Preacher (Parte I)

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Você gosta de doses cavalares de humor negro? E de críticas ácidas e ferrenhas, mas ao mesmo tempo bem humoradas à religião? E quanto a um desfile de personagens bizarros? Que tal jogar nessa mistura a trinca sexo (explorando todas as perversões possíveis e imagináveis), drogas e Rock n’ Roll? E que tal adicionar violência extrema digna dos melhores Testosteronas Totais e situações beirando o nonsense?

Se você respondeu sim para todas as perguntas anteriores, é bem provável que Preacher seja sua HQ favorita. Se não a conhece, mas gosta de tudo que foi relacionado acima, fique sabendo, ela realmente consegue juntar tudo isso, tornando-se um dos quadrinhos adultos mais ensandecidos (e populares) já feitos. Cortesia da mente deturpada do escritor irlandês Garth Ennis, em seu trabalho mais famoso e que fez o seu nome na indústria estadunidense.

Aproveitando que a obra foi adaptada para a televisão pela dupla formada por Seth Rogen e Evan Goldberg em uma série para o canal AMC, cujo primeiro episódio vai ao ar nos EUA em 22 de maio, nada melhor que falar do farto material original em uma matéria caprichada em duas partes.

NO PRINCÍPIO

Para apresentar adequadamente a sinopse da HQ, creio que o melhor é fazer como Deus e começar do princípio, quando um anjo e um demônio se apaixonam. O resultado da relação é uma criatura mestiça chamada Mega Drive Gênesis. Por ser uma “ideia nova”, como Ennis escreve, ele tem potencial para ser tão poderoso quanto o próprio Deus. Sendo assim, o Todo-Poderoso prende Gênesis no Paraíso e foge de medo, abandonando seu posto e por consequência a humanidade. A criatura escapa e foge para a Terra, em busca de um hospedeiro. E encontra um perfeito na figura do reverendo Jesse Custer. Pastor de uma pequena congregação em uma cidade texana no meio do nada, Gênesis se funde a ele durante uma missa. Como resultado, provoca um incêndio na igreja e todo o seu séquito é carbonizado instantaneamente. Jesse sobrevive (senão seria um dos gibis mais curtos de todos os tempos) e descobre que o ser lhe concedeu o dom da “palavra de Deus”. Basicamente, tudo que ele ordenar a um indivíduo enquanto usa esse poder (sinalizado com as letras vermelhas nos balões), tem de ser obrigatoriamente obedecido, não importando o que ele mande.

Gênesis passa a dividir também suas próprias memórias com o pastor, e dessa forma ele descobre que Deus abandonou o posto deixando a humanidade na pior e decide encontrá-lo para fazê-lo responder por seus atos e sua covardia. Sim, Jesse é macho a ponto de perseguir uma criatura onipotente! Mas ele não irá embarcar nessa jornada sozinho, o que me dá a deixa perfeita para fazer uma breve apresentação dos personagens.

SÓ GENTE FINA

– Jesse Custer: Pastor de uma pequena seita cristã em Annville, Texas, funde-se com a criatura Gênesis e ganha o poder da “palavra de Deus”, mas surpreendentemente ele não o usa muito (mas quando o faz, geralmente os resultados são hilários). Cabra macho com “M” maiúsculo, Jesse tem uma noção toda própria de honra e justiça, o que o faz caçar Deus para que ele responda por que largou a humanidade atolada em sofrimento e guerras.

– Tulipa O’Hare: O amor da vida de Jesse, Tulipa foi abandonada por ele anos atrás e ficou na pior. Já recuperada, reencontra Jesse por acaso quando a série começa e fica ao seu lado porque quer saber por que ele a abandonou. Quando descobre o motivo, a velha chama se reacende e eles reatam o namoro. Também é uma excelente atiradora, o que será muito útil na jornada.

– Cassidy: Um vampiro irlandês e beberrão de quase 100 anos de idade, Cassidy se junta ao grupo ao salvar Tulipa de uma enrascada. Identifica-se com Jesse de imediato e daí nasce uma forte amizade. Ele é diferente da ideia clássica de vampiros. Apesar de ter a força de 10 homens, não tem caninos longos e alho, água benta e estacas não lhe fazem nada. Só a luz do Sol pode matá-lo. É o personagem mais complexo da série.

– Santo dos Assassinos: Seu nome é autoexplicativo. Com um visual de pistoleiro de faroeste, é indestrutível e carrega dois revólveres cujas balas são infinitas e capazes de atravessar qualquer coisa. Sua missão é devolver Gênesis ao cativeiro. E para isso ele terá de matar Custer. Passa a série inteira perseguindo Jesse com tal finalidade.

– Herr Starr: O grande vilão da trama. Uma das maiores autoridades da organização secreta conhecida como O Graal, tem por objetivo causar o Armagedom e sucedê-lo imediatamente com a segunda vinda de Cristo (no caso, um descendente direto de Jesus), mas também é um traidor, pois prefere usar Custer como o novo Messias. É ao mesmo tempo cruel e patético, pois ao longo da história vai perdendo sua dignidade e também pedaços do corpo. Um dos melhores personagens já criados por Ennis.

– Cara-de-cu: Um jovem de rosto deformado e fala enrolada (ele tem seus próprios recordatórios de legenda), a princípio quer vingança contra Custer pela morte de seu pai. Depois faz amizade com ele e Cassidy e acaba virando um improvável astro do Rock. Ennis usa o personagem para criticar pesadamente a sociedade de consumo.

TIROTEIOS, PORRADA E… AMIZADE?

Garth Ennis usa o gibi para destilar três de suas maiores influências. A principal delas é a sua paixão por faroestes. Preacher pode até mesmo ser definido como um western moderno. Grande parte da história se passa no Texas, em cidadezinhas sem lei. Os personagens, principalmente Jesse, têm conjuntos de valores antiquados e inspirados no velho oeste, sendo que a própria expressão da consciência de Custer se manifesta na figura de John Wayne (o ator símbolo do gênero). Isso sem contar personagens mais explícitos como o Santo dos Assassinos, e também os sangrentos tiroteios, comuns em toda a saga.

As outras duas influências são a Guerra do Vietnã e filmes de ação. Não dá para negar que Ennis é fascinado pelo Vietnã, visto até mesmo seu trabalho posterior com o Justiceiro. Aqui, ele revisita o conflito através de flashbacks estrelados pelo pai de Jesse, John, veterano da guerra. Quanto aos filmes de ação, bem, Preacher é um Testosterona Total em quadrinhos. Violência extrema e cartunesca, humor, cafajestagens, explosões e um protagonista cool até o último fio de cabelo garantem a diversão.

O outro ponto forte da HQ é a pesada crítica que o autor faz às religiões, em particular ao catolicismo. Então, se você for religioso e não tiver espírito esportivo, é melhor passar longe. Para Ennis, as religiões são só mais uma desculpa para gerar conflitos entre as pessoas e sua visão do cristianismo é provocativa e bem humorada. Ele mesmo escreve na introdução da primeira edição estadunidense: a intenção é apenas divertir sendo o mais politicamente incorreto possível. Na HQ, Deus é uma criatura mesquinha e egocêntrica, e não tão poderosa quanto afirma ser. Jesus não morreu na cruz. Ele se casou e teve filhos. E seus descendentes são guardados por uma organização secreta chamada O Graal. Quando a virada do século chegasse (a revista foi publicada de 1995 a 2000), haveria a segunda vinda e um descendente direto seria o novo Messias. Mas para proteger a linhagem de sangue, O Graal só permitiu a reprodução consanguínea dos descendentes, e por isso todos eles são retardados mentais.

Mesmo tocando em temas espinhosos e explodindo tudo o que vê pela frente, a revista ainda encontra tempo para momentos mais fofinhos, provando que o escriba irlandês é, acima de tudo, um sentimental.

A forte amizade entre Jesse e Cassidy é um dos principais fios condutores da história. Os dois se dão tão bem que a relação logo vira um bromance (um romance entre dois brothers of steel heterossexuais) e é impossível não sentir alguma coisa quando uma atitude do vampiro coloca a amizade em risco. Já o amor entre Custer e Tulipa é outro momento “óun”. Porque Custer é macho pra caramba, mas também é um romântico incorrigível, sentimento compartilhado por Tulipa. Ah, e eles transam feito coelhos.

TRAÇO FINO

Contudo, vale mencionar que a trama principal na realidade é um mero pretexto para a exploração destes temas acima citados. Se você reparar bem, verá que a trama principal quase não avança. E Garth parece fazer questão de enrolar bastante para desenvolver melhor esses outros temas. Isso pode ser visto como algo negativo, mas a mim, particularmente, não incomodou. Tirando só o desfecho, que considerei um pouco corrido, do tipo “só resta uma edição para encerrar a saga, então vamos espremer tudo nela”.

Quanto ao departamento de arte, nenhuma reclamação. Diferente da maioria dos títulos adultos, Preacher é belamente ilustrada por Steve Dillon, artista versátil, de traço limpo e que imprime muita personalidade a cada personagem. E o cara ainda desenhou todas as edições da revista e mais dois especiais, outro fato raro atualmente. Vale mencionar também o serviço do capista Glenn Fabry, com sua arte ultrarrealista e que consegue passar todo o humor negro da série.

Preacher foi o maior sucesso comercial da linha Vertigo desde Sandman, angariou excelentes críticas, prêmios e vendeu muito. A série teve 66 edições publicadas entre abril de 1995 e outubro de 2000 e mais seis especiais (sacou? 666!) que expandem a saga principal, tudo isso dividido em nove volumes, dos quais falarei semana que vem. Até lá!