Esta é nossa crítica A Baleia. O cenário é o pátio de uma escola de ensino fundamental. Um grupo de uns 10 alunos, nenhum deles com mais de dez anos, está em círculo. No meio deles, um menino da mesma idade. O grupo canta, em coro, “gordo baleia, saco de areia”. O menino foco da “brincadeira” está no meio do círculo, chorando, tentando escapar.

Mais importante, ele não consegue entender o motivo de tanto ódio e crueldade. Isso vai afetar o resto da vida dele. Não é algo que acontece uma vez. É algo diário, às vezes mais de uma vez por dia. Isso faz com que ele tenha medo do recreio e das aulas de educação física.

GORDO BALEIA, SACO DE AREIA

Por causa dessa tortura incessante, ele nunca vai conseguir se vender bem em entrevistas de emprego. Não vai se sentir à vontade com as meninas. Ele nunca vai ser um daqueles babacas com confiança para puxar o braço de uma garota à força nas baladas. Mas também não vai ter confiança o suficiente para puxar papo com alguém que esteja interessado com um simples “oi, tudo bem?”. Mesmo quando eventualmente estiver namorando, vai constantemente se questionar o que ela vê nele.

Esse cenário horrível é extremamente comum. Você provavelmente já o viu. Talvez tenha sido a criança no meio. Talvez uma das do círculo. Ou talvez tenha apenas assistido acontecer, sem interferir. Ninguém nunca interfere. Mas é importante se lembrar disso, e ter plena noção de que as crianças da vida real são muito mais próximas da crueldade de um episódio de South Park do que da fofura de um desenho da Pixar.

CRÍTICA A BALEIA

A Baleia é um filme dirigido por Darren Aronofsky que coloca uma fat suit no Brendan Fraser. Só que, dessa vez, o objetivo não é fazer rir. Não é “olha lá o gordo, que idiota”. Na verdade é “olha lá o gordo, que coitado”. Não vou presumir as intenções que levaram à criação deste filme, mas o próprio título já mostra que ele está com o coração no lugar errado.

Crítica A Baleia, A Baleia, Brendan Fraser, Darren Arronofsky, DelfosJá pensou um filme que conta a história de uma pessoa negra lidando com racismo ser chamado de “O Macaco”? Ou um sobre um homossexual lidando com homofobia ter o título “O Veado”? Chocante, né? De muito mau gosto, eu diria. Mas de alguma forma, chamar um gordo de baleia é socialmente aceitável. E em todos esses casos, é usar um animal para tratar pejorativamente uma pessoa com características fora do que a sociedade considera o “certo”. Todos esses casos são absurdos e não deviam acontecer. Vá lá, dois deles não acontecem mais. Pelo menos não em filmes que querem ganhar Oscar. Mas gordos provavelmente não terão empatia no meu tempo de vida.

E sim, entendo perfeitamente o título de A Baleia. Charlie, o personagem de Brendan Fraser, gosta muito de uma resenha sobre o livro Moby Dick. Em especial da parte que fala que “baleias não têm sentimentos”. É bem claro, inclusive, que o diretor quer fazer uma ligação da baleia branca literal e literária com a metafórica de seu protagonista – especialmente na cena final. E isso não é legal.

SOCIAL X SAÚDE

Ao contrário dos outros preconceitos que citei acima, obesidade traz muito mais problemas além do social. Todos sabem que ser gordo causa problemas de saúde. Nenhum negro vai ouvir de um médico “você precisa ter a pele mais clara”, mas absolutamente qualquer pessoa acima do peso vai ter médicos insistindo para que ele emagreça. E isso dói também.

Eu diria que o problema social é até mais grave do que o de saúde. Sim, eventualmente obesidade pode te matar. Assim como cigarro. Assim como bacon. Frituras e doces ameaçam a nossa vida tanto quanto outras substâncias que as pessoas gostam de ingerir. Mas é a única que traz um peso social enorme. O próprio Charlie do filme, é homossexual. Mas isso não é uma questão para ele. O que faz o personagem não querer mostrar a cara para seus alunos ou para o cara que lhe entrega pizzas não é o gênero que o atrai, mas o fato de ele se sentir nojento. Porque ele sabe que a sociedade o considera nojento. E este filme realmente pega pesado nesse aspecto, mostrando o corpo de Charlie com a curiosidade e interesse mórbidos e fetichistas que um Jogos Mortais mostra sua violência.

A Baleia, o filme, é quase totalmente focado nos problemas de saúde causados pela obesidade de Charlie. Na primeira cena fica claro que ele está próximo da morte. Mas o fato de ele se sentir nojento e ter medo das pessoas está presente em todas as cenas. E se sua saúde o limita fisicamente, esta insegurança com a sua aparência é o que realmente faz com que sua vida seja tão sofrida. Ele inclusive aceita a morte iminente com muita graça e naturalidade.

CRÍTICA A BALEIA: PRECISAMOS FALAR DE OBESIDADE

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Essa história precisa ser contada. As pessoas precisam se acostumar a ver gordos como pessoas com sentimentos, sem julgar como elas chegaram a este ponto. A Baleia falha em ambos. Tanto na resenha do livro, que fala que “baleias não têm sentimentos”, até a frequência com que Charlie coloca a culpa de ser como é em suas próprias atitudes e na sua história de vida. Ser gordo já é difícil o suficiente apenas pelos motivos de saúde, sem precisar da sociedade constantemente dizendo “é culpa sua” e cantando “gordo baleia, saco de areia” para crianças que são incapazes de entender que os outros odeiam qualquer coisa que seja diferente e manifestam este ódio violentamente. Desde crianças.

A Baleia é um filme difícil. Para cada cena que elabora os dramas vividos por Charlie, temos uma outra dele comendo dois pedaços de pizza ao mesmo tempo. O filme nunca se compromete a simplesmente mostrar a história que deseja, sem se perder ao mesmo tempo em julgamentos de culpa ou no fetiche humilhante de “olha lá o gordo, que coitadinho”. Até mesmo o otimismo de Charlie, mostrado como uma de suas características mais adoráveis, está lá apenas para aumentar a pena que sentimos dele. “Puxa, mesmo diante da morte, ele continua acreditando que as pessoas são boas”.

CONCLUINDO A BALEIA

A Baleia é um filme errado. Mas talvez seja importante. Não é assim que esse tipo de personagem deve ser abordado. Não é assim que esse tipo de história deve ser contada. Mas talvez seja um primeiro passo. Talvez daqui a dez anos podemos ter filmes mainstream abordando a gordofobia com a mesma sensibilidade e cuidado que tratam temas como homossexualidade ou racismo. Espero viver para ver isso. Mas não sei se vou. Gordos não vivem muito tempo, como a sociedade martela na minha cabeça desde que eu era pouco mais de um nenê.

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