Vou começar esta pseudo-análise Returnal com uma metáfora que não saía da minha cabeça enquanto jogava. Imagine que você, garboso delfonauta, está em um chique restaurante. O chef é celebridade e cheio de estilo, com estrela Michelin e tudo, e finalmente teve o orçamento necessário para abrir um restaurante ambicioso. Ele se chama José Marques. Ele é hispânico, então a pronúncia correta do nome é algo como Rosemarque, entendeu?
Aí você vai no restaurante dele, passeio pelo qual esperou ansiosamente por anos. Ele vem pessoalmente trazer sua refeição: um belíssimo prato, colorido e apetitoso, com um cheiro delicioso. Você começa a salivar só de olhar. Daí, nosso amigo José Marques fala “E agorra, ze ingrredient secrreto” (apesar de hispânico, ele tem sotaque francês, simplesmente porque sim). Daí ele tira o pênis para fora, faz pipi no prato inteiro, fala “bon apetit”, vira as costas e vai embora. Foi assim que eu me senti jogando Returnal, meu camaradinha.
Daí vêm os fãs do José Marques, o povo que, como eu, já acompanhava sua carreira em outros pratos criativos e estilosos, como Outland (provavelmente foi na produção desse prato que ele adquiriu seu sotaque francês) e Nex Machina, e dizem o seguinte: ora, o prato é dele. Se o prato foi pensado para ter pipi, ele está em seu direito ao mijar em sua própria criação.
E é difícil argumentar contra isso. De fato, se o José Marques acha que pipi é um ingrediente essencial para o gosto que visualizou em seu prato, ele tem o direito de usá-lo. Afinal, ele não está obrigando ninguém a comer seus dejetos, está apenas sugerindo. Porém, para aqueles que não gostam de comer xixi, é difícil não pensar: “Precisava mesmo?”.
RETURNAL, DA HOUSEMARQUE
Returnal é, literalmente, o SEGUNDO exclusivo lançado para PS5 (o primeiro, e até então único, é Demon’s Souls). Aliás, como Demon’s Souls é um remake, dá para argumentar que Returnal é o primeiro jogo que só pode ser jogado em um PS5. Ele é desenvolvido pela excelente e sempre estilosa Housemarque, desenvolvedora da qual eu sou sinceramente muito fã. É a primeira vez que esses caras têm um orçamento bombado, suficiente para fazer um jogo em 3D. E é muito difícil vermos uma produção endinheirada de um estúdio que se especializou em fazer 2D estilosos.
E apesar de ser em 3D, extremamente atmosférico e – não dá para negar – altamente influenciado por Metroid, Returnal transborda o delicioso estilo da Housemarque. Nesta imagem, por exemplo, é bem clara a assinatura das pessoas que fizeram o lindo Resogun:
Completa esse tremendo visual e a atmosfera misteriosa um gameplay nada menos do que delicioso, outra especialidade da Housemarque.
RETURNAL E O DUALSENSE
Controlar a protagonista Selene é muito gostoso, graças à sua movimentação precisa, suas habilidades poderosas e, especialmente, o feedback do Dualsense. Os gatilhos vibram, oferecem resistência e, quando chove, fazem parecer que seu controle está estourando umas pipoquinhas. Returnal é um jogo extremamente tátil.
O uso do controle também tenta ser criativo, embora isso tenha dividido opiniões. No modo padrão, para mirar, você deve segurar o gatilho esquerdo pela metade, onde ele tem uma leve travinha. Empurrar até o fim mira o seu especial, um ataque superpoderoso que demora bastante para recarregar. É interessante, mas eu acabei mudando a configuração para o tradicional (gatilho esquerdo mira ataque normal, L1 mira o super), simplesmente porque me dava mais controle da ação. Mas acho positivo que tenham tentado usar o controle de formas diferentes e criativas, ainda que com resultados questionáveis.
A PRIMEIRA PARTIDA
Somando tudo isso, minha primeira partida com Returnal foi sinceramente fantástica. Eu explorava o primeiro mundo e ia adquirindo upgrades que abriam novos caminhos. No caso, esses upgrades do início são basicamente tutoriais para o uso de coisas como o super, o ataque com espada, os teleportes etc. Eu explorei absolutamente todo o mundo com um prazer enorme. Daí cheguei no primeiro chefe e morri pela primeira vez. Essa partida durou, literalmente, duas horas e meia.
E daí aconteceu o que eu já sabia que ia acontecer desde que o chef José Marques tirou o pênis pra fora. Eu cheguei no xixi.
O XIXI
Returnal é um roguelike. Em outras palavras, você tem as mesmas chances de vencer o jogo na sua primeira partida quanto na sua centésima. Ele não salva nada. Ou quase nada, na real.
Os upgrades/tutoriais que você consegue na primeira partida, como a espada, são permanentes. Porém, todos os itens, aumento de vida, buffs e armas são completamente deletados. Você volta literalmente para o começo do jogo ao morrer, sem absolutamente nenhum progresso.
SALVA OU NÃO SALVA
Ok, em nome da justiça, algumas pouquíssimas coisas são salvas entre as partidas: usar o mesmo tipo de arma por algum tempo modifica seu tiro – e essa melhoria se mantém quando você encontrar a mesma arma no futuro. Não é o dano que aumenta, pois isso é resetado ao morrer, é apenas uma modificação ao comportamento do tiro. Além disso, há uma moeda chamada ether, que é permanente. Essa moeda é raríssima. Para você ter uma ideia, ontem eu joguei por duas horas e encontrei um único ether. E se liga quantos ethers você precisa para poder afetar alguma coisa.
No caso, o Reconstructor aí em cima é o mais próximo que Returnal tem de um checkpoint. Ativá-lo custa seis ethers. Ao fazer isso, você renasce ali ao morrer, com o mesmo layout de mundo, itens, armas e teleportes ativados. Seria bacana se fosse permanente. Não é. Apesar de ser caríssimo (você precisa de cinco horas ou mais de jogo para juntar seis ethers), ele só te revive uma única vez, e só se você morrer na mesma fase. Caso morra na fase seguinte, volta para o começo do jogo. Caso morra duas vezes na mesma fase, volta para o começo do jogo. Pois é, xixi.
RETURNAL É ROGUELIKE
Returnal é um roguelike na progressão leonina, mas não no level design. Embora os mundos tenham um tanto de aleatoriedade, as salas em si são feitas à mão. Isso significa que você sempre vai passar pelos mesmo desafios, apenas em ordens diferentes. A saída da primeira para a segunda fase pode aparecer em cinco minutos ou em 30, e o que você vai encontrar nesse caminho (inimigos e upgrades) varia, mas as salas são as mesmas.
Pense em Street Fighter II, por exemplo. Você não sabe quando vai lutar contra a Chun-Li ou quais golpes ela vai usar, mas você sabe que vai encontrar a Chun-Li antes do Balrog.
Uma coisa legal e que diferencia Returnal da maioria dos third person shooters é que, como nos jogos de navinha que deixaram a Housemarque famosa, aqui você vê os tiros. Isso significa que você pode – e deve – desviar deles. Eu gosto disso, mas gostaria que o jogo não fosse tão punitivo quando você não consegue desviar (ver tópico “INACESSIBILIDADE” mais abaixo).
RETURNAL NÃO QUER SER JOGADO
Eu costumo falar por aqui de desenvolvedoras que parecem odiar o jogador. Porém, e estou sendo absurdamente sincero aqui, eu nunca havia tido a sensação tão forte de que um jogo não queria ser jogado. Vou citar alguns motivos.
Apesar de as partidas de Returnal demorarem horas, ele não salva durante elas. Ao contrário de Dead Cells, e tantos outros roguelikes, se você precisar parar de jogar, vai voltar do começo. Complicado, né? No meu primeiro dia com ele, por exemplo, eu joguei aquela partida de duas horas e meia, e ainda tinha tempo para jogar. Porém, não tinha TANTO tempo, então fui obrigado a parar de jogar.
IMPEDITIVO
O problema do save acima é impeditivo para muita gente. Adultos com trabalho e família NUNCA vão conseguir jogar por duas horas ou mais em uma única sentada. Pedir um save state durante a partida é perfeitamente compreensível, e muito fácil de implementar (qualquer emulador vagabundo feito por hobby tem save state). Porém, em vez de fazer isso, a Housemarque mandou um texto junto à cópia de review dizendo para incentivarmos os jogadores a usar o rest mode do PS5 para parar no meio de uma partida.
Isso por si só já é um absurdo, e acaba mostrando as fraquezas do PS5 em relação ao Xbox Series X (onde o quick resume é, literalmente, um save state). Afinal, colocar em rest mode impede de jogar qualquer outra coisa e deixa o console vulnerável a problemas graves em caso de queda de energia. Além disso, caso você deixe o console em rest mode durante a noite e role algum update, seu jogo será fechado sem aviso. Para combater isso, a Housemarque recomenda desligar os autoupdates. Olha o quanto eles estão exigindo dos jogadores para escapar de fazer algo tão simples quanto um save state.
O CORAÇÃO NO LUGAR ERRADO
Uma prova de que a Housemarque não está com o coração no lugar certo é em suas prioridades de update. Uma das poucas, talvez a única, colher de chá que o jogo dava era possibilitar que o jogador voltasse para a nave para se curar, caso apanhasse muito no primeiro mundo. Daí a Housemarque resolveu fazer um update. Não para implementar um save state, algo que as pessoas simplesmente PRECISAM para conseguir jogar, mas para tirar essa “cura”. Esse patch também tirou cheats que só podiam ser feitos por quem tivesse um teclado USB e possibilitavam coisas básicas como começar uma partida com outras armas. Lembra quando videogames tinham cheats? Bons tempos.
E sabe o que mais esse update fez? Literalmente apagou os saves dos jogadores. O pouco que o jogo salva – ether e modificações nas armas. Sim, isso foi um bug não esperado, mas sabe qual foi a resposta da Housemarque? “Se seu save corrompido subiu para a nuvem (algo que o PS5 faz automaticamente, a não ser que você ativamente desligue essa opção), perdeu, playboy!”.
Returnal é “errado” em muitos aspectos. Uma atitude comum em gamedesign é perceber quando o jogador está tendo dificuldades e dar colheres de chá para que ele possa progredir. Ou, se estiver jogando muito bem, dinamicamente tornar a coisa mais complicada. Por exemplo, em The Last of Us, você encontra mais munição quando está ficando com poucos tiros e vice-versa, menos munição quando está bem estocado. O vídeo abaixo dá mais exemplos e explica isso muito bem (está em inglês).
INACESSIBILIDADE
Aqui a coisa é totalmente oposta. Quanto melhor você joga, mais fácil Returnal fica. Para aumentar sua vida, por exemplo, você precisa pegar itens de vida com a vida cheia. Se não estiver com a vida cheia, pegar esses itens apenas recupera um pouquinho da barra perdida.
Outra coisa: matar uma sequência de inimigos sem ser atingido vai melhorando seu personagem. A visão fica melhor, seus ataques mais fortes, você absorve mais obolites (o “dinheirinho” que compra itens e upgrades que afetam apenas a partida atual). E sim, eu entendo a ideia de recompensar quem joga bem. Porém, isso significa que apenas quem estiver nos mais altos níveis de habilidade vai conseguir progredir. Sabe como Returnal “ajuda” quem está apanhando e sofrendo? Assim:
As cores ficam mais abafadas, os gráficos menos nítidos e uma borda vermelha aparece diminuindo seu campo de visão. Em outras palavras, não ser atingido melhora sua visão. Ser atingido piora. É um problema comum em videogames, a famosa “tela vermelha da quase morte”, e está mais do que na hora de pararem de fazer isso. Returnal tem uma barra de vida, não tem por que dificultar ainda mais a vida do jogador quase morto.
AH, SE DESSE PRA COMEÇAR COM UMA ARMA BOA
Também incomoda a arma inicial ser sempre a pior arma do jogo. Assim, você depende da sorte de o jogo permitir que você encontre uma arma aceitável. E, por algum motivo, sabe qual é a arma que você mais encontra?
Pois é, é super-raro você encontrar outras armas e, quase sempre, as primeiras que você encontra são outras pistolinhas que não são nem necessariamente melhores do que a original – normalmente têm apenas um super diferente. Isso é bem diferente de Dead Cells, em que você começa com uma arma aleatória, podendo, portanto, reiniciar se achar que não vai ter chances com a que recebeu. E agora você deve lembrar de quando eu falei que o jogo saiu com um cheat que permitia trocar de arma no início. E, esse cheat foi levado embora pelo update/xixi do José Marques.
Ah, e você só pode carregar uma arma por vez, então não espere criar um loadout mais estratégico, tipo com um rifle para longa distância e uma escopeta para combates mais próximos. É um ou outro. E só!
PRA QUE TANTA HOSTILIDADE?
Assim como o xixi do nosso amigo José Marques, é difícil entender por que tanta hostilidade contra o jogador em Returnal. Esse é um jogo importante. O primeiro exclusivo real de PS5. Um dos primeiros a custar 70 dólares. A primeira oportunidade da Housemarque de criar um jogo AAA. E, com todas essas responsabilidades, e tamanho talento criativo e manual no jogo, eles resolvem fazer xixi em cima dele todo.
O mais curioso é que os jogos first party recentes, como The Last of Us 2 e Gears 5 vêm abrindo caminho para videogames mais acessíveis. Jogos com os quais qualquer pessoa pode brincar. Returnal não dá apenas um passo atrás nisso. Ele faz uma curva de 180 graus e, no caminho de volta, cospe na cara de todo mundo que lutava por videogames mais acessíveis para todo mundo.
Poucas, realmente POUQUÍSSIMAS, pessoas conseguirão jogar Returnal. E isso não é simplesmente por ele ser um roguelike – é só ver a popularidade de Hades e Dead Cells. A imensa maioria do público simplesmente não vai ter tempo para as partidas longas que Returnal exije que sejam feitas em uma única sentada. E aqueles que têm esse tempo podem descobrir que não têm a habilidade exigida. E, nesses casos, não há nada a ser feito, pois, ao contrário da maioria dos roguelites, Returnal não fica mais fácil conforme você joga. Basicamente, se você não terminar ele “de primeira”, há muito pouco incentivo para tentar de novo.
ISSO NÃO É UMA ANÁLISE RETURNAL
O motivo é bem simples. Eu não sou bom o suficiente para Returnal. Apesar de ter jogado até literalmente não suportar mais a primeira fase (cerca de 20 horas), eu não consegui passar da segunda área, e não me vejo tendo essa habilidade na configuração atual do jogo.
Sim, sim, eu sei, eu não sou fã de roguelikes. Perder progresso, para mim, é o maior pecado que um jogo pode cometer, e essa é a principal característica do gênero. Porém, eu sou fã da Housemarque, adoro jogos de tiro e, cá entre nós, jogo-os relativamente bem. Eu cheguei longe em Dead Cells, e esperava chegar longe em Returnal também. E eu gostaria de chegar longe. Porque, voltando à metáfora do José Marques, quando você está comendo as partes do prato que não têm xixi, o prato é gostoso.
RETURNAL É O PRIMEIRO ROGUELIKE AAA?
Claro, eu valorizo o fato de que Returnal talvez seja o primeiro roguelike AAA já lançado, e escrevo este texto com pleno conhecimento de que o gênero não é para mim. Se eu soo um pouco chateado, é meu coração de fã da Housemarque falando. Eu vejo quão legal Returnal poderia ser caso fosse menos restritivo e exigente, ou simplesmente mais acessível, e me incomoda ele ser cabeça dura a ponto de não querer chegar lá.
Em geral, críticos de arte e cultura criticam os produtores que impedem que a arte seja como os criadores pretendiam. Porém, Returnal me parece um caso em que é quase inevitável que os produtores da Sony pressionem a Housemarque para deixar o jogo mais acessível. Control, por exemplo, ganhou um modo de invencibilidade que o deixou bem mais aprazível. Eu adoraria jogar Returnal com uma colher de chá semelhante.
BORA COLOCAR UNS CHEATS, HOUSEMARQUE?
Não sei se vão de fato colocar a opção de invencibilidade no jogo, mas me parece batata que Returnal será um jogo bem diferente daqui a um ano. No mínimo, ele salvará mais, terá mais upgrades permanentes e talvez até alguns checkpoints (no estado atual, ele permite voltar da quarta fase caso você consiga vencer as três primeiras). A Sony não vai deixar o primeiro exclusivo de PS5 ser algo que limita tanto seu próprio público.
E eu gostei o suficiente de toda a parte criativa dele para retornar a jogá-lo quando o xixi tiver secado. Porém, neste momento, eu diria que já comi xixi suficiente e gostaria que o chef José Marques aceitasse servir seu prato potencialmente delicioso sans-pipi. Se esse dia chegar, não tenha dúvidas que Returnal tem pode ser um dos melhores jogos de PS5. Mas ele ainda está longe disso no estado atual.