Literatura: a arte nobre?

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É até estranho, mas em todo este tempo de DELFOS e todas as centenas de resenhas que escrevi para o site, nunca escrevi uma crítica para um livro (até o momento em que este texto foi inicialmente escrito, o que aconteceu na metade de 2005 – é, faz tempo, mas eu o atualizei para publicá-lo agora). Passeio livremente por todas as seções, mas quando apareço na seção de literatura é com alguma resenha de quadrinhos. O motivo para isso é muito simples: a escola arruinou a literatura para mim. Ahn? Calma, eu explico.

Por algum motivo, a literatura (e talvez também a pintura) adquiriu um status muito mais alto do que todas as outras formas de arte. Ninguém sabe como chegou nisso, mas a maior parte das pessoas (mesmo as que não gostam de ler) consideram que “quem não gosta de ler livro é automaticamente burro” ou o contrário, “quem lê muitos livros é automaticamente inteligente”.

Esse pensamento ridículo leva as escolas a OBRIGAREM as crianças e adolescentes a lerem livros e depois a fazerem provas para… bem, provarem aos professores que os leram. E o pior, tirando raras exceções, os livros escolhidos são coisas assaz chatas – ou você já ouviu falar de uma escola que obrigou os alunos a lerem O Guia do Mochileiro das Galáxias (leia resenha do filme aqui e do livro aqui)? É a mesma coisa que tentar fazer um moleque gostar de legumes enfiando goela abaixo enquanto ele chora e implora para você deixar ele comer a sobremesa.

Assim como o caso dos legumes, não é assim que se faz alguém gostar de livros. Estimular é uma coisa, obrigar é outra. Todo tipo de arte, onde incluo a literatura, deve ter como objetivo o prazer, seja o prazer por aprender, por imaginar ou simplesmente por acompanhar uma história. Assim como sou contra enfiar alguns livros considerados intocáveis (e dos quais na verdade poucos gostam) goela abaixo, também seria contra se começassem a obrigar as crianças a ouvir a Sétima Sinfonia de Beethoven para fazer uma prova em seguida (percebe quão ridículo é isso?). E eu gosto de Beethoven. E tenho certeza que o que ouvi dele durante minha infância contribuiu muito mais para a minha inteligência e para a pessoa que sou hoje do que os livros que li no período. Com a pequena diferença de que ouvia Beethoven com e por prazer. Os livros lia por obrigação, torcendo para que acabassem logo. Mas isso foi para mim. Sem dúvida, outras pessoas devem ter lido Eça de Queiroz e seus textos homoeróticos descrevendo sua viril ferramenta lusitana e aprendido bastante, quiçá até se divertido. Vai entender os seres humanos…

Não estou dizendo que é impossível aprender com arte. Também não estou dizendo que a literatura é uma forma de arte inútil. Ela é simplesmente tão importante quanto o cinema, pinturas, esculturas, música ou qualquer outra. É possível, sim, aprender com arte. Mas isso deve ser feito naturalmente. Por mais conteúdo que tenha um livro, se o cara for ler por obrigação e com raiva não vai absorver nada do que a obra tem de bom para oferecer. E se ele prefere ler Harry Potter ao invés de Primo Basílio, qual é o problema? Por que esses intelectuais acham que o que eles curtem é melhor ou tem mais conteúdo que o que outras pessoas curtem? Parece, aliás, a mesma atitude dos headbangers que colocam na cabeça que Heavy Metal é a música mais complexa e hermética que existe e que, qualquer pessoa que não o admire, simplesmente carece da capacidade de absorver suas características. E isso é patético.

Algum tempo atrás, um semi-retardado deixou um comentário aqui no DELFOS dizendo “chamar quadrinhos de literatura? Faça-me o favor!” (ou algo muito parecido com isso), como se quadrinhos fossem uma forma de arte inferior. Dizer isso é completamente clichê, mas, amigão? ACORDA! São coisas diferentes com linguagens diferentes. Embora todo mundo aqui na redação do DELFOS concorde que quadrinhos e livros podem ser considerados literatura (assim como poesia também pode), são coisas diferentes. Dizer que um é superior ao outro é a mesma coisa que dizer que determinado disco do Cannibal Corpse é melhor do que o álbum mais vendido do Michael Jackson. É uma comparação que não faz sentido, a não ser dentro do gosto de cada um. O cara tem todo o direito de gostar mais de livros (ou de cinema, de escultura, etc), mas essa competição é ridícula. Quadrinhos não são melhores que livros, nem o contrário. São simplesmente formas de expressão e de arte diferentes. Vamos ser a favor do aumento da forma de artes e de opções, não de sua diminuição. Acho que todos concordam que a arte já ocupa um lugar bem pequeno na nossa sociedade. Esse tipo de disputa imbecil só vai diminuí-lo ainda mais.

Aliás, uma coisa que muito me irrita no ser humano e, para botar o dedo na ferida mesmo, nos nerds e nas suas contrapartes mais pedantes (os intelectuais), é isso de achar que tudo que nos apetece é melhor. Assim, imediatamente tomamos como verdade absoluta a inferioridade de um interlocutor que, por acaso, não compartilhe de nossa opinião sobre qual é a melhor música do Iron Maiden, a melhor fase do Homem-Aranha, o melhor escritor brasileiro ou o melhor qualquer outra coisa (isso se encaixa em absolutamente tudo, repare nessa atitude quando rolar uma discordância com um nerd/intelectual, sobretudo pela internet). E se o cara for que nem eu, que por alguma ironia do destino gosta de guitarra, mas não de Jimi Hendrix, gosta de Rock, mas não vê nada de especial nos Beatles (e ainda tem uma opinião indissolúvel de que se trata da primeira e mais bem-sucedida boy band da história), curte Heavy Metal, mas não considera o Black Sabbath o precursor de coisa nenhuma, gosta de cinema, mas acha 2001 chato pra burro e assim por diante, esse tipo de atitude sempre vem à tona. E a prova desse meu argumento é que pelo menos uma pessoa vai criticar este parágrafo nos comentários, quer apostar?

Enfim, desabafo à parte, é racionalmente ridículo querermos dizer que uma coisa é superior à outra. O máximo que podemos fazer é dizer o que preferimos. No meu caso, por exemplo, prefiro gibis a livros pelo simples fato de que eles aliam de forma harmoniosa a narrativa literária com a pintura. E essa combinação muito me apetece.

Defensores dos livros, por outro lado, argumentam que a mágica desta forma de arte está no fato de que o leitor tem que imaginar tudo. Ok, isso pode ser verdade para alguns autores, mas a minha opinião é de que a maioria não deixa absolutamente nenhum espaço para imaginação. Lembro do Cyrino comentando O Senhor dos Anéis, quando ele disse algo tipo: “a história é muito legal, mas para você chegar nela, precisa ler cinco páginas de descrição de florestas”. E, convenhamos, quando você tem que ler cinco páginas descrevendo plantas, não sobra muito espaço para a imaginação.

Esse problema dos livros ultra-descritivos, aliás, é um trauma que tenho desde a mais tenra idade e até mesmo coisas consideradas “rápidas”, como O Código da Vinci, me parecem descritivos demais. Eu, pelo menos, sou completamente capaz de imaginar uma porta sem precisar saber de que material ela é feita, qual seu tamanho ou mesmo sua cor. Talvez justamente por causa disso é que prefiro quadrinhos ou que me tornei um grande fã de Douglas Adams e seus livros focados em narrativa, filosofia e piadas, deixando a imaginação por conta do leitor. Se você gosta dessas descrições, ótimo, mas que não venha para cima de mim dizer que Eça de Queiroz é melhor do que Douglas Adams ou mesmo do que Homem-Aranha, ou mesmo dizer o que os acadêmicos dizem por aí que a escrita do autor inglês é pobre pois carece de descrições. Nós temos gostos diferentes e não tem nada de errado nisso.

Por fim, o último argumento comum da turma que acha que livros são as últimas bolachas do pacote é que é através da leitura deles que você aprende a escrever. Ora, já comentei no início dessa trilogia sobre os sujeitos com pós-graduação (e, deduz-se, portanto, que já leram muito), que desconhecem o vocativo. Eu, por outro lado, percebi isso e tantas outras coisas lendo gibis. Aliás, já vi muito erro de português grave em livros. O fato irrefutável é que a qualidade literária de algo está ligada à capacidade do autor/tradutor muito mais do que à forma de arte usada para a expressão. É possível encontrar até mesmo matérias jornalísticas com muito mais qualidade gramatical do que qualquer livro considerado clássico e intocável.

Pior, a atitude das escolas de obrigarem as crianças a ler ajuda a criar esse tipo de “espertos burros”, que se acham superiores apenas porque leram as obras completas de Machado de Assis, ao invés de toda a cronologia do Asterix (e quem conhece sabe a quantidade absurda de coisas que podemos aprender lendo as aventuras do gaulês). E mesmo os traumatizados, que acabaram optando por outras formas de arte, acabam se sentindo diminuídos ao conversarem com uma pessoa com muitos livros nas costas. Já conheci indivíduos que leram muitos livros, mas que não eram capazes de sustentar uma opinião com argumentos racionais em uma discussão amigável. Isso é inteligência? Aquele animal que deixou o comentário considerando quadrinhos algo tão inferior que nem merecia ser chamado de literatura foi inteligente em sua observação? Se você está pendendo a dizer que sim (o que, de coração, espero que não esteja), lembre-se que atitudes como essa, de achar que detalhes como gostos, opções, aparências ou religiões tornam algo ou alguém superior aos outros, foram responsáveis pelos mais horrendos crimes perpetrados pela humanidade. E pelos mais sem justificativa.

Aproveito para fazer uma divagação relacionada. O fato de literatura ser considerado a arte mais nobre, algo além do capitalismo e da indústria cultural, faz com que ela receba inúmeros benefícios, como uma série de isenção ou diminuição de impostos (por exemplo, se você importar livros, estará isento da taxa de importação de 60%, que deveria ser paga se você importasse um disco com uma obra do Beethoven). Mesmo com todos esses benefícios, a gente reclama do preço de CDs que custam 30 reais, mas acha natural livros custarem 50 ou 60 dinheiros. Isso faz sentido?

Vejamos: um livro normalmente é a obra intelectual de uma única pessoa, que dificilmente precisa de algo além de um computador para seu trabalho. Uma vez pronto, envolve um diagramador, um pintor/desenhista/fotógrafo para a capa uma editora e uma distribuidora. Já um disco costuma ter vários compositores, músicos, produtores, precisa de um estúdio com alguma tecnologia (bem mais avançada do que um simples computador) para ser gravado de forma decente, um pintor/desenhista para criar a capa, um diagramador para o encarte, um fotógrafo para as imagens da banda, uma gravadora e, finalmente, uma distribuidora. Pela lógica, qual deveria ser mais caro?

Voltando ao assunto principal: delfonauta, coloque isso na cabeça (principalmente se você trabalhar com educação ou se tiver poder para mudar esse tipo de coisa), ler Macunaíma (clássico de Mário de Andrade, exigido nos mais importantes vestibulares do país e obra que achei chata pra burro) não é uma receita mágica para deixar alguém mais inteligente ou fazê-lo escrever melhor. Até porque Andrade não respeitava a norma padrão da língua portuguesa, tornando ainda mais paradoxal a atitude dos professores que perpetuam essa atitude barbárica (curiosamente, se um aluno é influenciado pelo escritor e começa a escrever da mesma forma, tira zero nas redações). As pessoas só aumentam sua inteligência ou melhoram sua linguagem escrita através de muito esforço e dedicação. Não simplesmente lendo alguns livros pré-aprovados por uns poucos que se acham os donos da verdade.

Vamos nos esforçar para mudar isso. Vamos ler livros, sim! Mas vamos também ler gibis e poesias, ouvir músicas, admirar pinturas e esculturas, ir ao cinema, tirar e olhar fotografias, enfim… Não tem nada de errado em um professor indicar obras de arte que admira, mas a partir do momento em que isso vai cair na prova, entramos no que estou criticando neste texto. Vamos viver a própria arte como ela merece ser vivida, não como uma obrigação para podermos passar de ano ou, pior ainda, para mostrar para os outros que somos inteligentes, mas como uma coisa maravilhosa que nós, como seres humanos, somos capazes de criar e de desfrutar. Arrisco dizer que a arte, no geral, é uma das melhores coisas da vida. Por que vamos querer estragá-la tornando-a um fardo?

Aqui encerramos a trilogia de Pensamentos Delfianos relacionada à Língua Portuguesa. E continuando a tradição, semana que vem, o DELFOS verá o glorioso nascimento de uma nova coluna. Qual será o assunto? Quadrinhos, ora pois. Quem vai cuidar dela? Basta dizer que é um velho conhecido nosso, cujo retorno ao assunto vai agradar bastante gente. 😉

Curiosidades:

– Este texto começou como a introdução para a resenha de O Código Da Vinci.

– Cronologicamente, esta foi a terceira Pensamento Delfiano escrita, logo após a dos headbangers não praticantes.

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