Roger, Battlefield e a dublagem nos games

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Quando essa notícia quebrada apareceu, eu mal pude acreditar: “Roger falando mal da dublagem de Battlefield Hardline? Mas não foi ele quem dublou o personagem principal do jogo? E se ele prefere a versão em inglês, por que aceitou o trabalho? E por que o Alfredo não me deu minha cota de bacon do mês?” Os questionamentos foram muitos para a minha cabeça, delfonauta.

O problema não foi o Roger pegar o trabalho de toda uma equipe e jogar no ralo, muito menos o fato de que a dublagem dele de fato deixou bastante a desejar. Eu poderia fazer um texto sobre isso, mas não seria de tanto valor por um simples motivo – estaríamos falando do efeito, e não da causa.

A DUBLAGEM BRASILEIRA

Não é novidade para ninguém o quanto é verdadeira a frase “para ser dublador é necessário ser ator”. A arte da dublagem exige muito mais expressão do que a princípio se sugere, pois não basta falar, mas transmitir uma emoção de acordo com o momento. A voz tem que estar de acordo com o personagem, com suas expressões faciais, e junto com esta criar o momento e consolidar a interpretação. E isso faz uma diferença enorme.

E, felizmente, a dublagem brasileira é muito boa. Estúdios brasileiros às vezes ficam tão famosos que se tornam lendas, como o Versão brasileira Herbert Richers ou o Álamo. Além disso, ainda tem as vozes que ficam associadas a um personagem ou ator específico, vide o Superman, o Nicolas Cage, e o maior exemplo de todos: o Scooby-Doo, que ficou mais de 35 anos com Orlando Drummond como dublador (!!!). E, nesse panorama quase perfeito, fico pensando quem foi o primeiro a ter a ideia de trazer famosos para dublar filmes.

OS FAMOSOS DUBLANDO

A primeira dublagem de um famoso que eu me lembro foi a do Shrek. Na época eu era um mísero infante com pouco mais de cinco anos de idade, e achei que a voz do ogro feita pelo Bussunda ficou muito boa. Hoje vejo que o trabalho deixa um bocado a desejar, mas de certa forma eu entendo o uso de famosos na dublagem de animações, pois não atrapalha a experiência dos pimpolhos.

Vamos lá, as crianças não vão prestar tanta atenção em performances fracas, e poder estampar que “famoso X” está no filme atrai, no mínimo, curiosidade.Isso, é claro, pode gerar aberrações como o Luciano Huck em Enrolados, mas também pode trazer boas surpresas, como o Fábio Porchat em Frozen. E, independente disso, as crianças não vão reclamar da dublagem nem se for a voz do Google Tradutor.

Por outro lado, eu não entendo o porquê de se colocar famosos para dublar em mídias voltadas para adultos. É um verdadeiro tiro no escuro que tem muito mais chances de dar errado do que de dar certo. Se ficar bom, tudo bem, mas se ficar ruim, uma experiência inteira é jogada pelo ralo.

NÃO CONFUNDA DUBLAGEM COM VENDAGEM

Dublar, assim como legendar, tem uma finalidade, que a meu ver é tornar viável que todos possam consumir o produto sem que a experiência se perca. O grande problema é que, quando a empresa opta por colocar um nome midiático de performance duvidosa para dublar, está claramente optando por dar preferência a ele em detrimento do produto. Digo isso porque se você quer causar uma real imersão e pretende traduzir o jogo para incrementá-la, você não arriscará fazer uma tradução ruim.

Um grande exemplo disso, para mim, foi Grim Fandango Remastered. O jogo tinha uma dublagem excelente para todos os personagens, exceto para o principal, e a performance nesse personagem foi tão ruim que eu tive que mudar para inglês. Isso melhorou consideravelmente a minha experiência, e penso que, se tivesse jogado em português até o fim, teria gostado – mas com certeza não teria sido tão bom como foi quando mudei para a língua original.

Mas vamos pensar do ponto de vista das produtoras. É claro que há um pensamento por trás que até faz sentido. Colocando nomes famosos, você atrai um público que não consome aquela mídia e expande o mercado, pois sabemos que tem quem ache que videogame ainda é “brinquedo de criança”. Quando você traz nomes famosos, o objetivo é mudar essa mentalidade e vender mais, o que a princípio é uma boa ideia. Mas a pergunta é: você diminuiria a qualidade do seu produto só para aumentar a vendagem?

Você aumenta o alcance que seu produto tem, mas diminuir a qualidade dele para isso é quase tão ruim deixá-lo restrito. Você desrespeita o público que o consome – e aqui eu não me refiro só a quem já é gamer de longa data, pois dublagens ruins são um problema para novos ou velhos gamers -, o que tira a confiança do público tanto no produto como na empresa.

FALANDO DO ROGER

No caso do Roger em Battlefield, uma das justificativas foi que Nick Mendoza, o personagem que o músico dubla, lida com policiais corruptos ao longo da trama, e Roger é conhecido por seu posicionamento político contrário ao governo brasileiro atual. Mas sinceramente? Isso não justifica colocar alguém que não é de uma área para trabalhar nela, assim como eu não posso me lançar no mercado do Rock só porque gosto de guitarra. Se fosse só pelo motivo exposto, o dublador poderia ter sido Wagner Moura, que já fez um policial que lutava contra a corrupção no filme Tropa de Elite – o que faria muito mais sentido e teria muito mais chance de dar certo, pois Wagner é um ator de verdade.

Além do mais, existem outras maneiras de atrair o público com nomes famosos, e o próprio Battlefield: Hardline mostrou isso. Uma das formas de divulgação do jogo foi fazer um vídeo com Marcelo Rezende, conhecido apresentador de programa policial, anunciando o jogo. Esse vídeo ficou muito legal porque aproveita a função do famoso para divulgar o produto, fazendo muito mais sentido do que colocar um não-dublador para dublar.

O pior de tudo não foi o Roger fazer um trabalho ruim na dublagem do jogo, mas também a maneira como ele agiu posteriormente, com as críticas. O músico não só discutiu com gamers via Twitter como também tentou, sem sucesso, iniciar uma discussão com Guilherme Briggs: o dublador havia se posicionado contra a atitude de Roger de discutir com os gamers e recebeu do músico respostas desproporcionalmente agressivas.

Vendo toda a reação desencadeada pela dublagem do Roger, a impressão que eu tenho é que a Warner (distribuidora do jogo no Brasil) já esperava algo do tipo. Roger apenas agiu da maneira que sempre age, discutindo e criando polêmica, e é natural que isso se traduza em publicidade espontânea para o jogo. Seguindo a grande máxima do “falem mal, mas falem de mim”, faria todo o sentido ter uma dublagem questionável, ainda mais se essa dublagem viesse de alguém conhecido por criar polêmicas a todo o momento.

É claro que nunca saberemos se isso aconteceu ou não, ainda que possamos confabular a respeito. Contudo, como eu já disse ali em cima, é ilógico você alavancar a publicidade do seu produto diminuindo a qualidade dele, e tanto por uma visão quanto por outra, a escolha da Warner parece ter sido bastante equivocada.

“SE NÃO GOSTOU, JOGUE EM INGLÊS”

Imagino que a mentalidade, em caso de uma tradução ruim, seja como a do Roger: “se não gostou, é só colocar na língua original”. Sim, se eu souber a língua original, é claro que eu vou mudar, mas aí entramos em um paradoxo – se fosse para fazer uma dublagem ruim, então por que dublar? A função dela é permitir a experiência para mais pessoas, não aumentar as vendas, o que, por mais que pareça ser a mesma coisa, em última instância não é. Uma boa dublagem pode aumentar o alcance e as vendas, mas isso é a consequência, não a razão de ser.

O pior é que a dublagem ruim não se resume apenas aos famosos, mas também aos dubladores profissionais, só que por uma razão completamente diferente: o cuidado tomado nos games é muito menor se comparado com o dos filmes. Guilherme Briggs, o dublador do Buzz Lightyear, já disse isso em uma entrevista, destacando como na dublagem dos games você não vê o desenrolar da cena, tendo apenas o áudio e o texto como referência.

Isso recai justamente naquilo que eu já falei nos parágrafos acima. É você arriscar toda a experiência que o seu produto tem a finalidade de produzir, o que, pra mim, é algo completamente absurdo. Jogos, assim como filmes, dependem da imersão do consumidor para atingirem seu objetivo, e destruir a imersão para vender mais é tão nonsense e ao mesmo tempo tão sem graça que daria um filme do Casseta & Planeta.

Ao mesmo tempo, temos grandes exemplos de dublagens de jogos em suas línguas originais que ficam marcadas como grandiosas. O Kratos, de God of War, teve uma dublagem tão marcante que a voz do dublador chega a ser indissociável do personagem. Da mesma forma, a voz do Vaas de Far Cry 3também marcou tanto que, quando você vê o ator em cena na série Better Call Saul, reconhece instantaneamente. E, é claro, não poderia deixar de citar o Coringa de Mark Hamill, que, como mesmo disse o Corrales, é o “Palhaço do Crime definitivo“. E, bem, se esse cuidado com a dublagem fez a diferença lá fora, por que não faria aqui?

UM CAMINHO ESPINHOSO

É estranho pensar como uma dublagem tão boa como a brasileira anda tão mal das pernas quando se trata de games. É verdade que o mercado dos games é novo, mas o da dublagem não, e me assusta perceber a discrepância que existe entre os trabalhos cinematográficos e gamísticos. Felizmente, isso não é uma regra geral, pois temos jogos com traduções muito boas, como por exemplo Splinter Cell: Blacklist, provavelmente o jogo que me deixou mais próximo de um filme de espionagem e que possui uma dublagem excepcional.

Claro que, assim como em qualquer mercado novo, a evolução e a melhora dos games no Brasil se faz necessária. Felizmente, no quesito dublagem já temos um background bem estabelecido por causa dos filmes, então é só questão de tempo até isso acontecer. Mas, se for para continuar colocando “não-dubladores” para dublar, que isso se restrinja às animações.

E mantenha-se delfonado. Em breve publicaremos uma resenha completa de Battlefield Hardline.