O delfonauta dedicado sabe que eu tenho um fraco por filosofia. E por jogos de plataforma em 2D. E por humor nonsense. Pois aqui está um jogo que mistura tudo isso. Esta é nossa análise Rage In Peace.

ANÁLISE RAGE IN PEACE

Rage In Peace conta a história de Timmy, um sujeito extraordinariamente ordinário. Este é o dia em que ele vai morrer. Pior, ele vai desta para melhor decapitado. A notícia chega a ele pelas bocas da própria Dona Morte. Curiosamente, ele não fica triste, apenas decepcionado por não conseguir realizar seu sonho: morrer de pijama, em sua casa quentinha, sem drama.

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Pois a boa notícia, conta a Dona Morte, é que ele vai morrer hoje, mas não se sabe o horário. Com um pouco de sorte, ele pode chegar em casa antes de bater as botas, e realizar seu desejo final.

A premissa é nonsense, bem como o humor do jogo. Porém, ele segue aquele estilo que eu classifiquei neste texto antigo como Nonsense Sentimental.

Humor nonsense

Em outras palavras, o ponto de partida absurdo é apenas um veículo para que o jogo elabore ideias e sentimentos sobre a vida, o universo e tudo mais. E se você sacou a referência, já deve perceber para onde estou indo: a história de Rage In Peace tem todo um jeitão de Guia do Mochileiro das Galáxias. E quanto mais eu me aprofundava na história, mais filosófica ela ficava. Quando você percebe, já não está mais rindo, mas está com um caroço na garganta, exatamente como acontece no tremendão livro de Douglas Adams.

A história é contada em belíssimas e extremamente expressivas imagens estáticas. Esta não é a melhor forma de usar o potencial narrativo de um game, mas permite que criadores com um orçamento mais baixo passem sua mensagem. E os desenhos e o roteiro me mantinham interessado no que ia acontecer depois e no que Rage In Peace tinha a dizer.

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Os desenhos são muito expressivos.

BUNNY PAUL

Curiosamente, os criadores de Rage In Peace não citam Douglas Adams como uma influência. Sabe quem eles citam? O autor brasileiro Paulo Coelho. Inclusive, o terror dos intelectuais tupiniquins chega a ser referenciado nominalmente no jogo.

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Duvida? Olha aí!

A aventura de Timmy é difícil. Muito difícil. Você não anda literalmente dois metros sem algo tentar (e normalmente conseguir) te matar. Durante minha campanha, eu literalmente morri mais de 1000 (hum mil) vezes. O mais curioso é que a mecânica das mortes frequentes é usada de forma narrativa.

Acontece que tudo que te mata aqui é de repente. Você está andando e saem espinhos do chão, bem abaixo dos seus pés. Não há nenhum aviso, nenhum sinal visual ou sonoro de que aquele ponto é perigoso. Você descobre apenas caindo na armadilha. Na próxima tentativa você já sabe, e vai tentar avançar pulando. Daí passa uma bola voadora que arranca sua cabeça.

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Até os camelos têm espinhos.

Rage In Peace é um jogo de decoreba. Você descobre os perigos morrendo neles. E na vida seguinte morre no próximo. E no próximo. Quando decorar tudo que te mata, você chega ao checkpoint e repete o processo. O lado bom é que você pode tentar de novo quase imediatamente, sem telas de carregamento. Lado ruim? A coisa se torna sacal.

MORTES NARRATIVAS

O ponto narrativo que o jogo parece querer fazer é que morte é um troço injusto, repentino, frustrante. Às vezes até engraçado. Eu gosto dessa proposta na teoria, não tanto na prática. No ato 4, por exemplo, há uma parte em que é necessário desviar de espinhos que vêm rapidamente na sua direção. A coisa é bastante parecida com Battletoads.

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Na verdade é igual Battletoads. E se liga no contador de mortes no canto esquerdo superior.

A fase em questão tem o título “Make You Rage“, e na história do jogo mostra momentos de raiva da vida do protagonista. Eu morri 646 vezes nesta fase, ao longo de uma hora e 22 minutos. A maior parte dessas mortes e desse tempo foi em um único checkpoint. Quando passei dele, terminei a fase pouco depois. Quer saber se eu fiquei com raiva?

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Pode ter certeza que sim! E olha aí mais uma referência ao Paulo Coelho.

Por um lado, apenas um jogo pode conseguir fazer isso: de literalmente te deixar com raiva. Eu nunca fiquei bravo com um filme, ou com um livro. Mas eu tive que me conter para não jogar o Switch no chão depois de morrer centenas de vezes no mesmo lugar. Isso é legal? Artisticamente, diria que sim. Eu fui manipulado pelos criadores de Rage In Peace, que fizeram com que eu me sentisse exatamente como eles queriam. Agora isso é bom? Isso é comercialmente recomendável? Difícil dizer que sim.

RAIVA E FRUSTRAÇÃO

Eu realmente me envolvi com a história do jogo, e queria ver para onde ela seguiria. Mas o ato de jogá-lo foi ficando cada vez mais insuportável.

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Rage In Peace tem um visual caprichado.

As cutscenes me deixavam reflexivo e me emocionavam, não apenas pelo roteiro extremamente bem escrito, mas também pelas lindas músicas licenciadas (segundo o release, são todas bandas independentes da Indonésia). Pense na trilha sonora de Scrubs (outro representante do Nonsense Sentimental), e você vai ter uma boa ideia do estilo das canções de Rage In Peace.

Por outro lado, seu gameplay cheio de mortes injustas e repentinas se tornou um fardo. Eu nunca joguei algo antes torcendo para que fosse um filme, ou um livro, mas isso aconteceu com Rage In Peace. Considerando que sua própria temática e seu humor já são pesados e não são para todo mundo, imagino que aqueles que não comprem sua narrativa vão parar de jogar rapidinho.

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Doce checkpoint.

O jogo tem duas opções de dificuldade, mas pelo que pude perceber, a diferença entre ambas é apenas a quantidade de checkpoints. E, verdade, no easyRage In Peace é bastante generoso na maior parte do tempo. O checkpoint no qual eu passei mais de uma hora, por exemplo, não deveria durar 20 segundos. Porém, durante estes 20 segundos, eu precisava decorar uma sequência de uns 40 obstáculos. Haja memória. E mesmo sabendo o que vinha por aí, era difícil passar essa informação do cérebro para os dedos para o controle e para o Switch na velocidade que o jogo exigia.

Quando eu finalmente passei da fase em questão, ainda faltava o último e quinto mundo, mas perto da fase final do quarto mundo, este foi quase uma fase bônus. Eu queria parar de jogar depois daquele maldito checkpoint, mas ainda bem que continuei, pois o final é tão bom e emocionante quanto o resto da história.

Apesar de ser um jogo onde você apenas pula, há alguns chefes. As batalhas, embora difíceis, são bacanas e criativas. Em geral, você precisa apenas se manter vivo por tempo suficiente para vencer. Dá uma variada legal no gameplay, e estes confrontos parecem mais justos do que as fases propriamente ditas.

MECÂNICAS NARRATIVAS

Rage In Peace tem um dos roteiros mais bem escritos que eu já vi em um videogame. Ele realmente é bem sucedido em te fazer pensar, sentir, e sorrir.

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A aventura é repleta de personagens simpáticos.

E, se artisticamente é interessante e único ele usar suas mecânicas como uma ferramenta narrativa, faz isso de uma forma que vai afastar todos a não ser os mais pacientes jogadores.

Se Rage In Peace fosse um conto literário, eu o recomendaria efusivamente. Como um jogo, infelizmente, fica difícil, a não ser que você realmente tenha uma tolerância sobre-humana a frustração. Eu nunca fiquei tão dividido com um jogo. Eu definitivamente não gostei de jogá-lo, mas vou lembrar de sua história e de sua mensagem para o resto da vida.