Um monstro chamado sociedade

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A vida humana é uma das coisas mais patéticas que podemos encontrar em nosso planeta. Parecemos constantemente empenhados em tornar nossa vida ainda pior. Nascemos como seres inúteis, indefesos e incompletos. Quando nos tornamos menos inúteis, somos imediatamente absorvidos por um monstro chamado sociedade que nos consome até não ter mais uma gota de sangue para tirar.

Trabalhamos a maior parte de nossas vidas. Cerca de 75% da nossa semana é consumida por uma empresa que normalmente odiamos. No restante do tempo, dormimos, reclamamos, comemos e nos lavamos para recomeçar o ciclo infernal. Além disso, é claro, nos reproduzimos para trazer mais pessoas para sofrerem aqui conosco. É quase a mesma mentalidade dos ridículos trotes universitários: “Fizeram comigo, então agora eu vou fazer com os outros também”.

Em nossa vida profissional, nos sentimos mal-pagos, maltratados e, na maior parte das vezes, nem temos idéia do resultado final alcançado pelo nosso trabalho (o que é bem mostrado no filme Tempos Modernos). Ainda assim, servimos. Doamos nossas vidas para a sociedade em troca de continuarmos vivos. Afinal, temos contas para pagar. Optamos por nos manter no inferno ao invés de simplesmente abrir mão dele. De certa forma, todo ser humano é um pouco masoquista. Para nos conformar com isso, mentimos para nós mesmos dizendo absurdos como “o trabalho enobrece”. Sei. O trabalho humilha, isso sim.

Acredito que tenha chocado o amigo leitor com uma introdução tão pessimista. O objetivo deste texto não é deixá-lo com vontade de se matar, mas simplesmente demonstrar algumas coisas que venho pensando nos últimos anos. Os parágrafos anteriores são praticamente uma conclusão um tanto exagerada de idéias que tenho a respeito da sociedade em que vivemos. Conclusão esta que pode ser embasada em alguns conceitos que serão apresentados a seguir.

O culpado mais óbvio e clichê de termos atingido este ponto é a mídia. Um exemplo bem óbvio do poder da mídia é o padrão de beleza. Quando era criança/adolescente, mulher bonita era voluptuosa, naquele estilo Pamela Anderson. Isso levava (e ainda leva) mulheres de todo o mundo a se mutilarem, arriscarem sua própria saúde e até sua vida para ficarem daquele jeito. Atualmente, vivemos uma reformulação desse padrão. Hoje, mulher bonita é a Gisele Bündchen, ou seja, magricela e sem nenhum traço da figura feminina, como seios fartos, por exemplo.

O padrão atual é algo que beira a pedofilia e, nas humildes pesquisas que fiz, encontrei apenas um homem que gostasse dessas mulheres com aparência pré-púbere, pois todos os outros são mais atraídos por mulheres “de verdade”, cada vez mais raras, já que as mulheres, como um todo, procuram se adequar ao padrão da mídia para se “diferenciarem ficando iguais”. Esse padrão parece agradar apenas aos homossexuais e às próprias mulheres. Estas, em uma vã tentativa de atrair os homens, novamente mutilam seu corpo (o que é ainda pior do que escarificações), passam fome e “inventam novas doenças” (o fato de algo como a bulimia existir demonstra quão horrenda é nossa sociedade e o quanto nossas motivações são patéticas). Mas esse assunto já foi abordado com mais profundidade aqui.

Cada vez mais, o corpo é, de fato, uma tela onde podemos inscrever o conteúdo, que podemos moldar a nosso bel prazer, para aumentar o nosso “valor-de-uso-estético”. Afinal, ninguém mais se importa com o conteúdo. O que importa é a nova embalagem, o novo design. Um dos reality-shows que passam/passavam no canal Sony exemplifica bem o culto pela estética de nosso mundo pós-moderno (eu odeio essa expressão, isso é coisa de pseudo-intelectual).

Chama-se Extreme Makeover e é um programa que seleciona pessoas “feias” e banca suas transformações radicais, que envolvem cirurgias, exercícios, dieta e toda sorte de sofrimento que você possa pensar. Curiosamente, das poucas vezes que o assisti, nunca vi lá uma pessoa realmente feia. Na maior parte dos casos, é um homem um pouco acima do peso ou uma mulher com um nariz maior do que o padrão. No começo da maioria dos episódios, é comum vermos uma garota aos prantos contando como o fato de, por exemplo, usar óculos na infância, arruinou a vida dela, a impediu de arranjar empregos, namorados, amigos, etc.

Ora, isso é um absurdo e é extremamente triste. É mais fácil colocar a culpa em um acessório que pode muito bem ser embelezador (eu, por exemplo, tenho verdadeira tara por mulheres de óculos) do que encarar seu próprio fracasso na vida. E que fracasso é esse? Vivemos em uma eterna busca por algo que nunca encontramos, o que nos faz sentir eternamente fracassados.

Esse culto à estética também acaba servindo para identificar as tribos. Não tanto tempo atrás, podíamos ter uma idéia da personalidade de uma pessoa apenas olhando para ela. Contudo, cada vez mais, as pessoas usam a estética pela estética e não pelo conteúdo a ela associado. Hoje, por exemplo, podemos encontrar um garoto com cabelos moicanos que sonha em ser presidente (depois que o Schwarzenegger virou governador, não duvido de mais nada).

Nessa eterna busca por uma individualização, as pessoas acabam ficando iguais umas às outras. Para expressar sua individualidade, basta escolher seu grupo e se tornar igual a eles. Não passamos de macaquinhos de imitação (e quem nunca foi influenciado pelos amigos que atire a primeira pedra). Essa vontade de se singularizar é acentuada pela produção em massa e o vitalismo se manifesta através dessa heterogeneidade. Como todos têm um Corsa e eu sou especial, vou “tunar” meu Corsa para ser diferente. E então, o que faço com ele? Levo para exposições, convenções ou reuniões de interessados no assunto, para estar com meus iguais.

O grupo se torna um ser vivo e, aí sim, podemos dizer que o grupo dos “tunados” é diferente dos góticos que, por sua vez, são diferentes das patricinhas. Mas as patricinhas são iguais entre si. E os góticos também. E todos os outros. E nem me faça começar a falar dos headbangers, seus trajes pretos, seus cabelos compridos, suas caras de mau homoeróticas e seus fanatismos estúpidos defendendo um movimento que nem eles mesmos sabem o que significa (e, se soubessem, não seriam tão imbecis)!

Curiosamente, o tempo e o espaço parecem não ter quase nenhum efeito nas tribos. Já cheguei a ver grupos orientais de Street Dance, o que é algo que realmente não seria comum há alguns anos e chega a ser engraçado ver um japonês com uma tremenda cara de geek cruzando os braços como o Eminem. Tão engraçado, aliás, quanto o próprio Eminem, que é basicamente um Extreme Vanilla Ice.

Mesmo culturas locais como a capoeira podem ser encontradas em países tão distantes e diferentes de nós como a Finlândia. Com o advento da internet, então, isso ficou ainda mais exacerbado. Por exemplo, há algum tempo, estava fazendo a cobertura de um show aqui em São Paulo como fotógrafo. A banda era alemã. Publiquei as fotos em sites nacionais e com textos em português e, alguns dias depois, recebo um e-mail em inglês do baixista da banda elogiando meu trabalho e pedindo permissão para publicar as minhas fotos no site oficial da banda (que tem todo o seu conteúdo em três línguas: alemão, inglês e japonês), o que deve ter dado ao meu nome exposição em diversos outros países, já que um site oficial de uma banda é algo visitado por pessoas de várias origens.

A sociedade, é claro, não podia deixar passar a oportunidade e logo cria coisas direcionadas especificamente para os mais variados grupos. Afinal, “dividir e conquistar” já não é algo recente. Já chegamos ao ponto de termos até revista para negros (e eu nem sabia que a raça na qual alguém nascia o tornava instantaneamente parte de uma tribo. Tirando a cor da pele, o que difere um negro de mim? Que eu saiba, mais nada. E qualquer resposta diferente só pode levar a racismo de ambas as partes).

A mídia nos promete que a felicidade vem junto com as mercadorias e, se conseguem convencer as pessoas que tal produto “é a sua cara” ou “foi feito para você” ou até mesmo “você fica bem com tal produto”, as tribos acabam se tornando uma galinha dos ovos de ouro. Afinal, não precisa mais atender às necessidades e vontades de milhões de indivíduos, mas apenas de milhares de grupos, o que ainda assim pode parecer muito, mas existem milhares de empresas “especializadas” em grupos por aí. Eu mesmo sou editor de um veículo especializado em um desses grupos, pô! E você sabe muito bem disso, já que está nesse veículo agora e provavelmente faz parte de pelo menos um desses grupos urbanos. Aliás, não duvido nada que você esteja todo de preto e tenha cabelos compridos e depois de terminar esta leitura saia na rua fingindo ser um troll.

Mas afinal, quem é esse vilão extremamente maligno chamado sociedade, que tanto vemos em textos como este e ouvimos falar em discussões pseudo-intelectuais? Aí está o problema. Se as tribos são seres vivos dos quais a raça humana faz parte, a sociedade seria um outro ser, ainda maior do que as tribos e composto por elas. É quase como se cada pessoa fosse uma célula e cada tribo um órgão de algo ainda maior do qual nem temos consciência e que suga todas as nossas forças em nome de algum objetivo misterioso. E, nas empresas onde trabalhamos, colaboramos para esse objetivo sem nem saber qual ele é. Talvez o Deus que tantos filósofos e religiosos procuram seja a própria sociedade. Infelizmente, de deus do amor não tem nada.

PS: E semana que vem a gente continua a trilogia com um texto mais tipicamente delfiano. Até lá!

Referências Bibliográficas:

DEBORD, Guy. “A mercadoria como espetáculo”, “Unidade e divisão na aparência”, “O tempo espetacular” e “O planejamento do espaço”. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
FEATHERSTONE, Mike. “Culturas da cidade e estilos de vida pós-modernos”. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo, Studio Nobel, 1995, pp. 135-155.
HARVEY, David. “A compressão do tempo-espaço e a condição pós-moderna”. Condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1994, pp. 257-276.
IANNI, Octávio. “A ocidentalização do mundo”, e “O cidadão do mundo”. A sociedade global. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992, pp. 69-123.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. “A cidade virtual: transformações da sensibilidade e novos cenários da comunicação”. Revista Margem. Tecnologia, cultura. Nº 6. Educ/Fapesp. 1997. pp. 205-222.
PIRES, Beatriz Ferreira. “Modern Primitives” e “Corpo – reconstruído/ reprojetado/ replicado”. O corpo como suporte da arte: piercing, implante, escarificação, tatuagem. São Paulo, SENAC, 2005, pp. 131-160, 171-177.

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