O Cyrino e o Rock

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O Corrales e o Rock – Quase uma autobiografia.
O Guilherme e o Rock – Antes true tarde do que nunca.
O jornalismo metálico – Tudo que você sempre quis saber, mas ninguém tinha coragem de contar.

“Eu amo Rock N’ Roll
Eu amo o que estou fazendo
Eu preciso de Rock N’ Roll
Me faz chegar onde estou indo”

Jesus and Mary Chain em I Love Rock N’ Roll

Eu diria que a música, e mais especificamente o Rock, entrou na minha vida tardiamente. Mas quando entrou foi metendo o pé na porta e foi para ficar.

Quando era criança lá em Brasília, entediante, mas sensacional capital deste nobre país, nunca me liguei muito em música. Não por falta de referências, afinal, minha mãe sempre ouviu bastante música, mas porque talvez minhas prioridades no momento fossem outras. Naquela época, estava mais interessado em descobrir as maravilhas dos videogames, mas isso é assunto para uma outra matéria.

No mais, as coisas que minha mãe ouvia (MPB, principalmente) não me geravam muito interesse. No entanto, ela também ouvia Beatles e Queen, e esses já me provocavam uma reação diferente. Lembro-me que eu costumava pedir para ela traduzir para mim a letra de I Am the Walrus, dos Beatles, e de rachar de rir, pois não fazia o menor sentido (e continua não fazendo). Mas era só isso. Não havia a vontade de ouvir essas canções o dia inteiro, ou até mesmo saber quem as tocava.

Tudo mudaria alguns anos depois, mais especificamente em 1994, quando tinha 12 anos. Minha família teve de se mudar repentinamente para São Paulo, cidade na qual eu nunca tinha estado antes. Assim, num piscar de olhos, estava morando nela. Quem conhece as duas cidades sabe que elas não poderiam ser mais diferentes. Essa transição foi extremamente pesada para mim. Foram mudanças não só no modo de vida, como também nos relacionamentos. Digamos apenas que eu nunca tinha sofrido nenhum tipo de preconceito ou encheção de saco por ser nerd até vir morar em Sampa. E ponto. De repente estava num lugar completamente estranho e bem intimidante, sem nenhum amigo (e como sou extremamente tímido, demorei horrores até fazer novas amizades) e pior, com pessoas me hostilizando por nenhuma razão a não ser a própria idiotice. Vai entender esses indivíduos…

Esses três primeiros anos na cidade grande (sim, Brasília é uma cidade grande, mas com jeitão de interior), de 1994 a 1996, foram simplesmente os piores e mais solitários da minha vida e só não caí em depressão ou virei um revoltado porque o Rock, cujas sementes foram plantadas lá na capital federal, germinou de vez neste momento difícil, para vir ao meu resgate e tornar-se um companheiro para todas as horas.

Não me lembro exatamente qual a primeira banda que realmente chamou minha atenção nesse período, mas as guitarras rascantes, o grave do baixo e o ritmo da bateria pareciam expressar toda a raiva e melancolia que havia dentro de mim, mesmo que ainda não conseguisse entender as letras. E no mais, agora eu tinha um novo passatempo para tirar minha cabeça dos problemas. Nessa época passei a finalmente me interessar por quem cantava tais músicas, saber quem era quem e quais discos eram considerados os melhores.

Passei a ouvir de tudo, de Bon Jovi (que eu gostava bastante, mas que acabei enjoando e hoje em dia não ouço mais) a Led Zeppelin, de The Doors a Ramones, passando por Guns N’ Roses e Pearl Jam. Mas o Rock N’ Roll só faria a transição definitiva de passatempo a verdadeiro companheiro neste último ano complicado, 1996. Um primo havia comprado o disco ao vivo From the Muddy Banks of the Wishkah, do Nirvana. Kurt Cobain já estava morto há dois anos. Lembro-me de ter visto notícias nos jornais, mas até aí nunca tive vontade de conhecer a banda.

Voltando ao tal disco, este meu primo colocou a primeira faixa, que na verdade é uma mera introdução (tanto que se chama Intro), com a banda testando ou brincando com seus instrumentos e depois Cobain fazendo um “teste” ao microfone. No entanto, esse teste consiste em alguns berros que nunca mais saíram da minha cabeça e toda vez que ouço esse disco eles ainda me arrepiam. O disco nem havia começado, essa peça nem mesmo era uma música, e ainda assim havia muita dor em sua voz, uma raiva que eu nunca tinha ouvido. Ele parecia gritar contra o mundo, e isso era algo poderoso. Fui fisgado na hora, a identificação foi imediata. E as músicas que se seguiram, Deus, cada uma melhor que a outra. E mais, nestas canções havia ainda algo mais na voz de Cobain além de dor e raiva, havia uma sinceridade que nunca tinha ouvido em nenhuma música até então. E que anos depois ainda é coisa rara de se achar.

É sempre difícil tentar explicar porque você gosta de determinada coisa. Por que você escolhe A, quando também há B, C, D e por aí vai, manja? Só posso dizer que o Rock me pegou num nível sensorial como nada havia conseguido antes. As melodias agressivas e/ou tristonhas (dependendo da canção. E isso apenas num primeiro momento. Eu não ouço apenas canções nervosas ou deprês) me confortavam. Mas ainda faltava um fator, entender o que era dito. Redobrei minha concentração nas aulas de inglês e em pouco tempo já compreendia o que estava sendo cantado.

E aí volto ao Nirvana. Com a língua de Shakespeare ao meu serviço, as letras de Cobain completaram a equação. A princípio oblíquas e sem sentido, elas não demoraram a expressar com exatidão o turbilhão de emoções e situações vividas por este que lhe escreve. Parecia que ele estava cantando diretamente para mim. Hoje, dizer esse tipo de coisa já é um clichê, mas é a mais pura verdade. Saber que outras pessoas viveram situações parecidas e encontraram um meio saudável de expressar seus sentimentos me deu a força e um conhecimento de mim mesmo que nenhum psicólogo ou outra tranqueira dessas conseguiria. Minha adolescência estava salva e a partir desse momento transcorreria sem grandes turbulências, embora com alguns pequenos trancos no caminho.

Sim, devo minha sanidade ao Rock e não estou exagerando. Claro, aí eu me empolguei e passei do estágio de apenas ouvir para o de querer fazer. Aprendi a tocar guitarra, mas logo percebi que meu grande prazer era mesmo apreciar a música e não fazê-la. Tudo bem, admito, faltou talento também, tanto que nem mesmo cheguei a tocar com bandas, mas de vez em quando ainda faço um barulho quando estou sozinho.

Minha epopéia musical acaba no ano de 1997, aquele que estabeleceu de uma vez por todas o Rock como o meu estilo de música favorito (ainda que eu escute algumas outras coisas de outros estilos, mas que nunca causaram a mesma sensação que o Rock causou, e continua causando) ao conhecer duas das minhas bandas favoritas, sendo uma delas não apenas a do meu coração, como uma verdadeira obsessão para este escriba.

Primeiro foram os Pixies, banda que havia encerrado atividades seis anos antes. Em 1997, foi lançada uma coletânea deles e saiu uma matéria enorme no jornal contando toda a história da banda. O periódico inclusive citava uma declaração de Kurt Cobain, dizendo que quando escreveu Smells Like Teen Spirit, estava tentando desesperadamente copiar os Pixies. Para quem ainda escutava um disco do Nirvana todo dia, saber disso aguçou a curiosidade. Fui atrás, ouvi e delirei. Foi a primeira banda nerd que conheci (viria a tomar conhecimento do Weezer algum tempo depois). Fora a parte instrumental totalmente criativa (quebras inusitadas de compassos, fortes influências de Surf Music, estruturas esquisitas), as letras eram recheadas de ficção científica, humor nonsense e até mesmo homenagens ao cineasta Luís Buñuel (em Debaser). Pirei, pois até então o único nerd que conhecia era eu mesmo. Saber que havia outros como eu e ainda fazendo um trabalho fantástico desses foi uma alegria indescritível.

Só não viraram a minha banda do coração porque meses depois conheci um certo quarteto de Liverpool. E se você prestou atenção neste texto já sabe que não estou falando dos Beatles. Refiro-me ao Echo & The Bunnymen, seminal banda dos anos 80, que havia terminado no começo da década de 90 e agora, depois de anos, retornava justamente em 1997. Meu primeiro contato com eles, no entanto, foi péssimo. Vi o clipe de I Want to be There (When You Come), do disco da volta deles, Evergreen, na MTV e achei a canção uma droga. Dias depois, vi outro clipe deles, dessa vez da fase anos 80, Bring on the Dancing Horses. Novamente odiei. Como Evergreen acabara de ser lançado, os clipes passavam freqüentemente. Eles me venceram pelo cansaço. À medida que ia ouvindo casualmente mais e mais músicas deles, mais minha opinião a respeito mudava. A ponto de passar de “puxa, que banda ruim” para “meu Deus, como posso não ter gostado disso?”.

Eles haviam me conquistado definitivamente, de forma arrebatadora. Nunca mais encontrei quem igualasse os fraseados hipnóticos de guitarra de Will Sergeant, o baixo que gruda no ouvido de Les Pattinson, a bateria seca de Pete De Freitas e o vozeirão (isso apenas nas canções antes da separação) e as letras poéticas e ora românticas, ora soturnas de Ian McCulloch. Aí, veio aquele período bom que nunca mais voltará, onde você decide correr atrás de todas as informações disponíveis sobre a banda, comprar os discos, ouvi-los sem parar e torcer por um show (que aconteceu em 1999, e mais três vezes desde então) deles aqui no Brasil.

Uma coisa engraçada: tive a oportunidade de ir à Inglaterra alguns anos atrás, e fiz questão de ir a Liverpool ver o que essa cidade tinha de tão especial para parir duas bandas fantásticas. Só que enquanto a maioria dos turistas só queria saber de lugares históricos dos Beatles, eu ficava torcendo para encontrar casualmente o Ian McCulloch ou o Will Sergeant nas ruas.

Pronto, encontrada a banda do coração, o Rock estava definitivamente impregnado não apenas nos meus ouvidos, mas em meu ser, influenciando meu próprio estilo de vida. E isso não é coisa para um mero hobby, mas para parte fundamental e inseparável de sua vida.

Com o passar do tempo, gostos mudaram (certas bandas eu não ouço mais, outras continuam comigo), me enveredei mais para o lado alternativo, continuo descobrindo coisas novas, e velhas também, pois afinal, antes tarde do que nunca. E nem consigo mais imaginar como seria minha vida se o Rock não tivesse entrado nela. Só posso cogitar que ela seria bem menos divertida e um tanto mais difícil. Por isso, uso este texto para expressar meus infinitos agradecimentos a este estilo que nunca irá morrer (embora muitos teimem em decretar seu fim de tempos em tempos). Valeu, e que você ainda continue comigo por anos a fio.

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