Tem como ouvir um disco errado?

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Semana passada, meu amigo de redação delfiana, Luiz, escreveu um interessante texto com o tema “Você ouve discos errado?”. Se você não leu o texto dele, pare tudo que estiver fazendo agora e clique no link para ler e continuar por aqui, já que este texto trata-se de uma resposta a aquele. Vai lá, eu espero, não vou sair daqui.

Pronto?

Legal! Vamos continuar!

Ao ler as colocações, eu concordei em muitas partes, mas também discordei em muitas outras e decidi fazer este texto para enriquecer ainda mais a discussão com um diferente ponto de vista, coisa que só o DELFOS faz por você!

É claro e evidente que a nossa expectativa diante de um álbum muda sensivelmente o nosso aproveitamento do mesmo. Afinal, esperamos algumas vezes meses ou até anos por um novo lançamento de uma de nossas bandas preferidas e, quando colocamos finalmente as mãos naquela obra, queremos ouvir algo sensacional. E sim, muitas vezes nos decepcionamos, pois nem sempre o que ouvimos sair pelos falantes era o que esperávamos. Mas há algo de errado nisso?

“CARA, VOCÊ TRAIU O MOVIMENTO”

Para ficar claro, usemos um exemplo fora da música: você vai todos os dias na lanchonete do palhaço, aquela do M. Lá você se delicia com os hambúrgueres da hipertensão, as batatinhas do colesterol e os refrigerantes da obesidade mórbida. Um banquete! Pois bem, um belo dia você vai ao restaurante do palhaço e entra na fila já salivando, esperando por aquele belo pedaço de doenças do coração e, quando chega para fazer o pedido, a atendente te surpreende dizendo: “desculpe, senhor. Agora só servimos salada”. Mas que puxa! Evil monkey pra você, senhor palhaço!

Você esperou ansiosamente, você virou cliente fiel daquela lanchonete, e ela retribui vendendo salada!? Um elo, portanto, foi quebrado. Isso quando não acontece pior, quando na propaganda na televisão eles colocam um grande e saboroso pedaço de boi e quando você vai lá pedir só tem alface. Mas que puxa de novo! Isso é propaganda enganosa. E isso é o que acontece muitas vezes com um álbum, e nós temos o direito sim de reclamar.

Veja bem, eu não estou aqui entrando no mérito se a salada faz bem para o corpo, se tem um tempero delicioso ou se é muito melhor que o hambúrguer. Mas, de qualquer maneira, uma troca de confiança foi quebrada. Você confiava na lanchonete do palhaço para te dar um ataque cardíaco, e ela falhou com você.

Se você vai na loja comprar um CD, você tem muitas expectativas, e isso não é, de forma alguma, errado. Pelo contrário, a indústria inclusive usa essa sua expectativa, pois é exatamente ela que vai fazer você desembolsar seu suado dinheirinho para comprar o CD, ou a entrada do cinema, ou aquele jogo tão esperado. Quantas vezes não vemos no trailer de um filme o “do mesmo criador de X”? Isso é alimentar uma expectativa! Porque ela é, sim, muito importante. Cada foto de divulgação, cada mensagem na rede social, cada declaração na imprensa é um rótulo que está sendo colocado para que você crie mais e mais expectativas. Isso está tão enraizado em nós que hoje nós temos trailer do trailer! Mas que puxa pela terceira vez!

Isso, obviamente, não descarta o argumento do Luiz, dizendo que você pode se surpreender e ouvir algo bom de estilos diferentes. Uma mente aberta é sempre importante, e quem escreve isso é um cara que já foi a shows do Iron Maiden e do Chico Buarque. Mas a expectativa é algo simplesmente indissociável de uma marca. E é isso que cria uma proximidade maior entre público e banda e alimenta a paixão. Quando isso se quebra, há motivos para ficar irritado, independentemente do que está sendo colocado.

Até porque, dificilmente uma marca consegue se estabelecer em diferentes segmentos com a mesma qualidade. Você ficaria desconfiado se sua marca de detergentes preferida de repente fabricasse chocolate, não é verdade? Assim como não me soa bem o Megadeth tocando pop. Se eu quiser ouvir pop, eu ouço Michael Jackson, assim como se eu quiser comer chocolate eu como o chocolate “Menino”.

Salvo raras exceções, como a Yamaha, que faz violão e moto, é assim que o mercado se organiza. E sim, estamos falando de um mercado, até porque se a indústria fonográfica se permite ser chamada assim é exatamente porque ela é como qualquer outra indústria, que tenta atender a uma demanda do mercado, e por isso aparecem bizarrices como Megadeth pop, e nos irrita ainda mais saber que isso nada tem a ver com uma mudança de direcionamento artístico, mas sim de direcionamento de mercado.

A indústria nunca vai deixar de usar estes artifícios. Veja o exemplo do Guns ‘N’ Roses e seu último álbum. Seria muito mais sincero com o público chamar aquela banda de “Axl e seus músicos bizarros”. Mas isso não venderia nem traria tanta expectativa quanto o nome Guns ‘N’ Roses, que tem uma história. E eles escolheram pagar esse preço para obter lucro. A verdade no mundo dos negócios não vende tão bem. Quando você constrói uma marca, você cria uma identidade, e esse peso você tem que carregar consigo. Quando não é ninguém, não tem essa responsabilidade. É o preço da fama.

UM PROBLEMA MUITO ANTIGO

A chamada de capa do texto do Luíz dizia que este é um dos problemas que vivemos atualmente. Pois eu acho que este problema hoje é muito mais leve do que já foi em outros tempos. Antigamente, as formas musicais eram muito mais fechadas e definidas. Música era vista como um ofício apenas, assim como todos os outros e, portanto, havia muito menos espaço para experimentação. Era tudo a forma e a técnica. Hoje, vivemos um mundo muito mais aberto, onde é impossível descrever a forma exata de uma música, como fazíamos com as antigas sonatas. A liberdade que temos hoje é maior.

Aproveitando a deixa, gostaria de questionar também a definição de arte dada pelo meu amigo delfiano: “[…] arte é a manifestação de sentimentos e sensações humanas através de uma linguagem específica”. Confesso que admiro a coragem em tentar definir algo que até mesmo na academia (não na de ginástica, é claro, eu digo nos centros acadêmicos) ainda gera discussões e desentendimentos. Mas essa definição é, em sua essência, de uma origem romântica (digo do Romantismo, e não que o Luiz estava apaixonado ao escrever). Como citei anteriormente, a música antes desse período era tratada como um ofício comum, e não precisava de nenhum sentimento, apenas técnica. E estamos falando de épocas de Bach, Vivaldi, etc. Os gregos mesmo a tratavam como uma ciência, ao lado da aritmética, geometria e astronomia. Portanto, é um terreno bastante espinhoso este de definir música ou arte.

Outro ponto em que discordo é onde ele coloca que “analisar uma obra qualquer requer que você entenda o que o artista quis mostrar e aí saber se ele conseguiu de fato fazê-lo”. De forma nenhuma! Nunca esquecerei de uma história contada por um professor na faculdade: na época, ele cursava sua graduação em uma faculdade dos EUA. Depois de escolher um compositor para analisar em sua pesquisa, se aprofundou a fundo nas técnicas de composição do mesmo e percebeu diversas peculiaridades que tornavam a sua obra grandiosa. Estando nos States, teve a oportunidade de então, para concluir o seu trabalho, encontrar o compositor pessoalmente. Ao ler o trabalho daquele aluno empolgado, o já senhor compositor virou para meu professor, na época apenas um estudante começando a carreira e, meio desapontado, disse a ele: “eu não sabia que eu tinha usado estas técnicas, eu fiz tudo de maneira intuitiva”.

Isto não faz dele menos genial por sua obra. Música ou qualquer arte não é como um remédio. Não é necessária uma bula contando as intenções do autor. Se fosse o caso, seria preciso rever alguns conceitos. Nunca saberemos das reais intenções de Da Vinci ao pintar a Mona Lisa ou de Beethoven ao compor a nona sinfonia, mas suas obras falam por si.

ENTÃO EU POSSO ODIAR O RISK?

Claro que pode. Fique à vontade. Eu até gosto do álbum, mas realmente não tem o selo de Megadeth. E sim, a expectativa de “ser Megadeth” estraga tudo, mas é o fardo que o Megadeth carrega por ser Megadeth, ainda mais quando as motivações parecem muito mais de cunho mercadológico do que artístico. Assim como o Pink Bubbles Go Ape não é um Keeper of the Seven Keys, e por isso é execrado.

De qualquer forma, não há essa de ouvir certo ou errado um álbum. No entanto, reforço a sugestão do meu amigo delfiano de que devemos ouvir os álbuns de cabeça aberta, e podemos sim nos surpreender, assim como na salada do restaurante do palhaço ou no chocolate da marca de detergente.

Entendo e concordo quando ele diz que é uma atitude infantil dizer que o álbum não tem qualidade somente de acordo com suas expectativas. É necessário saber discernir entre quando a banda traiu suas expectativas, quando você tinha expectativas erradas e se o álbum, de fato, tem qualidades ou não. São coisas totalmente diferentes, e este terceiro item tem que se basear em diversas análises, nenhuma delas de cunho passional. É claro, se você quiser de fato fazer uma análise fria, pois, a não ser que você seja um crítico (e hoje em dia nem os críticos escapam) ou um pesquisador, não tem porque excluir suas emoções ao ouvir um álbum.

Para encerrar, para criar polêmica e aparecer na capa das revistas sensacionalistas com o título “crise entre delfianos”, vou dizer que o Luiz é um cabeça de mamão, pipizento e que sua mãe tem problemas de obesidade. Eu não sou infantil, seu bobo! Na verdade, o delfiano atento percebe que meu texto não vai contra, mas apenas complementa o do Luíz, mas criar a expectativa de uma crise gera mais ibope.

E continue utilizando suas expectativas à vontade. Inclusive aqui no DELFOS. Afinal, quando você olha meu nome no título de um texto você já sabe que vem um humor crítico, listas cafajestes e tutoriais de como fazer orgias com travecos namoradas dos seus amigos.