Já há algum tempo, eu venho desenvolvendo um interesse bem grande na história dos games. E a história da id Software, criadora de games como Wolfenstein 3D, Doom e Quake, é uma das mais notáveis. É bem possível que você ainda não estivesse vivo quando Doom saiu, mas a ruptura que ele causou nos games foi enorme.
Doom era um jogo tecnicamente impressionante (demorou quase 15 anos para um port perfeito da versão original de PC chegar aos consoles), feito por um time relativamente pequeno. Eu não vejo a possibilidade hoje em dia de uma empresa do tamanho que a id Software tinha em 1992/1993 revolucionar os games como ela fez.
Isso porque naquela época, não havia uma diferença tão grande entre as “superproduções” (Super Mario, Zelda, Sonic, Star Fox) e jogos menores (Aero the Acrobat, Chuck Rock e tantos outros). Ou seja, era possível uma empresa menor revolucionar a tecnologia, algo que hoje em dia parece só ser possível com cofres sem fundos. E revolucionar foi o que a id Software fez com Wolfenstein 3D, e posteriormente com Doom, que a tornaria uma das desenvolvedoras mais famosas do mundo (e nesse aspecto, de tornar game designers famosos, a id também contribuiu, mas isso é outra história). Entra Quake.
ENTER THE QUAKE
Quake já veio de uma id Software totalmente mainstream, e com orçamento bombado. Mas ela não se acomodou e ainda assim incumbiu-se da missão de avançar a tecnologia. Doom e Wolfenstein 3D pareciam 3D. O “pareciam” é a chave aí. Acontece que eles usavam gráficos 2D e um monte de truques espertos para dar aquela sensação de primeira pessoa. Quake já viria com um visual totalmente 3D.
Os games estavam caminhando nessa direção, mas de fato ainda não estavam lá. Como curiosidade, Quake saiu em 22 de junho de 1996. O seminal Super Mario 64 saiu apenas um dia depois, em 23 de junho do mesmo ano. Eles não podiam ser mais diferentes em gênero e tom, mas ambos tinham o objetivo de mostrar o que podia ser feito com os então novos gráficos poligonais (anteriormente usados mais em jogos 2D, como Prince of Persia, Flashback e Out of this World).
FPS EM 3D REAL
Isso mudava o jogo totalmente. Embora tenha muito de Doom em Quake, a simples mudança para gráficos poligonais deixou o jogo menos crocante. O combate de Doom tinha um impacto enorme, exibindo uma combinação perfeita de efeitos visuais com design de som. A escopeta de Doom só ficou tão famosa por essa combinação. O barulho que ela produz, a animação do tiro e dos monstros, que morriam com um único tiro, contribuem para que ela seja uma das armas mais queridas dos games. A escopeta de Quake, por outro lado, parece fraca. Mais leve. Isso se deve em parte porque ela é intencionalmente menos poderosa do que a de Doom, mas também porque o impacto que ela causa em monstros poligonais é bem menor do que nos bitmaps cheios de vísceras de outrora.
Isso não significa que o combate não seja bom. Pelo contrário, matar os monstros de Quake é uma delícia. Só não é uma delícia tão grande quanto em Doom.
EPISÓDIOS
Quake também traz de volta uma filosofia de design que estava presente no primeiro Doom, mas não em Doom 2, Doom 64 ou Doom 3. Refiro-me à campanha dividida em episódios curtos, não em dezenas de fases uma depois da outra. Para um adulto com pouco tempo para jogar, isso faz diferença.
Afinal, cada um dos quatro episódios da campanha principal pode ser terminado em cerca de uma hora. E você sempre sabe qual episódio está fazendo e quanto falta para terminar. Isso deixa a progressão muito mais constante e agradável do que as dúzias de fases seguidas de Doom 2 e Doom 64. Este é o principal motivo pelo qual eu gosto mais do primeiro Doom do que das suas continuações e fico feliz que a id Software fez Quake também dessa forma.
O LEVEL DESIGN GENIAL DE QUAKE
Quando eu era criança e jogava Quake e Doom, eu achava suas fases absurdamente complicadas. Naquela época, eu gostava de jogos como Streets of Rage e Sonic. Coisas mais complexas, como Zelda ou Metroid, não eram minha praia. Então convenhamos, sair de um jogo no estilo “ande para a direita” para fases labirínticas com portas trancadas era uma mudança bem diferente. E talvez por esse motivo eu nunca tenha terminado Doom ou Quake na época que eles eram lançamentos. Eu gostava do combate, mas achava chato ficar andando de um lado para outro sem saber como progredir.
Em 2021, já macaco velho e fã de metroidvanias, eu me surpreendi com quão tranquilo é encontrar o caminho certo nesses jogos. São, sem dúvida, jogos de exploração, com fases labirínticas, mas a coisa é em geral feita para que, se você estiver prestando atenção, tenha uma ideia de para onde ir. Eu me diverti muito explorando as fases de Quake (e dos Doom clássicos antes disso).
Só no quarto episódio que eu diria que ele passou do ponto. As fases que duravam de cinco a dez minutos passaram a durar quase 20, e neste episódio eu passei um bom tempo andando a esmo sem saber para onde ir. Mas nos três primeiros a coisa rendeu que foi uma maravilha.
LABYRINTH DELIGHT!
Inclusive, eu gostaria muito de ver novos FPS de grande orçamento feitos com esse tipo de level design. Doom Eternal, por exemplo, é mais linear, o que eu gosto também. E temos FPS old-school sendo feitos hoje em dia, como Ion Fury ou Dusk. Porém, eles são retrô em todos os aspectos, feitos com orçamento mais baixo. Seria bem interessante ver alguma coisa do tamanho de um Call of Duty ou o próprio Doom brincando com este tipo de level design.
Talvez o mais próximo que temos disso em jogos de alto orçamento sejam os soulsborne. E eles também são legais. Mas particularmente, eu prefiro esse estilo de “pequenos labirintos independentes” do que “um único enorme labirinto interconectado”. Deixa a aventura mais casual. Ao terminar uma fase, dá para tirar o layout dela da cabeça, sabendo que você não vai precisar lembrar o caminho que acabou de fazer depois de 10 ou 15 horas quando abrir um atalho. Ambos têm seus lados positivos, claro. E eu gosto de todos esses estilos, mas gostaria de ver mais gente usando o tipo de level design que deixou a id Software famosa em jogos de alto orçamento modernos.
O PEIXINHO VIVE!
Eu joguei Quake em sua versão de Xbox Series X. Quando a Bethesda mandou o código de review, ele tinha apenas versões de Xbox One e PS4, mas acabou ganhando um upgrade gratuito desde então. Sinceramente, não sei o que mudou. Tem algumas opções visuais, e eu ativei todas. Também acredito que ele roda a 4K/60 mesmo com tudo ativado, mas não acho que as versões da geração passada não conseguissem fazer isso. Afinal, Doom 3 é muito mais elaborado que Quake e roda a 4K/60 no Xbox One X.
Uma coisa que pode decepcionar é o tempo de carregamento. Fases e saves carregam em poucos segundos (entre cinco e 10). Porém, especialmente no último episódio, em que o jogo fica realmente difícil, você acaba restaurando os saves com frequência. Seria legal que fosse instantâneo. Curiosamente, Doom e Doom 2 nas versões de Xbox One tinham carregamento instantâneo, então é difícil de entender porque Quake no Series X não tem. Até porque jogos muito mais impressionantes, como Ratchet e Clank, carregam instantaneamente nos novos consoles munidos de SSD.
Comparando com as novas versões de Doom, também fiquei um pouco decepcionado por Quake não trazer cheats nos menus. Aparentemente, na versão de PC, é possível chamar o “console” apertando ~ e então digitar os cheats, como no original. Porém, nas versões de console isso não é possível.
Um último problema que encontrei no Series X é que as conquistas para terminar cada um dos episódios da campanha principal não destravou para mim. Outra, a de achar a saída secreta no DLC Dimension of the Past, também não. As outras, de combate ou de encontrar segredos, funcionaram perfeitamente. Não é um grande problema para quem não se importa tanto com troféus digitais, mas fica o aviso.
CONTEÚDO EXTRA NA NOVA VERSÃO DE QUAKE
Por outro lado, ele certamente traz um montão de conteúdo legal. Tem a campanha original completa e os dois DLCs dos anos 90, além de duas campanhas mais recentes feitas pela MachineGames, dos novos Wolfenstein. A segunda delas é nova, feita especialmente para este relançamento.
Os DLCs “clássicos” resolvem meus principais problemas com o Quake original. A trilha sonora, feita por Trent Reznor, então do Nine Inch Nails e que hoje faz trilhas de Hollywood, é boa, mas não traz músicas propriamente ditas. Apenas barulhinhos atmosféricos. Os DLCs dos anos 90, por outro lado, têm músicas de verdade, com ritmo e melodia, enquanto os da MachineGames usam a trilha original atmosférica.
Todos os quatro DLCs incluídos aqui também apresentam enorme variedade de cenários, o que não estava presente na campanha original. Os dois antigos trazem novos inimigos e armas, e os da MachineGames, embora tenham grande variação visual nas fases, usam apenas os mesmos monstros e armamentos da campanha principal.
CONTEÚDO ADOIDADO
Além disso, assim como a nova versão de Doom, dá para baixar mods gratuitamente. Até este momento há apenas dois. Uma nova campanha de duas fases chamada Honey, e a versão de Nintendo 64 do Quake.
Esta última é uma curiosidade interessante, mas acho difícil que alguém sinta vontade de jogá-la inteira. Afinal, são os mesmos mapas, com resolução e framerate inferiores e algumas fases a menos. Vale a pena rodar pelo fator histórico, para ver os cortes que foram feitos no jogo para levá-lo para um console da época, mas obviamente é muito melhor fazer a campanha na versão mais turbinada.
Já Honey é fantástico. Tem um level design impressionante e uma nova mecânica que envolve usar foguetes e granadas como chaves. Vale muito a pena, e pode ser feita inteira em pouco mais de uma hora, então não deixe de experimentar.
Após jogar todo o conteúdo disponível até o momento, posso dizer sem medo que Quake já vale só pelo valor histórico de suas inovações técnicas. Mas além disso, ainda é um jogo muito divertido – talvez não tanto quanto Doom – e esta versão traz uma quantidade enorme de conteúdo de altíssima qualidade. Isso tudo transforma um jogo que durava menos de seis horas em uma epopeia de mais de 30, e mesmo assim fiquei triste quando terminei tudo, pois queria mais. Quake continua um jogaço, e esta versão para os consoles atuais é um pacotão delicioso. Eu, particularmente, me diverti mais com ele em 2021 do que em 1996.
A série “… de cabeça fria” envolve voltarmos a vivenciar algo antigo e que às vezes até já resenhamos aqui no DELFOS com a cabeça fria e com nossas experiências atuais. Se você gostou, mostre pra gente fazendo comentários e compartilhando, pois nos esforçaremos para fazer muitas outras.
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