Realidades Adaptadas

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Philip K. Dick é um dos maiores expoentes da literatura de ficção científica. Também é um dos autores mais adaptados para o cinema. Filmes clássicos e/ou tremendões como Blade Runner, O Vingador do Futuro e Minority Report são todos baseados em sua obra.

Eis então que a editora Aleph teve uma grande sacada: reunir em um livro os sete contos de K. Dick que foram adaptados por Hollywood. Só as histórias que originaram Blade Runner e O Homem Duplo não se encontram nessa coletânea, por serem romances e não contos. Mas todo o resto está aqui.

Este foi meu primeiro contato com a obra do autor. Nunca tinha lido nada dele e agora já posso apagar essa mácula do meu currículo nerd. Devo dizer que gostei bastante do que li. O escritor apresenta algumas obsessões temáticas, as quais ele mesmo admite nas observações ao final do livro, tais como a questão da identidade e o que torna alguém verdadeiramente humano, e as explora das mais variadas maneiras pelos contos que compõem o livro.

O legal é que justamente por dar essa variada nas maneiras de tratar desses assuntos, nunca há a sensação de que ele fica batendo demasiadamente na mesma tecla. Pelo contrário, poderia ter mais uns sete contos com as mesmas temáticas e seria uma leitura igualmente prazerosa.

Sua forma de escrever também contribui muito para o prazer da leitura. Dinâmico e ágil, prioriza mais a ação, mas sem deixar de dar a essencial importância para o lado psicológico de seus personagens. Claro que ajuda o formato de histórias curtas, que precisam ser enxutas e diretas ao ponto, mas é inegável que Philip K. Dick sabe como prender a atenção do leitor e contar uma história envolvente.

Como todo livro de contos, no entanto, há uma inevitável irregularidade. Gostei de todos os sete, mas é claro que alguns são muito superiores a outros. E já que são apenas sete, dá para falar especificamente de cada um deles, numa rápida análise. Vamos lá.

LEMBRAMOS PARA VOCÊ A PREÇO DE ATACADO

Este é o conto que deu origem a O Vingador do Futuro, também conhecido como um dos melhores filmes do Arnold Schwarzenegger, e que acaba de ganhar uma refilmagem que eu ainda não vi.

O começo e a premissa básica são bem parecidos com o do longa de 1990, incluindo aí a obsessão do protagonista pelo planeta Marte. Depois a história segue outro caminho até seu final – com uma forte dose de humor irônico – que não é para ser levado muito a sério.

A trama trata dos assuntos-fetiche do autor: o que é real? E a gradual perda de contato com a realidade que essa dúvida acarreta, representados na figura do protagonista Douglas Quail (e não Quaid, como no filme).

Nota: 4,5

SEGUNDA VARIEDADE

Já este deu origem ao filme Screamers – Assassinos Cibernéticos, o qual eu assisti na adolescência e gostei bastante. Também gostei muito do conto e ele virou um dos meus favoritos do livro, se não o predileto.

Nele, a Guerra Fria esquentou e estadunidenses e soviéticos entram num conflito armado que praticamente destrói a Terra. A maré da batalha vira a favor dos ianques quando eles inventam máquinas assassinas dotadas da capacidade de se reproduzirem sozinhas. Elas obviamente vão evoluir e começar a exterminar qualquer um, não importa de que lado esteja.

O clima de desolação pós-apocalíptico e as máquinas mortíferas são os pontos fortes e são elementos transpostos iguais no filme. As máquinas, réplicas perfeitas de humanos, os agentes infiltrados e o clima de paranoia que permeia a narrativa também são outros pontos altos e lembram O Exterminador do Futuro. Repito: um dos melhores contos do livro.

Nota: 5

IMPOSTOR

Este serviu de base para o filme de mesmo nome e o único destes que eu não assisti. Trata novamente da questão da identidade, de que as aparências enganam e de que às vezes até mesmo tudo que você toma como verdade absoluta pode ser uma grande mentira.

Tudo isso na história de um trabalhador acusado de ser um agente infiltrado alienígena. Impossível não pensar nos replicantes de Blade Runner durante a leitura. Até por isso, um dos contos menores desta compilação.

Nota: 3

O RELATÓRIO MINORITÁRIO

Você deve conhecê-lo em sua versão de celulóide como Minority Report – A Nova Lei. Aqui muito mudou. A premissa de evitar os crimes antes que sejam perpetrados é igual. A agência se chama Pré-Crime, há os precogs e o protagonista se chama John Anderton. Em suma, apenas os principais conceitos foram mantidos no filme.

Todo o resto, a condução da trama, seu desenrolar, os personagens (incluindo o próprio Anderton), é diferente. E dessa vez vou dar a vantagem ao filme, embora o conto também não seja de forma alguma ruim.

Ele fala sobre destino, se é imutável ou se podemos fugir dele e, nesse caso, se há várias possibilidades, não estaria o Pré-Crime prendendo pessoas inocentes apenas por pensar em fazer o mal? É também uma típica trama de indivíduo contra o sistema.

Nota: 4,5

O PAGAMENTO

Outro que virou uma película homônimo. Não posso fazer uma boa comparação entre ele e a fonte porque, embora me lembre de ter visto o filme no cinema, esse é o único fato do qual me recordo a respeito dele.

O conto é outro dos menos memoráveis. Novamente o tema são memórias e um destino pré-determinado. Além de corporações e governos autoritários. Tudo isso envolvendo viagem no tempo e muita correria. Ideias interessantes, história nem tanto.

Nota: 3,5

O HOMEM DOURADO

No cinema, sua adaptação se chama O Vidente. Trata-se do filme mais diferente do material original, e, já que estamos falando de um filme estrelado por Nicolas Cage, é preciso dar graças aos céus pelo estúdio ter optado por se desviar completamente do material-base. Aliás, é tão diferente que se o autor e o conto não fossem creditados, acho que nem rolaria processo, pois ninguém reconheceria a ideia original.

O texto lembra muito X-Men, e me fez pensar que Stan Lee pode ter tido inspiração para criar os filhos do átomo ao ler esta história. Temos aqui mutantes, o próximo passo da evolução do homem e até o termo “homo superior”.

Trata-se da singela aventura de um desses mutantes, possuidor da habilidade de prever todos os seus futuros possíveis, e assim se antecipar e ser praticamente invencível. E assim escapar das garras dos humanos normais, que querem matá-lo por medo do que não entendem. Apesar de ser uma das histórias mais curtas presentes, é também uma das melhores.

Nota: 5

EQUIPE DE AJUSTE

Para terminar, o conto que deu origem ao filme mais recente (descontando a refilmagem de O Vingador do Futuro, claro): Os Agentes do Destino. Mais um caso de apenas a premissa básica ser utilizada na telona. Mas nesse caso, tudo bem, porque aí temos tanto um filme legal quanto um conto igualmente bacana.

A história mais viajandona e lisérgica de todas as sete, com direito a cachorro falante, cabine telefônica elevador e gente virando cinzas. Mostra o que acontece quando um sujeito comum, ao sofrer um mero atraso para o trabalho, vê o que não devia e testemunha o que há por trás do tecido da realidade. E quem são os funcionários que operam por debaixo dos panos. Excelente encerramento para o livro e outro de seus pontos altos.

Nota: 4,5

EM SUMA:

Fiquei mais que satisfeito com meu primeiro contato com a obra de Philip K. Dick, me surpreendendo em diversos momentos, principalmente pela agilidade de sua escrita. Autores mais antigos tendem a ser mais travadões, e esses contos foram escritos entre 1953 e 1966, daí minha surpresa positiva.

Com certeza lerei outros trabalhos seus, e torço para que sejam tão bons quanto os contos que formam este Realidades Adaptadas. O livro é mais que recomendável não só para fãs do escritor ou novatos como eu, mas também para o leitor casual que assistiu aos filmes e ficou curioso em conhecer o material original. Uma ótima pedida tanto para os fãs de literatura quanto os de cinema.