O povo contra um cinéfilo

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Leia todo o especial de 300:
Os 300 de Esparta – A graphic novel.
300 – O filme.
Sin City – O outro filme.
Frank Miller – O cara.
Pensamentos Delfianos – O povo contra um cinéfilo – O sofrimento de um cinéfilo na sessão de imprensa de 300.

Era uma vez um cinéfilo. Ele era um cara bem nervoso e estressado, principalmente por causa das pessoas que pareciam não saber conviver em sociedade. Não era um cara mau, apenas incompreendido, talvez até por ele mesmo. Como gostava muito de cinema, nada mais natural que o tal cinéfilo se tornasse crítico desta forma de arte tão especial. Do outro lado do reino, morava uma bruxa malvada, conhecida como Vadia das Trevas. Seu principal objetivo era sair pelo reino fingindo que estava trabalhando enquanto desafiava as leis da educação e da etiqueta de convivência social, simplesmente porque ela era má.

Quinta-feira, 22 de março de 2007. Dia que o esperadíssimo 300 seria mostrado para os jornalistas do reino. Quando a galera começa a entrar na sala, nosso querido cinéfilo vai até o lugarzinho de costume e senta. Ao lado, tem uma pasta e um copinho de água, mas ninguém sentado. Mal sabia ele que aquele material prenunciava a chegada da temida Vadia das Trevas, que logo se materializou no local e se manteve quieta e comportada até que a projeção começasse. Só então colocou seu maldoso plano em prática.

O plano da Vadia consistia em ficar com o celular aceso no colo durante toda a sessão. Quando percebesse que as pessoas ao redor estavam ficando acostumadas com a Hipnótica Luz do Inferno que o aparelho (que, dizem as más línguas, foi criado por Hades em pessoa) emitia, levantava o negócio e ficava mexendo nos botõezinhos, fazendo com que todos ao redor tivessem sua atenção desviada do filme, possibilitando que ela sugasse suas almas.

Várias vezes durante a projeção, sua luminosa arma chegou a tocar. Cansado com tanta falta de educação, o cinéfilo virou para a Vadia e falou “Você não pode desligar o celular?”, ao que ela respondeu negativamente. Nosso herói insistiu “Está tocando o filme inteiro!” e a vilã afirmou “Imagina, tocou só duas vezes”. “Ah, SÓ duas vezes”, pensou o cinéfilo, convencido de que se tivesse tocado apenas uma já seria pelo menos uma vez acima do recomendado. E respondeu “ficou aceso o tempo todo”, apenas para ouvir a desculpa de que o aparelhinho acende sozinho. Como assim? Que espécie de arma forjada nas mais vis e escuras profundezas dos mais temíveis vulcões pode acender sozinho? Até um sabre de luz pode ser desligado! Educadamente, o cinéfilo recomendou que a vilã guardasse o aparelhinho no bolso, quando realmente gostaria que ela colocasse em um lugar ainda mais escuro e vil. De onde ele nunca deveria ter saído, aliás. A Vadia das Trevas nada respondeu, mas manteve o celular no colo.

Incapaz de voltar a se concentrar no filme, que se aproximava de seu clímax, nosso herói novamente se dirigiu para a serva de Hades e sugeriu que ela colocasse o aparelho dentro da pasta que a assessoria de imprensa distribuiu. Nesse ponto, a vadia, cuja feiúra já beirava o assustador, se tornou ainda mais feia. Mudou de cor e tudo. Ela virou para o herói e começou a levantar a voz, dizendo que estava esperando uma ligação de trabalho muito importante. “Ok, então saia para atendê-la”, sugeriu nosso herói, sempre muito educado. Nesse ponto, como todos os seres vis, burros e sem cultura, quando se sentem encurralados e sabendo que estão fazendo algo errado, a Vadia das Trevas partiu para ofensas pessoais e sem qualquer valor argumentativo. Sua melhor resposta foi: “Eu estava sentada aqui primeiro”, o que trouxe ao nosso herói doces lembranças da época em que ele estava no primário. Bons tempos aqueles, quando celulares ainda não existiam.

Ok, delfonauta, a essa altura você já matou que o tal cinéfilo sou eu e a Vadia das Trevas é uma… bem… vadia das trevas. Então vamos cortar o tom lírico e ir direto ao assunto. Desde que o filme acabou estou pensando nisso. Analisei essa situação de todos os pontos de vista que consigo perceber. Consigo entender que ela tenha uma ligação importante para receber. Consigo entender que ela não goste de levar um puxão de orelha de um completo desconhecido. Mas eu não consigo entender, nem encontrar, nenhum ponto de vista que valide que uma pessoa fique mexendo ou falando no celular no cinema, durante um filme. Se você consegue, por favor me diga para que eu pelo menos tenha uma chance de conhecer o outro lado, porque de todas as formas que eu analiso isso, eu vejo tudo exatamente como está aí em cima, incluindo ela como vilã.

“Ora, Corrales, você está pedindo muito. Imagina se um jornalista que trabalha como crítico de cinema vai gostar de cinema?”. Pois é, delfonauta. Eu realmente diria que sim, mas a cada dia que passa fico menos certo disso. Talvez isso explique porque eles só falam bem de filmes chatos. E, a julgar pelas respostas dela, vemos exatamente quão limitada é a inteligência das pessoas que controlam a imprensa brasileira e, conseqüentemente, o povo.

Eu achava que metaleiro era burro, mas acho que o problema é mais embaixo. Não é uma tribo específica que é burra, mas o povo brasileiro como um todo. Vamos falar sinceramente e sem nenhuma hipocrisia agora: dificilmente uma pessoa pobre e sem nenhuma formação escolar conseguirá trabalhar como jornalista. Ainda mais na área cultural. Ou seja, é quase certo que todas as pessoas que aterrorizam minha vida nas cabines (isso para não falar de quando vou ao cinema em circuito comercial mesmo) vêm, pelo menos, da classe média (e muitos estão bem acima disso, com certeza), o que significa que devem ter tido acesso a bons colégios e faculdades. Logo, seu problema não é formação, mas outra coisa, algo que, pelo jeito, aflige todos os brasileiros, independente da classe social: falta de educação.

Brasileiro é burro e é folgado. A gente fura fila, a gente conversa no cinema, a gente suborna policiais. A gente somos inútil, né? A gente faz tudo isso sabendo que é errado, mas continua fazendo. E quem sai prejudicado? Todo mundo. Pois se hoje você furou uma fila se achando o espertão, amanhã alguém vai fazer isso com você. E ninguém vai reclamar. Simplesmente porque estão tão acostumados que se sentem até meio anestesiados com isso. Confortably Numb, como diz na música do Pink Floyd.

Ok, você pode conseguir se abster de conversas paralelas ou de celulares no cinema, e isso sem dúvida contribui para que você seja mais feliz. Mas será que você deveria mesmo fazer isso? Lembra no filme X-Men 2, quando o Noturno pergunta para a Mística porque ela não ficava disfarçada o tempo todo? Ela responde: “Porque eu não deveria precisar disso”. Eu não era o único incomodado pela Vadia das Trevas, mas por que fui o único a reclamar? E por que quando ela levantou a voz, outros simplesmente ignoraram a discussão ao invés de fazer algo a respeito?

Não é nem tanto a luzinha do celular que me incomoda, mas o princípio. O princípio de que eu estou preso em um país de pessoas burras que não estão nem aí umas para as outras, sem perceber que tudo volta para você. E não estou falando de carma, mas do simples funcionamento racional de uma sociedade. Vivemos em um estado de eterna ilusão, achando que realmente nos damos bem se furamos uma fila ou algo assim, sem perceber que vivemos juntos na mesma sociedade, uma sociedade que permite exceções, jeitinhos e demais aberrações intrínsecas ao Brasil. Não adianta os publicitários ficarem criando vinhetinhas com pipocas fofinhas ou cheias de referências cinematográficas pedindo de forma bem humorada para o povo desligar o celular. O brasileiro burro vai assistir, achar graça, e até concordar, mas vai agir como se não fosse com ele e continuar atendendo a porra do celular! *

Brasileiro é tão selvagem que está ficando cada vez mais próximo de um bicho. E, sinceramente, eu preferiria sair de casa e encontrar macacos como os estadunidenses acreditam que é aqui, do que encontrar pessoas como essa Vadia das Trevas. E, já que agimos como bichos, como diria Pavlov, talvez seja hora de começar a aprender por reforço negativo, já que os positivos (as vinhetas divertidas) não funcionam mais. É hora de multar, de confiscar celular. Quem sabe até de passar uma noite na cadeia. Duvido que alguém atenderia o telefone no cinema se existisse essa possibilidade. E, sim, sou a favor de um governo forte e que faça as leis serem cumpridas doa a quem doer, porque, do jeito que o nosso país está, não vejo outro caminho.

Lembro de um professor que comentou que estava na Alemanha quando o muro de Berlim caiu. De madrugada, um monte de alemães bêbados e, mesmo assim, ninguém atravessava a rua fora da faixa de pedestres. Corta para um jogo do Corinthians no Estádio do Pacaembu e para as ruas em volta, todas extremamente movimentadas. Ou então para qualquer show, de Metal ou de qualquer outro estilo “jovem”. É numa sociedade assim que você quer viver? Eu não. As regras existem para serem cumpridas, sem exceção. Mesmo que você esteja bêbado e não tenham carros nas ruas.

Nos EUA e em muitos outros países, você pode comprar um produto e, se ele não atingir à sua expectativa, pode levá-lo de volta à loja para reembolso total. Até mesmo CDs e coisas do tipo. Por que no Brasil consumidor não é tão respeitado? PORQUE A GENTE É BURRO! Se fosse assim aqui, ao invés de retribuir o respeito e confiança, a gente compraria um CD, copiaria e levaria de volta para a loja. Entre no eBay e veja quantas pessoas estão vendendo CDs, dizendo que “compraram só para passar para o iPod”. Aqui, nós simplesmente baixaríamos o CD da Internet. Por quê? PORQUE A GENTE É BURRO! A gente se acha espertão fazendo isso e o que acontece? O preço dos CDs aumentam. Se um CD vem riscado ou com problema, é um trabalhão para conseguirmos trocá-lo e se a loja não tiver mais o disco em questão, você vai ter que escolher outro, porque devolver o dinheiro, nem pensar. Nos outros países, as pessoas respeitam as empresas e as empresas respeitam o consumidor. A ponto de devolver o dinheiro se o consumidor simplesmente não gostar do CD que comprou. E ponto! A palavra dele é o suficiente. Mas não aqui. Porque aqui a gente é mais esperto, né? O pior burro é aquele que se acha esperto. E daí você compara as condições de vida nesses países com as do Brasil e acha que as únicas coisas que causaram isso foram as explorações de cinco séculos atrás e as políticas imperialistas do presidente George “Buxo”?

E meu caso é ainda pior, pois não estou apenas preso em um país de pessoas burras, como tenho muito dinheiro e tempo investido em um site cuja linha editorial, por definição, apetece principalmente pessoas mais inteligentes. Mas quantas pessoas realmente inteligentes existem nesse país? Será que existe espaço para crescer mais do que já crescemos ou todos os outros brasileiros não têm capacidade de entender qual é a do site e vão ficar nos escrevendo e-mails falando para sermos mais imparciais? Eu sabia que o DELFOS falaria principalmente para uma “elite intelectual” quando o comecei, mas acho que não tinha noção de quão pequena seria essa elite ou da falta de inteligência do nosso povo, como um todo.

Não estou falando de inteligência acadêmica (embora até mesmo nesse quesito o Brasil deixe a desejar), mas de inteligência social. É tratar bem seu compatriota e fazer o possível para não incomodá-lo quando ele não quer ser incomodado, seja com celular no cinema, música alta de madrugada, ligações de telemarketing ou o que mais você quiser pensar. É honrar sua palavra e seus compromissos, seja nas relações comerciais ou pessoais. É chegar no horário combinado. É não trair a confiança de uma pessoa que confiou em você (tadinha, tão inocente). No final, tudo se resume a uma única palavra: respeito. E essa palavrinha tem um significado poderosíssimo que, infelizmente, a maior parte de nós desconhece.

Se você concorda com esse texto, se manifeste. Você pode me mandar um e-mail, usar o espaço para comentários ou, melhor ainda, passe o link dessa matéria para seus amigos que você acha que também concordarão. Vamos fazer algum barulho para tentar começar a mudar as coisas. Se o celular tocar do seu lado, não se abstenha! Reclame! Se alguém chegar atrasado para um compromisso, exija saber o motivo. Confie plenamente nos seus amigos e ofereça os subsídios para que eles confiem em você. Pois se o povo não se respeita o suficiente para fazer coisas simples como desligar o celular no cinema ou simplesmente calar a boca quando as luzes se apagam, como esperar que nossos políticos respeitem o povo o suficiente para pararem de roubar nosso dinheiro ou de ficarem cobrando impostos cada vez mais absurdos sem dar nada em troca? É a história de que tudo volta para você. Hoje, você rouba um lugar na fila. Amanhã, pensando exatamente o mesmo que você pensou quando fez isso, um político rouba seu dinheiro. Bem-vindo ao Brasil.

* Não, nós não vamos começar a encher os textos delfianos de palavrões, mas acredito que a frase em questão não teria a mesma força se tirasse ele dali.

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