo, em benefício de seus pares), redução dos mandatos dos senadores de oito para quatro anos, financiamento público de campanha e a reformulação do Conselho de Ética para que parlamentares alvos de ações e investigações na Justiça – hoje, 70% dos membros do colegiado têm ficha suja – sejam impedidos de julgar seus colegas.

Tais medidas e outras, como as reformas política e eleitoral, contribuirão sobremaneira, é verdade, para coibir e desestimular falcatruas de todos os tipos e para retirar o Congresso Nacional e, em particular, o Senado, do atual estado de paralisia. Contribuirão, não há dúvida, para acabar com boa parte das regras e das práticas detestáveis que possibilitaram a prosperidade da sordidez, dos oligarcas e dos coronéis. Entretanto, deve-se dizer: essas ações, que dificilmente entrarão em vigor em curto prazo, uma vez que os encarregados de levá-las adiante são os principais beneficiários do sistema político vigente, não são a panacéia.

O problema primordial da política brasileira, por mais doloroso que isso possa soar em um país em que viceja a cultura da transferência de responsabilidade e a excessiva vitimização dos pobres, é o brasileiro que elege e reelege figuras reconhecidamente abomináveis e corruptas, no melhor estilo “rouba, mas faz”. Mais do que medidas saneadoras e moralizadoras no âmbio político-administrativo, o Brasil precisa – para usar uma expressão que está na moda – de um verdadeiro choque de civilidade, educação, decência e compostura em todos os estratos sociais. Porque a representação política, apesar de ser um bom indicador do nível de progresso e cidadania de um país, é só a manifestação mais explícita de um fenômeno muito mais abrangente e preocupante. O Brasil passa, mais do que por uma crise política, por uma crise de valores e princípios. Somos, desde a nossa fundação, um país permanentemente em crise. No trânsito, nas ruas, nos hospitais, nas escolas e universidades, nos serviços públicos e privados e, claro no Senado. A corrupção é endêmica.

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