Quando o ativismo de sofá se levanta

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As últimas semanas têm sido bastante tensas nas principais cidades do nosso Brasil varonil. “O povo acordou!”, bradam as massas que invadem as ruas e avenidas protestando contra a situação atual do país que está sediando uma Copa das Confederações e está prestes a receber uma Copa do Mundo FIFA e uma Olimpíada.

Mas como isso tudo começou? Alguns diriam que começou em abril, com os protestos massivos na cidade de Porto Alegre contra o aumento sem sentido das passagens do transporte público na cidade. Eu digo que não. A revolta não tem data de início. Creio que os historiadores terão problemas na hora de especificar isso no capítulo sobre a Revolução do Vinagre nos livros que serão lidos por nossos filhos ou netos.

A revolta já estava no íntimo de cada brasileiro que um dia reclamou da roubalheira, do tráfico de informação, dos impostos, da falta de educação e na saúde deficiente do nosso país. Mas, até então era uma revolta em inércia. Aqueles que se declaravam claramente indignados nas rodas entre amigos eram considerados os chatos, os militantes da ditadura que congelaram no tempo e “exageravam” por qualquer coisa. “Rouba, mas faz!” diziam os acomodados guiados pela informação distorcida e manipulada concedida pela mídia, a maior ferramenta de manobra da qual um governo pode dispôr.

UMA NOVA CONSCIÊNCIA E JUVENTUDE

Aí então surgiu a internet e, como não podia ser diferente, o brasileiro rapidamente se tornou a praga dela com a invenção das redes sociais. O Orkut era um reduto de gifs animados coloridos e fofinhos, depoimentos melosos e comentários repletos de analfabetismo funcional. Poucas eram as comunidades sérias onde se discutia política e aquele papo anteriormente cortado nas conversas com os amigos. Mas a ingenuidade ainda era grande demais. A internet ainda era só mais um brinquedo na mão do povo, um entretenimento.

O tempo passou, e o mesmo povo começou a ver a internet como o que ela realmente é: um local para compartilhar informações. E, céus, que arma poderosa isso poderia se tornar! O Facebook foi liberado para o público brasileiro e, antes da massa “orkutizadora” ocupar todas as instâncias, verdadeiras campanhas de conscientização foram feitas para que se mantivesse a timeline alheia limpa. E, veja só, não é que funcionou? Não totalmente, com certeza. Mas a possibilidade de selecionar o conteúdo a ser exibido combinado com o amadurecimento dos usuários da grande rede mundial gerou uma nova forma de agir virtualmente. Assim, os chatos se tornaram os ciberativistas ou, como muitos gostam de apelidar provocativamente, os ativistas de sofá.

De uma forma simples, o ciberativista é uma pessoa que expressa suas opiniões políticas pela internet fazendo uso, principalmente, de redes sociais. Essa forma de expressar descontentamentos tomou proporções daileônicas com o surgimento de grupos como o Anonymous, que promove ataques virtuais a empresas públicas e privadas com objetivos políticos.

Nos últimos anos, tenho visto cada vez mais pessoas perdendo o medo da política e se engajando em causas. Eu sou uma delas, pois antes não podia ouvir falar em política que logo ficava toda verde com bolinhas cor-de-rosa. Acredito que o interesse de várias pessoas e a maneira articulada com a qual elas têm se expressado nas redes sociais sobre o assunto em questão acabou mostrando para outras pessoas que política se discute sim, e que esse é o único modo de tentar mudar alguma coisa.

Hoje vejo uma consciência tomando forma na internet. Como se cada página de perfil, blog ou site fosse um palanque. A internet possibilita que você seja ouvido, lido e visto por, no mínimo, metade dos amigos que o seguem em alguma rede social. É assim que se formam hoje especialistas em vários assuntos e que adoram comentar e colocar sua opinião no ar. E isso é ótimo! Desde o atendimento ruim no bar da esquina, até assuntos mais graves como a recente aprovação da “cura gay”, reclamar passou a fazer parte do cotidiano do brasileiro que até então só sabia falar de futebol e novela.

O GIGANTE DESPERTOU

Toda essa raiva reprimida de uma geração que aprendeu a reclamar porque funciona, eventualmente explodiria de alguma forma. O que ninguém imaginava é que seria algo tão repentino e “pequeno” quanto 20 centavos. Ou 40, afinal, também tem a volta.

Aqui em Porto Alegre eu vinha acompanhando há três anos os aumentos anuais das passagens de ônibus que nunca traziam retorno algum à população. Os ônibus continuavam lotados, atrasados, velhos e quebrando com frequência. Quando o último aumento foi anunciado em março deste ano, após uma série de greves por parte dos motoristas das empresas de ônibus que alegavam nunca terem recebido o repasse dos aumentos anteriores, a revolta na internet foi generalizada.

No início, cheguei a me sentir um pouco ridícula por estar reclamando por “apenas 20 centavos”, e acredito que a reação de alguns conhecidos acabou colaborando com este sentimento. Mas bastaram alguns dias para perceber a real proporção destes famigerados 20 centavinhos e entender que dessa vez o povo não iria deixar barato.

Foi então marcado o primeiro protesto e fiquei sabendo, durante o trabalho, que estudantes haviam se unido e caminhado pela cidade gritando palavras de ordem contra o aumento. Após este primeiro movimento, que já reuniu um número considerável de pessoas, o Tribunal de Contas do Estado recalculou os custos e declarou que o valor da passagem que estava em 2,85 pilas poderia, na verdade, ter baixado para R$ 2,60.

Aí sim o povo pegou fogo. Foi marcada uma segunda manifestação da qual participei. Mesmo sob chuva forte, ela reuniu um grupo imensamente maior do que no primeiro protesto. Naquele dia, a tarifa voltou para R$ 2,85 através de uma liminar solicitada por alguns vereadores e então eu senti, pela primeira vez, que sair do sofá realmente resulta em algo.

Outros protestos ocorreram após este, e sempre marcados e organizados via internet, especificamente via Facebook, sempre buscando a redução da tarifa para o que o TCE calculava justo. Até então este era o foco das manifestações. O que o governo não esperava é que isso seria na verdade a gota d’água.

O POVO UNIDO

Foi então que, na quinta-feira, dia 13 de junho, em várias capitais do país foi marcado também pela internet um protesto nacional contra o aumento das passagens. O aumento da tarifa do transporte público, que é medonho em todo o Brasil, virou um surto e afrontou a população toda de uma só vez.

O povo, que já estava indo às ruas por seus direitos como seres humanos devido aos últimos acontecimentos na câmara dos deputados, sentiu que finalmente chegava a hora de lutar por seus direitos como cidadãos brasileiros.

A Marcha das Vadias, a Parada Gay, o Dia da Consciência Negra e vários outros movimentos de minorias que já vêm acontecendo há anos no país, para mim, sempre foram sinais de que o povo estava aprendendo a sair da frente do computador e ir para a rua protestar e pedir por condições melhores de vida. Aos poucos, o brasileiro foi aprendendo com as minorias que gritar é melhor do que engolir o pão e assistir ao circo calado. E aos moldes destes movimentos pacíficos, começaram os protestos gigantescos que podemos ver hoje.

A PEC 37, projeto de lei que tem a pachorra de dar o poder de validação dos projetos aprovados pelos deputados aos próprios deputados, praticamente dispensando a existência do judiciário, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados neste meio tempo, acrescentando mais um absurdo à imensa lista de indignações brasileiras e fazendo o copo transbordar. A partir daí, tudo o que antes causava apenas depoimentos momentâneos e inflamados na rede, passou a ser desenterrado da memória da população que, para o espanto do Estado, não é tão curta quanto se pensava.

Os gastos descontrolados nas construções para a Copa do Mundo e Olimpíadas, enquanto a população não tem educação de qualidade e muito menos saúde, os salários absurdos dos políticos empossados, os mortos que recebem dinheiro dos governos como funcionários públicos ainda em atividade, o nepotismo descarado, as taxas de impostos que estupram o bolso da população e pagam viagens à Europa para os corruptos, enfim, a lista é gigantesca e a pergunta é uma só: para onde vai o nosso dinheiro?

Embora os próprios organizadores do movimento Passe Livre em São Paulo declarem que o objetivo das passeatas seja exclusivamente a revogação do aumento das tarifas de transporte, o público que está indo às ruas não está se restringindo aos 20 centavos.

As manifestações que estão ocorrendo em junho já têm outra proporção. De uma forma resumida, a pauta é sobre a situação atual de um país que quer esconder todos os seus problemas para atrair visitantes a um evento dantesco que não pode ser pago. Um país que quer esconder um elefante branco sob um guardanapo. Frágil assim.

Tudo isso foi o que despertou a fúria da população. Um acúmulo de anos sendo roubado e manipulado por uma mídia clichê e manipuladora que adora ver seus bonequinhos gritando gol e discutindo paredões. O povo “saiu do Facebook” como diziam alguns cartazes nas manifestações que tomaram o país. A organização, as discussões, as opiniões e a repercussão continuam vindo da internet. Mas o Brasil entendeu que para se fazer ouvir pelo governo é preciso gritar alto e dar a cara a tapa. É preciso tomar as ruas.

SEM VIOLÊNCIA

Todos os protestos até o momento em que escrevo este texto tiveram princípio e caráter pacíficos. E quase todos terminaram em confronto com a polícia militar. Houve depredação do patrimônio público e privado e violência contra manifestantes e policiais.

Não vou entrar em uma análise caso a caso, pois realmente foram muitas situações diferentes, mas vale a pena analisar dois pontos: o vandalismo facilmente detectável e o despreparo da polícia militar para lidar com protestos.

Convenhamos, não é muito difícil diferenciar os manifestantes pacíficos das pessoas que querem tirar proveito do protesto para gerar caos. Geralmente, os verdadeiros vândalos cobrem o rosto e evitam ser identificados. Além disso, não é difícil pegá-los em flagrante destruindo patrimônio público e privado. Então me pergunto, baseado no que eu vi acontecer aqui em Porto Alegre na segunda-feira, dia 17 de junho, por que a polícia não neutralizou somente o pequeno grupo que estava quebrando tudo o que aparecia pelo caminho? Por que a polícia escolheu sair atirando bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha em toda e qualquer pessoa que estivesse no local da manifestação?

Que julgamento é este que condena a todos por uma minoria que não representa a massa?

A polícia militar está lá para manter a ordem. Este é o discurso padrão dos hipócritas de plantão, da própria polícia e do governo. Mas como se mantém a ordem quando o primeiro tiro geralmente é o responsável por causar pânico e incentivar atos de ódio como os que aconteceram em São Paulo na noite de terça-feira, dia 18?

Sou a favor da responsabilização das pessoas certas pelos atos de vandalismo dentro do que determina a lei. Espancamento e abuso policial não estão inclusos na constituição como parte do pacote, até onde me lembro. E antes que alguém venha discursar alegando que estou defendendo “bandido”, lembre-se: o abuso não distingue quem quebrou o vidro da agência bancária de quem só carregava um cartaz e uma flor, ou do jornalista que exercia seu trabalho.

Cenas horrorosas de abuso de autoridade estão espalhadas por toda a internet. A cada hora surgem novas imagens, novos depoimentos e vídeos de homens fardados prendendo, espancando e atirando em pessoas que deveriam estar sendo protegidas. E mais uma vez o ativismo de sofá vem a calhar, pois a televisão dificilmente mostrará todos os atos violentos que foram flagrados no olho do furacão. Exceto, é claro, aqueles que convêm.

A RESPOSTA DO ESTADO

A mídia, tropa de choque mental sempre a serviço do governo, começou seu trabalho apontando os manifestantes como vândalos, arruaceiros, baderneiros e uma infinidade de termos pejorativos numa tentativa clara de atirar a opinião pública contra os protestos. Todos que estavam na rua eram tratados como desocupados e rebeldes sem causa. Os apresentadores falavam com caras amarradas sobre protestos que terminavam em confronto, mas a pauta das manifestações e o cunho pacífico das mesmas nunca era o assunto principal.

Mas desta vez, o brasileiro mostrou que a internet era sua fonte de informações e que não importava o quanto eles esperneassem diante das câmeras para dividir a opinião pública, o povo sabia exatamente o que estava acontecendo nas ruas. Quando a televisão tentou mostrar o que os governantes estavam pensando a respeito de toda a mobilização nacional, o que se conseguiu foi uma série de tiros no pé do próprio Estado.

Alguns mantiveram silêncio, outros ficaram totalmente alheios ao que acontecia na própria cidade comentando assuntos aleatórios, e o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, se declarou a favor da ação truculenta da Polícia Militar, o que inflamou mais ainda os ânimos da população.

Restava agora a Presidente Dilma Rousseff dar o tiro de misericórdia. Levou dias para que finalmente a presidência se pronunciasse a respeito dos protestos e o que tivemos foi um texto vazio e sem definição alguma, recheado de propaganda política e promessas óbvias.

O Governo do Estado de São Paulo, em parceria com a prefeitura da cidade de São Paulo, resolveu cancelar o aumento da tarifa na quarta-feira passada, dia 19 de junho. Mas como tudo neste país sai de algum lugar, é claro que eles não tirariam a verba necessária dos impostos que pagamos todos os dias e ninguém explica onde vai parar. Não. Eles aumentaram o IPTU.

Isso quer dizer que até quem não usa ônibus irá arcar com as despesas do transporte. A sua avó de 60 anos que tem passe livre, vai pagar o aumento através do IPTU e o estudante que tem desconto, também. O trabalhador que finalmente comprou seu carrinho e não depende mais de transporte público é outro exemplo. Só vai usufruir realmente da revogação que não tiver imóveis, e todo mundo que tem imóveis, terá que pagar pelo transporte público, mesmo que não use.

Sabemos que a verba tem que sair de algum lugar. Nisso concordamos. Mas os nossos órgãos públicos já pensaram alguma vez em corte de custos? Aumentar impostos e continuar pisando no povo não é solução. Baixar salários abusivos, cortar regalias e eliminar a montanha de cargos públicos desnecessários é o primeiro passo para a solução!

As manifestações não pararam com a revogação do aumento e nem vão parar tão cedo. Novas passeatas estão sendo organizadas, novos objetivos estão sendo traçados e cada vez mais pessoas aderem ao levantamento em massa de bundas do sofá.

A mídia já começou a trocar de lado e até Arnaldo Jabor voltou atrás em suas declarações assumindo a legitimidade dos protestos. A própria polícia aos poucos está demonstrando que não está assim tão satisfeita em ter que sair por aí distribuindo balas de borracha na população que prometeu proteger.

Se o Estado chegar a perder as duas mãos (e eu sei que isso é utópico, mas vale a pena questionar), como controlará o povo?

O QUE EU VI

Vi um mar de pessoas tomando a frente da prefeitura da capital gaúcha em tom de alegria, com direito a banda compassando o ritmo dos gritos de protesto, enquanto acompanhava pelo celular o que acontecia no resto do país. Vi pessoas vibrando nas janelas dos prédios, balançando bandeiras brancas e bandeiras do Brasil enquanto jogavam chuvas de papel picado branco sobre os manifestantes. Vi crianças na janela, pessoas oferecendo apoio e wi-fi aberto para que se pudesse estar em contato com o mundo enquanto a manifestação ocorria.

Vi um mar de gente fazer silêncio ao passar perto do hospital em respeito aos que necessitam de repouso e recuperação. Vi a maré ondular sobre o viaduto da João Pessoa e perdi de vista o asfalto quilômetros à frente e atrás de mim.

Após alguns quilômetros de caminhada, vi a primeira correria, ouvi as primeiras bombas de gás sendo lançadas, e então vi a cavalaria, mais bombas e ouvi os tiros. O que era uma grande festa democrática virava uma batalha campal que deixou um rastro de destruição onde antes tudo eram cartazes e vozes alegres.

É triste. Mas isso não me desanima. Continuo acreditando que o povo está acordando, e aos poucos os objetivos irão se alinhar, tanto os do povo, quanto os do povo fardado. E aí é bom o governo estar bem munido de bons argumentos, por que acho que será difícil fazer o Brasil engolir mais absurdos do que já engoliu. Pode levar anos, mas minha esperança é de que a memória não se apague.

FNORD

O delfonauta sagaz deve ter reparado nas coincidências que têm acontecido ultimamente. Anarquia, a HQ que tem nosso Ditador Supremo como roteirista e fala sobre uma heroína que joga toda a caquinha da política nacional no ventilador, está cada vez mais próxima do seu lançamento.

Ao mesmo tempo, protestos explodem por todo o país mostrando a indignação do povo com os abusos do nosso governo. Eu não deveria estar contando isso, mas é claro que tudo faz parte do plano de dominação mundial delfiano! Preparem-se, delfonautas, o mundo será nosso em breve! Muahahahhaha!

NÃO DEIXE DE LER SOBRE V DE VINGANÇA E ESSA COISA TODA DE PROTESTO

Resenha da HQ V de Vingança – Vale a pena ser lido antes de sair por aí com a máscara do Guy Fawkes.

Resenha do filme V de Vingança – A adaptação mais supimpa de uma HQ do Alan Moore.

Watchmen, o gibi – a frase “quem vigia os vigilantes” ganha um sentido todo especial nos dias atuais.

Watchmen, o filmeOzymandias e uniformes com mamilos.

O azar de Alan Moore no cinema – Embora haja alguns acertos.

Alan Moore – O mago da nona arte – E o cara mais estranho dela também.

Contra a DemocraciaCorrales, o mestre na tradição dos textos políticos e polêmicos do seu site favorito.

Um estado ausente – O primeiro texto de uma trilogia de Pensamentos Políticos Delfianos.

O show na política – PPD II

O Estado e seus impostos – PPD III

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