Das bandas de Rock atuais, creio que a canadense Arcade Fire é das poucas (quiçá a única) que está um degrau acima, ao menos em termos de ambição. Enquanto a maioria trata suas canções de forma prática, como um conjunto de riffs, beats, fraseados, licks e etc, o gigantesco grupo capitaneado por Win Butler (oficialmente um sexteto, mas ao vivo tem mais gente em cima do palco do que num show dos Titãs) parece tratar suas músicas como artesanato, construindo um Pop/Rock barroco cheio de nuances cuidadosamente encaixadas, como peças num quebra-cabeças.
Por isso a expectativa era alta para o lançamento de seu quarto álbum, Reflektor, saído no finalzinho do ano passado no Brasil. Especialmente depois que foi anunciado que James Murphy, do picaretíssimo LCD Soundsystem (mas que a galera indie adora) seria um dos produtores. Afinal, isso significava que a banda poderia estar levando sua sonoridade para um lado mais eletrônico. Isso já me deixou com um pé atrás, afinal, como você pôde perceber, não sou fã do cara.
Além disso, a banda deu declarações dizendo que o novo álbum também foi muito influenciado pelo carnaval haitiano. Mas hein? Eu sei, bizarro, mas há precedentes: os pais da vocalista e multi-instrumentista Régine Chassagne imigraram de lá e a banda já havia homenageado o país em uma canção de seu primeiro álbum.
De fato, ambas as coisas se concretizaram em Reflektor, e o que poderia resultar numa salada pra lá de indigesta se transformou num trabalho bastante coeso e muito bom no resultado final. Surpreende também por ter uma sonoridade muito mais alegre do que em seus discos anteriores, embora as letras continuem depressivas, gerando uma dicotomia interessante.
Apesar do bom resultado alcançado, é inegável que há algumas aparas que poderiam ter sido podadas. Principalmente na grande duração das faixas, em média entre seis e sete minutos (o que, no mundo indie, equivale a uma eternidade). Muitas delas funcionam perfeitamente, explorando a contento, e sem pressa, cada elemento da canção. Outras tantas se estendem além da conta e se beneficiariam de uma boa tesourada.
Fora isso, não dá para entender a opção por lançar um disco duplo composto por 13 canções que totalizam pouco mais de 75 minutos. Da última vez que chequei, cabiam 80 minutos de música num CD. Ficou a incômoda sensação de que só separaram as faixas em desnecessários dois discos para ganhar mais grana com um álbum duplo, ao invés de, você sabe, gravar mais músicas para realmente justificar o formato. Seja como for, passemos então para uma avaliação faixa a faixa das músicas.
AS CANÇÕES
Reflektor: O primeiro single do disco mostra bem o teor do que é o novo álbum. Os elementos eletrônicos (mais como pano de fundo do que como prato principal, é verdade), a percussão bem trabalhada e a sonoridade mais alegre, embora a letra não seja exatamente feliz, e ainda tem David Bowie fazendo uma rápida participação no final. Excelente começo.
We Exist: Mais compassada, levada por uma linha grave de baixo. Vai aumentando de intensidade exponencialmente. Win e Régine Chassagne cantam em dueto por praticamente toda sua duração.
Flashbulb Eyes: A mais curta, com 2:42, é a mais eletrônica do álbum, cheia de barulhos um tanto cafonas, é preciso dizer. De levada mais lenta, também tem um trabalho forte de percussão. Dispensável.
Here Comes the Night Time: Quando começa, com sua percussão forte e a guitarra acompanhando, parece, sem sacanagem, Olodum, contribuindo para o clima carnavalesco que eles queriam passar. Depois dá uma desacelerada forte, se apega num beat eletrônico e num piano de ritmo caribenho até, lá pelas tantas, a micareta de seus segundos iniciais retornar. Acredite, essa maçaroca acaba fazendo sentido.
Normal Person: A mais roqueira do disco, com um fraseado de guitarra nervoso e andamento acelerado. Na letra, versando sobre se adequar e o que é visto como comum, Win se pergunta se há alguém mais cruel do que uma pessoa normal. Um dos pontos altos.
You Already Know: Outra canção que resume muito bem o clima mais alegre adotado pela banda. Extremamente ensolarada, pop e dançante. Destoa um pouco do resto do álbum por ser uma música simples, sem aquela profusão de instrumentos característica da banda. Mas é eficiente.
Joan of Arc: Última música do primeiro disco, ameaça começar nervosa, mas logo pisa no freio para ir se construindo e crescendo aos poucos. A letra realmente fala sobre a história de Joana D’Arc. Destaque para as intervenções vocais de Régine Chassagne em francês.
Here Comes the Night Time II: A faixa que abre o segundo disco começa com barulhinhos eletrônicos, mas na verdade é uma faixa lenta, levada por sintetizadores e cordas. Outra música curta que não impressiona.
Awful Sound (Oh Eurydice): Outro elemento que influenciou a banda neste disco foi o mito de Orfeu e Eurídice. Está na capa do disco e também no tema da letra desta e da próxima música. Típica canção “arcadefireana”, se desenvolve aos poucos, violões de fundo, violinos, guitarras discretas, teclados, vai emocionando aos poucos até chegar no refrão catártico.
It’s Never Over (Hey Orpheus): A segunda metade da dobradinha temática com Awful Sound (embora não formem exatamente uma suíte), é mais eletrônica (e uma das faixas onde este elemento funciona melhor) e possui um baixo poderoso. A letra consegue passar todo o desespero de Orfeu, que não pode olhar para trás, ou perderá sua amada no reino dos mortos para sempre.
Porno: Mais uma essencialmente eletrônica. Climática e soturna, não é ruim, mas é uma que claramente se beneficiaria se fosse um pouco menor.
Afterlife: A melhor do disco, sem dúvida. Épica, emocionante, com todas as melhores características típicas da banda. Cheia de elementos para se prestar atenção. Quase seis minutos de beleza pura, essa é daquelas que não deveria acabar nunca. Ouça e comprove:
Supersymmetry: Tristonha, delicada e, para dizer a verdade, sem muito apelo. Uma escolha estranha para se encerrar o disco, indo contra a tônica “para cima” dominante do álbum. Para piorar, ainda acaba com vários minutos intermináveis de barulhinhos eletrônicos desconexos. Tivessem encerrado com a magnífica Afterlife, teriam saído por cima. Bola fora.
CONCLUSÃO
O Arcade Fire conseguiu incorporar os novos elementos à sua sonoridade de maneira orgânica e natural. Para meu gosto pessoal, poderiam ter pegado mais leve nas batidas e ruídos eletrônicos, mas essa é uma questão muito individual.
O disco como um todo é ótimo, um dos grandes lançamentos do ano passado, e mantém o grupo como um dos mais criativos e instigantes da atualidade. Não está no mesmo nível do excelente The Suburbs (2010) ou de sua estreia (e ainda meu favorito) Funeral (2004), mas não faz feio em sua discografia e apresenta um novo conjunto de canções bem fortes para agregar a seu repertório. Mostra uma banda no auge de sua criatividade e sem medo de ousar. Às vezes isso leva a alguns escorregões, mas os acertos compensam os poucos erros.