Gorjetas, taxas de serviços e mais gorjetas

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Uma coisa que realmente me incomoda quando saio para comer é a famosa taxa de serviço, os maledetos 10% que 90% dos restaurantes brasileiros acrescentam à dolorosa. Por lei, o consumidor não é obrigado a pagar esses 10%, que são 100% opcionais. Na prática, contudo, não é isso que acontece. Se você tem alguma intenção de voltar ao estabelecimento em questão, é melhor que nem passe pela sua cabeça pagar apenas pelo que comeu, ou na próxima vez seu prato pode vir com alguns ingredientes extras. E mesmo que você não pretenda voltar ao local, deve estar preparado para defender sua posição e encarar certo constrangimento, pois será sem dúvida cobrado pelo valor que falta, como se estivesse implorando por um desconto quando, na verdade, quem está implorando por uns trocados a mais, é o restaurante.

Para começar, a simples cultura da gorjeta, em si, já é uma aberração. Primeiro, por que a sociedade especifica que é necessário dar uns trocados extras para garçons e não o faz para outras profissões que muitas vezes têm salários ainda mais baixos? E depois, quem tem obrigação de pagar os garçons não são os clientes, mas os donos dos estabelecimentos. O cliente só tem obrigação de pagar o preço que consta no cardápio.

É sintoma de uma sociedade doente o fato de um empresário contratar um trabalhador e dizer que ele vai ganhar 400 reais fixos, mais um adendo de uns 1000 reais de gorjeta (nota: esses valores são completamente inventados, não tenho a menor noção de quanto um garçom ganha de fixo ou variável). É muito melhor para o profissional que está vendendo seu serviço já ter um salário fixo de 1400 reais do que ter que ficar torcendo para os clientes completarem a grana que necessita para pagar suas contas. Por outro lado, para o empresário, é mais vantajoso passar a responsabilidade de bancar o serviço dos seus funcionários para seus clientes. Afinal, se a casa não der lucro ou não tiver clientes, ele não vai precisar arcar com nenhum custo extra, apesar de todos os seus funcionários terem estado lá durante todo o tempo. E isso, meu amigo, é muito errado.

Melhor ainda para o empresário é voltar a raiva do garçom ao público caso este não pague a “gorjeta”. O pior é que isso dá certo, e é comum ver garçons imbecis sendo entrevistados na mídia dizendo que brasileiro é pão-duro e que dificilmente dá mais do que os 10% que vem na conta. Ou seja, o cara exige gorjeta e ainda espera que o cliente dê a mais? Ora, se eu vou comprar um carro, eu não dou 10% a mais só porque gostei do vendedor.

Claro, quando você contrata um serviço (no caso, um restaurante), o que você paga por ele será dividido em lucro, material e mão-de-obra e não tem nada de errado com isso. Todos os custos e o lucro almejado já devem estar embutidos nos preços que constam nos cardápios, INCLUINDO os salários dos garçons e demais funcionários do local. Funcionando dessa forma, é criado um tremendo mal-estar entre garçons e clientes, sendo que a culpa não é de nenhum dos dois. Na verdade, ambos estão sendo prejudicados em nome do eterno enriquecimento daqueles que já são ricos.

Isso gera alguns absurdos ainda piores e, como exemplo, conto uma historinha que aconteceu comigo em uma recente viagem a Blumenau. Lá, fui a um daqueles restaurantes de comida alemã com buffet livre, ou seja, self-service. Quando o garçom veio à minha mesa perguntar o que gostaria de beber, ele informou que o local não tinha menus. Tudo bem então. Quando fui pagar a conta, constatei que lá estavam os famigerados 10%. Ora, faça-me o favor, pagar serviço num restaurante self-service é o cúmulo. Fiz as contas e paguei o preço do buffet, da bebida e 10% da bebida, que era a única coisa que tinha sido, literalmente, servida. O garçom veio reclamar, dizendo que estava faltando. Eu expliquei minha posição e ele ainda disse que no menu estava escrito que eles cobravam 10% sobre tudo. Só que o mesmo garçom tinha informado que o restaurante NÃO tinha menus! Será que ele estava com preguiça de buscar, ou seja, de servir o cliente e fazer seu trabalho?

Outra vez, saindo da lanchonete TGI Friday’s, após um atendimento tosco e extremamente lento e, conseqüentemente, o não pagamento da taxa de serviço, o garçom veio atrás de mim perguntando se teve algum problema com a comida e apelando para a compaixão, dizendo que se eu não pagasse o serviço, ele não receberia. Ora, isso é algo que ele tem que negociar com o chefe, não com o cliente. Afinal, é com o Friday’s que ele tem um contrato, não comigo.

Mais um: o Habib’s de São Paulo funciona nesse esquema restaurante, com a comida servida na mesa. Quando fui ao Rio de Janeiro para o Rock in Rio, constatei que lá era o esquema McDonald’s. Ou seja, você vai até o caixa, paga, pega sua comida e leva até a mesa. Na hora que vi isso, pensei “que legal, aqui não deve rolar a taxa de serviço”. Portanto, para minha surpresa, todos os produtos lá já custavam na tabela 10% a mais que em SP. Ou seja, um kibe que em SP custava R$ 1,00 (preço fictício, pois minha memória não é assim tão boa para lembrar os preços de um fast-food em 2001) – e que receberia o acréscimo de 10% – no Rio já saia por R$ 1,10. Ora pois, independente de ser servido na mesa ou não, por que esse não poderia ser o preço de cardápio em São Paulo e assim abolirem a taxa extra, já que esse valor era claramente a meta do restaurante?

O último exemplo que quero dar é também o mais absurdo. Teve um dia que fui a um restaurante mais caro. Nesse caso, só o serviço, ou seja, os 10%, saiu por 12 reais. Para comparação, quando compro um jogo na Play-Asia, o frete sai mais barato que isso. Se você ainda não se tocou, comparando os valores, eu paguei mais para que o garçom transportasse um prato de comida da cozinha do restaurante até a mesa do que pago para que uma mercadoria seja transportada de Hong Kong até São Paulo! É ou não é ridículo?

Além desses motivos sociais, ainda considero um absurdo a simples cultura de recompensar alguém por fazer seu trabalho. Afinal de contas, tratar bem o cliente faz parte da obrigação de alguém que trabalha com o público. Em todos os parques da Disney, por exemplo, os funcionários são literalmente proibidos de aceitar gorjeta. Se você tentar dar gorjeta para um deles, a atitude que eles são treinados para ter é pedir que o cliente o elogie a um supervisor e, assim, a própria empresa os gratifica por um trabalho bem feito. É por essas e outras que a Disney serve de benchmarking em qualquer curso de marketing do mundo. Claro que isso não se aplica à Disney nacional e seu controverso relacionamento com a imprensa, mas isso é outra história.

O pior é que, no nosso país, a lavagem cerebral feita pelos donos dos restaurantes é tão eficaz que a gente até se sente mal se não der gorjeta para o entregador de pizza ou para o garçom da lanchonete. Sem falar que quem faz isso é normalmente rebaixado até mesmo pelos seus amigos, que confundem uma atitude ideológica e para o bem do país com mesquinharia. Aliás, isso é muito bem representado no filme Cães de Aluguel, onde o tremendão Steve Buscemi defende exatamente a minha opinião enquanto é zoado pelos amigos por não dar gorjeta. Nessa mesma cena, Buscemi pergunta por que eles não dão gorjeta no McDonald’s, mas dão nesses restaurantes. Você conseguiria responder isso? Se a idéia é dar um extra para quem lhe serve comida, os funcionários do palhaço assustador (e quem já foi no McDonald’s da Henrique Schaumann, em São Paulo, sabe o medo que dá aquele maldito torso pendurado) também se encaixam.

Agora convenhamos, colocar a gorjeta na conta (na forma dos famigerados 10%) é uma atitude tipicamente brasileira. Em um país com tantas dificuldades financeiras, ninguém pagaria mais do que o necessário. O que fazer? Os empresários bancarem seus funcionários? Claro que não, vamos colocar o salário deles na conta dos clientes e fica tudo certo. É o jeitinho que a nossa elite econômica deu para repassar sua responsabilidade sobre as classes inferiores para outras pessoas dessas classes inferiores, fazendo com que se sintam mal por algo que não tem nada a ver com elas. ¬¬

Sem falar que esses 10% são completamente arbitrários. Afinal, o trabalho que um garçom tem para levar até a mesa um filé de 40 reais é o mesmo que para levar um refrigerante de três contos. Se fosse para fazer sentido, deveriam pelo menos cobrar um preço por item, independente do valor dele.

O pior é que essa situação, como várias outras abordadas anteriormente nessa coluna, é praticamente sem saída. Como disse no início, se você gosta de um restaurante e pretende voltar lá, é praticamente obrigado a pagar o extra na conta. A única forma de escapar que vejo é torcer para que a próxima leva de empresários alimentícios seja mais honesta e coloque o necessário para bancar seus funcionários no preço do produto. E, de preferência, que treine seus garçons para recusar gorjeta, da mesma forma que faz o pessoal da Disney. Sacrifico meus bodes para que isso aconteça logo.

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