A Telltale Games foi fundada em outubro de 2004, alguns meses depois do DELFOS, por Kevin Bruner, Dan Connors e Troy Molander. Todos eles eram desenvolvedores da Lucasarts, e criaram a nova empresa motivados pela decisão da Lucasarts de parar de fazer adventures. Você sabe, aqueles jogos narrativos, cheios de puzzles obtusos e piadas nonsense, como Full Throttle e Grim Fandango.
Seu primeiro jogo foi um de poker, Telltale Texas Hold’Em (2005), exclusivo de PCs. Eles começaram a fazer lançamentos episódicos, estratégia pela qual ficaram conhecidos, com CSI: 3 Dimensions of Murder.
Porém, eles começaram a ganhar atenção dos nerds – e cobertura do DELFOS – quando de fato assumiram o manto de sucessores da Lucasarts e lançaram Sam & Max Save the World. Fãs de adventures devem se lembrar da dupla de detetives animais Sam & Max, que estrelaram um engraçadíssimo jogo nos anos 90. Este saiu originalmente apenas para PC (posteriormente viu lançamentos para Xbox 360 e Wii).
Outros jogos menos marcantes vieram, como outro CSI e um Wallace & Gromit, bem como mais uma temporada de Sam & Max. E daí veio o que, para mim, foi o verdadeiro ponto de virada.
TALES OF MONKEY ISLAND
Se você já leu uma boa quantidade de textos meus no DELFOS, deve saber do meu apreço pela série Monkey Island. Considero Guybrush Threepwood – PODEROSO PIRATA! – um dos personagens mais carismáticos dos games e simplesmente adoro o humor da série: como não rir das presepadas da malvada caveira Murray?
Pois em 2009, a Telltale lançou Tales of Monkey Island, um quinto jogo para a série que tanto marcou minha infância e adolescência. E para melhorar ainda mais, trouxe de volta o compositor Michael Land e o ator Dominic Armato, responsável por dar voz a Guybrush.
Embora na época eu já não gostasse mais de jogar no PC, era um novo Monkey Island. E como mais um ponto negativo, era mais um lançamento dividido em cinco episódios. Mas como fã da série eu precisava jogar. E assim o fiz. Foi dele que saiu o título desta matéria. Ao clicar no quarto de Guybrush, ele falava com voz machona: “Eu descanso quando morrer!”. Em seguida, completava com sua suave voz normal: “ou hoje mais tarde”. Gostei tanto dessa piada que uso esta frase com frequência na vida real.
Joguei o primeiro episódio. Joguei o segundo. Quando saiu o terceiro, já tinha esquecido toda a história, e acabei desistindo. “Um dia jogo tudo de novo”, pensei. Nunca o fiz. Mesmo quando Tales of Monkey Island foi lançado para PS3, ele ficou na minha wishlist por anos, até que meu PS3 foi desativado. Até hoje eu ainda quero jogá-lo, mas a essa altura isso só vai acontecer se ele for relançado para a nova geração, o que parece impossível.
MALDITOS LANÇAMENTOS FRAGMENTADOS!
Por um lado, nesta época eu admirava a Telltale por trazer de volta o gênero e as séries que marcaram minha infância. Por outro, eu simplesmente odiava – e ainda odeio, para ser sincero – esta tática de lançar os jogos em episódios separados por vários meses. Eu tenho muita dificuldade de me lembrar dos pormenores da história ao longo de tanto tempo. Assim como em séries de TV, eu prefiro ver tudo de uma vez, com intervalos menores, tipo um episódio por dia.
Em 2010, a Telltale lançou seu primeiro adventure com lançamento simultâneo para PC e consoles. Trata-se da terceira temporada de Sam & Max, intitulada The Devil’s Playhouse. Eu comprei a temporada toda no lançamento do primeiro episódio. Pensei na época que pelo menos eu ia ter um joguinho novo de tempos em tempos sem precisar pagar de novo.
Na prática, não foi bem assim. Aconteceu como com Tales of Monkey Island. Joguei o primeiro. Joguei o segundo. Quando saiu o terceiro, já não lembrava de quase nada. Fui baixando os episódios seguintes e deixando-os na minha lista de pendências, mas nunca terminei a história.
Duas coisas pioraram tudo: eu não tinha por Sam & Max o mesmo apreço que tinha por Monkey Island. Mas mais importante, eu comecei a perceber o motivo pelo qual a Lucasarts desistiu de fazer adventures: é um gênero que envelheceu muito mal. Eu simplesmente não tinha o mesmo saco da adolescência para ficar pegando itens e usando em todos os lugares torcendo para algum funcionar.
ENTRA HEAVY RAIN!
No mesmo 2010, a Quantic Dream lançou Heavy Rain. Como você pode ler na resenha supralinkada, o jogo pirou meu cabeção! Para mim, foi uma modernização digna dos adventures, que eliminou quase completamente os puzzles em nome de uma experiência narrativa imersiva. Convenhamos, todo mundo lembra com carinho dos clássicos da Lucasarts por causa das piadas e dos personagens, não por causa dos puzzles.
Heavy Rain não foi o primeiro disto que eu comecei a chamar de adventure moderno. A própria Quantic Dream lançou em 2005 o Fahrenheit, que já seguia esta proposta. Heavy Rain, no entanto, fez muito para popularizar o gênero.
ENQUANTO ISSO, NA TELLTALE
A Telltale continuou lançando seus jogos licenciados episódicos, seguindo o gameplay antigo dos clássicos da Lucasarts. Veio outro CSI, um Jurassic Park e até um De Volta Para o Futuro. Minha experiência com Monkey Island e Sam & Max, no entanto, fez com que eu desistisse da Telltale.
Daí ela fez uma jogada de mestre: o primeiro episódio de Back to the Future: The Game ficou de graça na PSN, ao mesmo tempo que tinha uma promoção para o resto da temporada. Sim, a esta altura o jogo já tinha saído completamente. Era de graça, então por que não tentar?
Baixei o primeiro episódio e o joguei do início ao fim. E ele conseguiu algo que nem o novo Guybrush nem o coelho psicopata Max alcançaram: me conquistou. Embora o gameplay ainda fosse do estilo antigo, a história era sensacional. Lembra como a graça do primeiro filme era mostrar como seria conhecer seus pais quando eles tinham sua idade?
Pois o jogo seguiu esta linha, e sua proposta era…
CONHECER O DOC QUANDO ELE ERA MOLEQUE
Isso gerou uma história tão boa e tão facilmente identificável quanto a do primeiro filme, e foi ajudado pelo fato de o próprio Christopher Lloyd dublar Doc. Michael J. Fox não faz o Marty moleque, mas aparece para dar voz a suas versões futuras.
Para quem gosta tanto de De Volta Para o Futuro quanto eu, o jogo da Telltale era um deleite. Eu esboço um sorriso quando me lembro da famosa trilha sonora do filme tocando vitoriosa quando você resolve um puzzle.
Gostei tanto do primeiro episódio que comprei os seguintes, e joguei todos em poucos dias, como Deus planejou quando inventou a contação de histórias com o Velho Testamento. Back to the Future: The Game, para mim, foi o último suspiro deste gênero que tanto alegrou minha infância mas que agora estava morto, o adventure clássico.
Depois disso, ainda joguei – e resenhei – outros jogos novos nesta linha, inclusive feito pelos criadores dos clássicos, como Broken Age e Thimbleweed Park. Mas não adianta, não dá para negar que é um gênero que envelheceu muito mal.
Felizmente, a Telltale percebeu isso. E em 2012 seguiu a lição da Quantic Dream e fez seu primeiro adventure moderno. Você sabe qual é. Você jogou. Se pá, até sua mãe jogou. O sucesso foi absurdo. O jogo é fantástico. É claro que estou falando de…
THE WALKING DEAD
O The Walking Dead da Telltale revolucionou os games. Apesar de eles terem seguido o paradigma de Heavy Rain, esta forma de combinar narrativas potentes com gameplay simplificado ficou conhecido como a fórmula da Telltale. Provavelmente ajudou nisso o fato de os roteiristas da Telltale serem infinitamente melhores que os da Quantic Dream. A Quantic Dream pode ter mais verba e tecnologia impressionante, mas não tem nenhum personagem tão querido quanto a Clementine.
The Walking Dead ganhou uma pá de prêmios e cobertura absurda da imprensa. Todo mundo jogou. Todo mundo se emocionou. Todo mundo gostou. O jogo trazia decisões realmente difíceis. A mais marcante provavelmente foi o destino do personagem Duck. Você atira no moleque infectado? Fica de fora da decisão? Eu joguei este capítulo uma pá de vezes para decidir em qual caminho levaria a história. E aí apareceu a fraqueza da fórmula: sua decisão não significava muito.
Faz sentido quando pensamos no roteiro. É melhor construir uma história excelente (o que a Telltale fez dezenas de vezes) do que fragmentar e diminuir o impacto. Assim como a vida real, suas decisões nos jogos da Telltale não afetam a história, a não ser por pequenas repercussões imediatas (tipo a reação de outro personagem ao que você falou). Não interessa o que você faça, Duck tem seu destino traçado desde o primeiro episódio.
Assim como eu descobri isso já em The Walking Dead, todo mundo foi descobrindo ao longo dos próximos jogos. Mas a Telltale continuava insistindo no fato de que a história mudava de acordo com suas decisões. Talvez este tenha sido seu principal erro, vender seus jogos como algo que não eram.
VIDA PÓS-ZUMBIS
Após The Walking Dead, a Telltale lançou Poker Night 2, mas depois disso, todos os seus jogos seguiram a fórmula do adventure moderno: histórias interativas cheias de decisões difíceis. A sua influência na indústria foi enorme. De repente, até jogos de outros gêneros, como Resident Evil e Hitman estavam fazendo lançamentos em episódios.
Isso sem falar de outros adventures modernos que seguiram a cartilha à risca, dos quais provavelmente o mais famoso é Life is Strange. Meu influenciado preferido, no entanto, é The Council, que misturou a fórmula Telltale com pinceladas de RPG e, somado à ótima história, se tornou um jogo realmente especial.
Mas a Telltale continuou firme com seus adventures modernos, e cobrimos quase todos eles por aqui. Lançaram outros Walking Deads, um excelente baseado no gibi Fables, chamado The Wolf Among Us e até duas temporadas do Batman.
Além da fórmula decisões + gameplay simplificado, todos os jogos da Telltale traziam histórias sérias e altamente dramáticas, que deixavam um caroço na garganta enquanto você assistia/jogava.
Até por causa disso, dois de seus lançamentos me marcaram mais.
MANTENDO VIVO O HUMOR DA LUCASARTS
Refiro-me a Guardians of the Galaxy, baseado nas HQs da Marvel e, especialmente, Tales From The Borderlands. Este último, inclusive, eu diria que ultrapassou fortemente a qualidade da matriz Borderlands, que é apenas um RPG focado em loots da Gearbox.
Nas poucas vezes que a Telltale investiu na comédia após mudar para adventures modernos, ela mostrou que realmente merecia o posto de sucessora da Lucasarts, criando aquele humor nonsense fofinho que era tão presente nos clássicos dos anos 80 e 90.
Uma das cenas mais marcantes veio justamente de Tales From the Borderlands, quando o seu personagem se envolve em um tiroteio contra colegas de trabalho, usando… arminhas de dedo.
Este momento é dirigido como uma apoteótica cena de ação, mas os personagens estão literalmente apenas apontando uns para os outros e fazendo barulhos de tiro com a boca. Isso não os impede de pular sobre mesas, entrar em câmera lenta e outros clichês de filmes de ação. A coisa é de ficar com dor no peito de tanto rir.
A Telltale se dava tão bem com IPs de outras empresas que eu torcia para que ela lançasse um adventure moderno contando com personagens próprios. Acredito que seria muito especial mas, infelizmente, nunca aconteceu.
TUDO QUE É BOM TEM UM FIM
Ao longo dos anos, eu me tornei um grande fã da Telltale. Diria que, desde que começaram a investir na “fórmula Telltale”, nunca lançaram algo ruim. E apesar de seus jogos não darem a liberdade de escolha que prometem, todos contavam excelentes histórias, que não deixavam nada a dever para mídias unicamente narrativas, como o cinema.
Infelizmente, aparentemente o sucesso comercial foi mais aparente do que real. Em 21 de setembro de 2018, a Telltale despediu quase todos os seus funcionários. Os 25 que sobraram iriam apenas terminar a adaptação do jogo Minecraft: Story Mode para o Netflix.
Quando isso aconteceu, a Telltale estava entre os lançamentos dos quatro episódios de The Walking Dead: The Final Season, o que deixou o futuro dele incerto. Eventualmente, a empresa do próprio Robert Kirkman, Skybound Games, assumiu o compromisso de terminar a temporada, inclusive contratando algumas das pessoas que estavam trabalhando no jogo e perderam o emprego de forma tão brusca e injusta.
A SACANAGEM DA TELLTALE GAMES
Para piorar tudo, os funcionários demitidos de surpresa não receberam os pagamentos legais a que tinham direito, e perderam seu plano de saúde na mesma semana. Pela cobertura da mídia especializada, conhecemos várias histórias dramáticas, incluindo uma pessoa que tinha acabado de mudar de cidade para assumir o emprego. Mais ou menos a mesma coisa aconteceu na mesma época com quem trabalhava na Editora Abril aqui no Brasil, o que é uma pena para todos os envolvidos. Em uma frase imortalizada pela própria Telltale, “seus funcionários vão lembrar disso”.
É um final bem triste e, convenhamos, um tanto canalha, para uma empresa tão carismática e com tanto talento quanto a Telltale. Poucas desenvolvedoras de games conseguiram fazer com que seu nome se tornasse sinônimo de um gênero. Hoje, falar que algo é “estilo Telltale” diz muito para qualquer fã de games e de boas histórias.
A empresa deixou um legado sensacional, com algumas das melhores histórias já contadas nos games, fazendo jus ao seu nome. Ela nos fez rir, nos fez chorar e nos fez ficar angustiados. Não dá para pensar em uma sucessora mais digna para a Lucasarts. E, como sua inspiração, vai deixar saudades.