Somos todos analfabetos

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Antes de mais nada, um esclarecimento. Neste texto, eu disse que a próxima Pensamentos Delfianos seria sobre música. A PD musical já está pronta e provavelmente será a próxima, mas este é um assunto mais urgente que gostaria de abordar e por isso furou a fila. Peço desculpas aos delfonautas musicais, mas mantenham-se delfonados que ela em breve popará por aqui.

Sobre o assunto de hoje, você já deve estar sabendo que desde o dia primeiro de janeiro deste ano, o português mudou. E infelizmente não me refiro ao Seu Manoel, da padaria da esquina. Agora, palavras como estréia ou vôo não são mais acentuadas e nosso amiguinho, o trema, não existe mais. Assim, da noite para o dia, todos os – poucos – brasileiros que sabiam escrever se tornaram semi-analfabetos.

Por que isso foi feito? Para deixar o nosso português igual ao de Portugal e dos outros países com os quais compartilhamos o idioma. Mas não fizeram isso simplesmente igualando como se escreve nos países de acordo com um escolhido, mas modificando a ortografia de todo mundo. Minha pergunta é: precisa? O português brasileiro só se distanciou do português roots por causa das reformas anteriores. E agora fazem uma nova reforma para igualar de novo o que nunca precisava ter sido distanciado.

O Homero é um grande defensor dessa reforma e já tivemos acaloradas discussões sobre o assunto via MSN. Aliás, o cara se adequou assustadoramente às novas regras, tanto que, quando estou revisando uma notícia dele, tenho constantemente que confirmar se tal palavra perdeu o acento mesmo ou se foi ele que esqueceu.

Em uma de nossas conversas, ele disse que, com essa reforma, as editoras não precisam lançar mais livros diferentes para cada país. E se esse foi o principal motivo, me deixa ainda mais pê da vida com a mudança. Afinal, para proteger os interesses de um ramo da economia, o governo ferra o povo? Não precisa ser nenhum gênio para perceber que as editoras vão faturar o dobro com metade do investimento, porém metade dos tradutores em atividade vão perder o emprego. Que legal, né? Uma medida do nosso querido governo cujo principal efeito é causar desemprego e aumentar o índice de analfabetismo. Aliás, são os únicos efeitos que eu percebo. Afinal, o sotaque ainda existe. Não vejo absolutamente nenhuma vantagem da reforma para o povo de nenhum desses países.

Mas tem mais, como ficam as distribuidoras de cinema ou estúdios de TV? Afinal, o sotaque ainda é diferente. O novo filme do Harry Potter ainda vai ter que ser dublado tanto para o Brasil quanto para Portugal. Tadinha da AOL-Time-Warner-DC, né? Provavelmente isso vai levá-los à falência.

E pior que na verdade os livros ainda vão ter que continuar sendo feitos em versões diferentes. Afinal, a forma de falar continua diferente, mesmo que a ortografia se torne igual. Um português não falaria “estou escrevendo”, mas sim “estou a escrever”. Quando jogam videogame, eles não “salvam um jogo”, eles “guardam um jogo” e finalmente, quando morrem no jogo, eles não falam “cacilda da silva”, mas “oh, bolas” ou então, “raios”. E assim por diante. São miudezas que exigem que os livros sejam diferentes. Ou então qualquer brasileiro vai começar a rir quando estiver lendo Homem-Aranha e o herói exclamar “Bolas, meu fluido de teia está a acabar”.

Raios (como dizem os portugueses), os ingleses escrevem colour, os estadunidenses preferem color. Na Inglaterra, chama theatre, nos EUA, theater. E você por acaso vê nosso amiguinho Bush preocupado em mudar isso? Bolas, ele está mais preocupado em bombardear o Iraque, que é exatamente o que um país belicista como os EUA espera dele (tanto que ele foi reeleito na eleição anterior).

Nosso governo não deveria estar preocupado em bombardear a Argentina, mas sem dúvida tem muitas outras coisas que deveriam ser feitas. E essa reforma NÃO é uma delas. Não traz benefício nenhum para ninguém.

A meu ver, se realmente consideram isso necessário, o mínimo que deveriam fazer é um plebiscito. Poxa, fizeram para o desarmamento. E, para mim, mudar a língua de um país é muito mais importante do que a lei sobre armas. Afinal de contas, é difícil pegar armas e quem quer usá-las para fins ilícitos não vai comprar uma legalmente. E quem é a favor do desarmamento simplesmente não pega. O brasileiro como um povo ter direito de comprar uma arma legalmente, para sua proteção, não me obriga a ter uma arma em casa. E eu nunca vou ter uma arma em casa, independente de qual fosse o resultado do nosso mais recente plebiscito.

Agora essa reforma foi imposta sobre nós, mesmo tendo uma boa quantidade de pessoas que são contra ela. Eu me sentiria menos injustiçado se tivesse rolado uma votação na qual o meu voto foi vencido. Na maioria das eleições, eu sinto que meu voto é inútil e não tenho a menor vontade de votar. Nessa, eu votaria com prazer, mesmo que fosse facultativo, não uma obrigação.

Em uma de nossas discussões, o Homero disse que eu estou fazendo tempestade em copo d’água. Eu respondi que essa é uma posição injusta da parte dele, pois a ortografia pode não ser importante para ele, mas para mim é. Desde a época do colegial, eu sinto que uma das poucas coisas que eu sabia fazer bem era escrever. Hoje, sinto que isso foi tirado de mim por uma imposição do governo sobre a qual eu nem pude me manifestar. Então sim, isso é importante para mim. Tão importante quanto se o governo tivesse tirado minha casa ou minha esposa (não que eu tenha esposa, isso é coisa de adultos como o Rezek).

Tá, eu sei que ninguém vai ser processado ou preso por continuar escrevendo da forma antiga, mesmo depois que o “prazo de adequação” esteja vencido. Mas não muda o fato de que é uma imposição para a qual o povo não foi consultado. E considerando a quantidade absurda de analfabetos funcionais do nosso país (na faculdade de jornalismo, a maioria dos meus colegas não sabia usar crase ou vírgulas), precisamos mesmo criar mais deles?

Sei que sempre reclamam quando rola uma reforma ortográfica e todo mundo fala que se não tivesse rolado nenhuma antes, ainda escreveríamos “óptimo”. Mas qual é o problema de escrevermos “óptimo”? Isso só nos parece estranho porque aprendemos de outra forma. Para nossos avós, era perfeitamente natural escrever “óptimo” e “ótimo” é que é estranho. A meu ver, nenhuma dessas reformas precisava ter acontecido. Eu não me sinto uma pessoa mais feliz que a minha amada vovó simplesmente porque eu tive a oportunidade de cortar esse P mudo. Você se sente? Aliás, em uma reforma anterior, cortaram as letras W, K e Y do nosso alfabeto, apenas para colocá-las de novo agora. Isso mostra que quem cuida disso definitivamente não sabe o que faz e está atirando para todos os lados tentando acertar algo. Se continuar assim, vão acabar tirando até as vogais do nosso alfabeto.

Aliás, falando da minha vovozinha, eu lembro como me parecia velho, quase arcaico, vê-la escrevendo coisa como “óptimo”. E isso faz com que eu também me sinta velho, mesmo tendo menos de 30 anos, quando escrevo uma palavra como “alcatéia”. E não sei como vou explicar para meus pimpolhos porque diabos linguiça e enguiça são falados de forma diferente se a forma de escrever é igual. Aliás, sei sim, vou colocar a culpa no nosso governo que decidiu fazer parte da tribo dos emos e nos obrigou a escrever em miguxês. Não sei porque não mudaram também a palavra “não” para “naum” ou “você” por “vc”.

E, poxa, o trema era o acento mais true de todos. Se existe algum acento abençoado pelo Vento Preto, era justamente o trema. Hoje em dia, bandas como Mötley Crüe usam uma grafia ilegal para o nosso país. E nem me faça falar daquele acento que sumiu no verbo parar. Hoje, “ele pára o carro” virou “ele para o carro”. Se eu leio isso, eu acho que o maninho que escreveu esqueceu um verbo. Não deveria ser “ele vai para o carro” ou algo assim?

Já que falamos em mudança nas regras, questionemos os hífens. Agora, quando a segunda palavra começa em H, tem que rolar um tracinho, tipo “super-homem”. Beleza. A exceção é “sub-humano”, cuja grafia correta é subumano. Caceta, mano! Sei que subumano sempre foi escrita como uma única palavra, mas se você vai rever as regras da nossa língua, a primeira coisa que deveriam ser eliminadas são as exceções às regras. E os caras me criam – ou mantêm, que seja – uma nova exceção? Francamente, vai ouvir pagode, governo brasileiro! E a Academia Brasileira de Letras que vá ouvir algo ainda pior, tipo música eletrônica!

Graças a essas mudanças, hoje eu tenho mais possibilidades de escrever um texto sem erros em inglês do que em português, minha língua nativa. Isso é um absurdo. O Homero diz que eu vou acostumar. Sim, pode ser que eu acostume. Mas a questão é que eu não quero acostumar. Para mim, isso está errado e não traz benefício nenhum para ninguém, a não ser para as editoras de livros – aliás, nem para elas.

Dizem que essa reforma fortalece a língua, mas como transformar os poucos alfabetizados de um país em analfabetos vai fortalecer o português? E com certeza Portugal discorda de mim, pois essa reforma só não saiu antes porque eles não queriam mudar. E eles que estão certos, mostrando-se bem mais inteligentes do que nossas piadas lhes dão crédito. Infelizmente, o fato de Portugal ter entrado nessa eventualmente é quase como se fosse uma piada de português enganado pelo brasileiro cheio de ginga.

Essa reforma é como se o governo falasse o seguinte: “olha só, desistimos de alfabetizar o povo, então vamos regularizar a forma que os analfabetos escrevem. Se você já aprendeu a escrever, vai conseguir desaprender. Se, como a maioria do Brasil, nunca aprendeu, estamos regularizando seu analfabetismo funcional”. Só faltaram as bolas para fazer o negócio direito – e eliminar todos os acentos e demais coisas que deixam nossa língua tão absurdamente impossível de ser aprendida (oh, Deus, como é difícil – e, sim, eu estou sendo irônico).

Tudo isso só serve para a minha boa e velha conclusão de que nosso governo só aparece na minha vida de forma negativa. Nada melhora por aqui, só piora. No começo de 2008, eu era um cara que sabia escrever, que podia licenciar o carro simplesmente indo ao banco e que tinha esperanças naquela lei de diminuição dos impostos de games. No começo de 2009, eu sou um semi-analfabeto, tenho que levar meu carro na PQP para uma inspeção veicular inútil (afinal, carros antigos estão logicamente mais propensos a poluir e exatamente esses estão isentos da inspeção – valeu, Kassab! Com certeza a poluição da cidade vai melhorar muito fiscalizando só carros fabricados nos últimos seis anos) e, graças ao nosso amigo Sandro Mabel, vou ter que pagar ainda mais impostos para comprar games legalizados. Brasil, ame-o ou deixe-o. E essa segunda opção nunca me pareceu tão sedutora.

PS: É importante para mim ter o DELFOS como um veículo que usa a língua da forma correta. Por causa disso, estou tentando adequar todos os novos textos para a ortografia do miguxês, mas considerando que sou eu que reviso tudo, pode demorar bastante tempo até eu conseguir ver a palavra “estreia” ou “veem” (como eu estou bem acostumado com inglês, eu leio “veem” como “vim” =/) como corretamente grafadas. Além disso, temos mais de 100 matérias já escritas e revisadas aguardando publicação, e é provável que elas acabem saindo da forma antiga mesmo, conforme foram escritas.

PS2: Este texto foi escrito utilizando a ortografia antiga. Considere isso tanto uma forma de protesto, como minha despedida pessoal do nosso português antigo. O português está morto, vida longa ao miguxês oficializado. Ou não. Espero que não.

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