O trabalho escravo na cidade grande

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Bem-vindo a mais uma trilogia de Pensamentos Delfianos. Dessa vez, vamos discutir o trabalho e a forma como isso afeta o indivíduo. Não deixe de acompanhar o DELFOS nas próximas duas semanas para pegar as outras duas partes dessa discussão. Agora vamos nessa.

Outro dia vi uma matéria no Fantástico sobre trabalho escravo. A matéria era basicamente o esperado. Tratava de algo em alguma comunidade rural, onde os trabalhadores não recebiam nada e trabalhavam de monte. Era uma denúncia dizendo que ainda existe esse tipo de coisa no Brasil. Deprimente e, é claro, não tem como não concordar com ela. Isso não deveria mais acontecer. Contudo, eu via aquilo e a única palavra que me vinha na cabeça é “hipocrisia”. Isso porque não é necessário irmos tão longe da “civilização” para encontrarmos escravos. Basta olharmos para a própria empresa onde trabalhamos. O nome “civilizado” para escravos é estagiário. Aliás, isso é tão senso comum que até surgiu o termo escragiário ou estagiotário. Mas quase ninguém parece se importar com isso. Pelo contrário, é encarado por todos com naturalidade.

Uma vez um professor manifestou completamente a minha opinião sobre o assunto, citando como as coisas funcionam na Europa. Segundo ele, no velho continente, ser estudante é considerado uma profissão. O jovem passa a manhã cursando as disciplinas, a tarde na biblioteca fazendo trabalhos e estudando e à noite, vai namorar, se divertir, enfim… relaxar. O sujeito garantiu que isso de fazer faculdade à noite é uma aberração dos EUA que a gente copiou. E, embora não tenha certeza se as coisas são exatamente assim na Europa, eu concordo que, num mundo ideal, é assim que deveria ser.

Pelo que a gente vê dos EUA (ou pelo menos é o que mostram nos filmes e séries), durante a faculdade, os estudantes trabalham em lanchonetes e afins para poder bancar seus estudos. Aqui, contudo, é ainda pior. A lei não considera estágio um trabalho, não estabelece limite de carga horária e nem exige remuneração. Confira abaixo o excerto que trata disso, extraído da Lei N. 6.494, de 7 de dezembro de 1977:

Art.4º O estágio não cria vinculo empregatício de qualquer natureza e o estagiário poderá receber bolsa, ou outra forma de contraprestação que venha a ser acordada, ressalvado o que dispuser a legislação previdenciária, devendo o estudante, em qualquer hipótese, estar segurado contra acidentes pessoais.

Art.5º A jornada de atividades em estágio, a ser cumprida pelo estudante deverá compatibilizar- se com o seu horário escolar e com o horário da parte em que venha a ocorrer o estágio.

Depois dessa, teve o decreto N. 87.497, de 18 de agosto de 1982, que não fez nenhuma alteração digna de nota nas coisas que vou criticar aqui. Agora que vimos a lei, vejamos como as coisas funcionam na prática, graças às brechas permitidas pelo semi-analfabetismo dos nossos legisladores (aposto que algum advogado vai se ofender com isso e, para provar seu caso, que me mande por e-mail alguma lei ou contrato escrito de forma clara e sem brechas, pois eu nunca vi.).

O estagiário acorda às seis da manhã para estar no estágio às oito. Ele só vai sair dali às seis da tarde, e terá, se tanto, uma hora de almoço. Nesse período, ele vai trabalhar pra caramba. Na verdade, vai ser a pessoa que mais trabalha na empresa inteira e quase todas as responsabilidades cairão nos ombros dele. Em troca de tanta responsabilidade e de tanto trabalho, ele não ganha absolutamente nada. Nem um vale-refeição ou transporte. Na verdade, ele paga para trabalhar, pois tem que bancar o transporte, o almoço, e muitas vezes o jantar. Afinal, ele sai do trampo às 18 horas e às 19 já começam suas aulas na faculdade, onde ele fica até as 23 ou, em alguns casos, 23:30.

A faculdade, por sua vez, não considera isso e enche o coitado de textos acadêmicos chatíssimos (e muitas vezes inúteis), resenhas de livros (para provar que leu) e trabalhos realmente trabalhosos. Mas considerando que nosso escravo sai de casa às sete da matina e chega depois da meia-noite, ele mal tem tempo de dormir as oito horas unanimemente recomendadas por profissionais de saúde. Quando, por Satã, quando, o escravinho vai conseguir fazer os trabalhos de faculdade?

Resposta: nos finais de semana. E são tantos trabalhos e livros que pegarão praticamente todos os sábados e domingos, além de muitas noites. O horário de lazer ou do ócio, necessário para qualquer ser vivo manter sua condição de… bem… vivo, vai para o espaço. O que temos, como resultado, são jovens em depressão, extremamente estressados, fatalistas e sem nenhuma esperança em relação ao futuro. É a crise dos 25, pela qual alguns sortudos passam incólumes, mas outros não têm tanta sorte.

Claro, a lei diz que o estágio não deve interferir com o tempo de estudos, mas como ela não especifica uma carga horária máxima, acabam usando as mesmas (e também absurdas) 44 horas semanais do trabalho “normal”. E se você não se submeter a isso, outros se submetem, e daí você se forma sem experiência e fica completamente perdido, pelo simples fato de que hoje é exigido de jovens de 25 anos pelo menos cinco anos de experiência profissional (além de outras coisas absurdas, como “boa aparência”).

Algumas pessoas, provavelmente os sortudos de dois parágrafos atrás, não passam por todo esse exagero. É possível encontrar algumas empresas “bondosas” que pegam estagiários para meio-período e outras até que pagam alguma coisa (uma mixaria, que não chega nem a bancar a faculdade, mas alguma coisa). Mas ambas são minoria. Ou melhor, isso depende muito da área. E eu sei bem disso.

Eu cheguei a trabalhar dois anos com criação publicitária. E essa descrição que apliquei se encaixa completamente no meu caso. Tem um anúncio que sai com alguma freqüência no Estado de S. Paulo dizendo algo como “Procura-se estagiário louco, para fazer campanhas publicitárias, trabalhar muito e ganhar pouco”. Eu sei, pois fui um desses estagiários loucos e trabalhei na agência em questão.

Aliás, no mesmo dia que entrei lá como estagiário de redação, ganhando algo em torno de 200 reais, uma secretária também começou. Era uma garota de uns 16 anos, que queria fazer ESPM e trabalhar com criação publicitária. O salário dela era acima de 300 reais. Nunca entendi a lógica da empresa nesse caso, e até comentei com a moçoila que, dali a seis ou sete anos, depois que ela tivesse estudado pra caramba para passar no vestibular da ESPM e estivesse no terceiro ano de faculdade, talvez ela podia pedir para os donos da agência promoverem ela à criação e, conseqüentemente, diminuir o salário. Dá para entender? ¬¬

Tem também um manual do estagiário de criação, se não me engano de autoria do redator Eugênio Mohallem, que tem uma frase que nunca esqueci: “Conseguir estágio em agência é quase tão difícil quanto arrumar vaga de astronauta na Nasa. E a vida dos astronautas é mais fácil, porque o Universo é infinito, enquanto as boas agências são pouquíssimas”. É a mais pura verdade. Entrar como estagiário em uma agência decente sem ter nenhum QI é quase impossível. E os contemplados com isso não vão ganhar nada (pelo menos não a maioria). Afinal, é tanta demanda para tão pouca oferta que seria até contra os princípios capitalistas da profissão pagar um funcionário desses.

Engana-se quem acha que os estagiários de criação pegam cafezinho ou coisas do tipo. O primeiro trabalho que eu fiz no meu primeiro dia como estagiário de uma agência foi um outdoor. Lá estava eu, um redator com absolutamente nenhuma experiência profissional, e que mal sabia usar programas gráficos e fui obrigado a aprender a ilustrar vetores na marra, fazendo o trabalho de duas pessoas (redação e direção de arte). E logo para um outdoor.

Ok, quando o trabalho ficou pronto e eu o vi exibido em lugares movimentados de São Paulo, como as Marginais, me senti quase como um pintor, foi super legal para o ego. No resto da minha experiência como redator publicitário, eu cheguei a fazer comerciais de TV, de rádio e muitos anúncios para revista. Ou seja, eu peguei trabalhos bem high-profile e de bastante responsabilidade. E era um estagiário não-remunerado.

Aliás, de todas as agências que eu trabalhei na minha breve carreira de redator publicitário, todos os funcionários de criação eram estagiários. Normalmente tinha uns quatro estagiários que eram quem realmente criavam as coisas e um diretor de criação que só orientava. E em uma dessas agências, onde trabalhei três meses de graça e fiz dezenas de campanhas que renderam alguns milhares de reais para eles, me negaram inclusive alguns CD-Rs para que pudesse gravar meu portfólio. Eu tive que voltar num outro dia com meus próprios CDs para poder gravar meus trabalhos. Só faltou exigirem que eu pagasse a energia elétrica que o computador gastaria enquanto gravava meus trabalhos. Não é revoltante?

Apenas para mostrar o outro lado, boa parte dos estudantes da ESPM, onde cursei publicidade, se dividiam entre a turma da criação (os f*didos e mal pagos, onde eu estava), e a turma do marketing. Mesmo entre os estagiários, tinha uma diferença considerável na condição. Uma amiga minha, estagiária de marketing, ganhava, na época, dois mil reais, salário considerável até para um efetivado. A média de “bolsa” para marketing, contudo, era de uns mil contos, enquanto os de criação pagavam para trabalhar – isso quando eram afortunados o suficiente para conseguir “uma vaga de astronauta na Nasa”. Alguns ainda mais sortudos, ganhavam um salário mínimo (na época uns 200 reais).

Contei essa historinha para mostrar as exceções (os estagiários sortudos que ganham para trabalhar) e as condições extremas que a lei permite. Agora compare os estagiários com os escravos do passado ou da matéria do Fantástico. Ei, pelo menos os assumidamente escravos ganhavam (ganham) casa e comida. O estagiário além de ter que bancar sua própria casa, comida e transporte, ainda precisa bancar a faculdade.

Ok, temos que ver as diferenças. O escravo, no caso, não tem para onde ir e é fisicamente preso pelo “seu mestre”. Um estagiário que cursa faculdade normalmente não é alguém financeiramente deficiente (gostei dessa expressão) e, pelo menos legalmente, pode abandonar a empresa quando quiser. O problema é que ele acaba se vendo obrigado a se submeter a essas humilhações (aliás, é horrível quando um funcionário vira e fala “ô, estagiário!” – bem semelhante com os senhores de engenho, que deviam chamar seus “funcionários” de “ô, escravo!”, ou ainda, “ô, negro”!) e péssimas condições de trabalho. E a lei, que deveria servir para evitar essas coisas, acaba apenas protegendo os interesses empresariais em ter mão-de-obra qualificada sem precisar assinar carteira e nem mesmo pagar pelo trabalho. É um escravo legalizado, o que talvez o torne ainda pior do que o que acontece nas zonas rurais, já que lá é tudo feito por baixo dos panos.

E por que o Fantástico (ou qualquer outro veículo da grande mídia) não faz uma matéria sobre isso, mostrando que os escravos da atualidade estão mais próximos do que muita gente imagina? Ora, porque isso deixaria nosso país mais próximo de uma reformulação nas leis, o que os obrigaria a pagar todos os seus funcionários. Não apenas aqueles que colocam sua carinha bonita na frente das câmeras, mas inclusive os que fazem todo o trabalho de verdade em troca de uma ou duas linhas de experiência profissional no currículo.

Considero esse tipo de coisa deveras enervante. Não quero, de forma alguma, desmerecer o tratamento desumano que os coitados das comunidades rurais sofrem. Mas existem também tratamentos desumanos a profissionais muito mais próximos de nós – e o pior é que essa tortura é socialmente aceita. E está mais do que na hora de alguém começar a falar disso. Lembra até aquela contradição da escola, onde você não podia tirar sarro dos negros (que gozavam quase de imunidade diplomática), enquanto o gordinho era zoado até pelos professores, lembra? Malditas sejam, contradições pós-modernas!

PS: A próxima PD, que sai semana que vem será um texto escrito por mim quando eu estava passando por uma dessas rotinas infernais de “trabalho/faculdade”. Talvez ajude a deixar ainda mais claro como uma pessoa pode se sentir nessa situação.

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