Hoje vamos falar de um filme estranho. Uma cinebiografia de uma pessoa fictícia. Um dos poucos longas que eu vejo em anos que é diferente – para o bem ou para o mal. Nesta minha humilde crítica Tár, vou elaborar meus argumentos. Me acompanha?
CRÍTICA TÁR
Pois é, apesar do que pode parecer, Lydia Tár (Cate Blanchett) não é alguém que existiu, mas uma personagem criada para este filme. E isso, por si só, já causa estranhamento. Afinal, tudo, do título à fome por prêmios, grita cinebiografia oscarizável que homenageia alguém famoso. Mas não é.
Dito isso, ele também toma várias decisões criativas que tornam o filme estranho e diferente. Isso, por um lado, me fez gostar mais dele. Afinal, com estes 19 anos de trabalho no DELFOS, acabei vendo tantos filmes que quase tudo hoje me parece repetido. Tár não. Ele é diferente.
Do lado negativo, o fato de sair das fórmulas de narrativa e roteiro tradicionais, faz com que seja também um longa insatisfatório. Sabe aquelas historinhas com final feliz, em que tudo termina amarradinho e bonitinho? Este não é um exemplo disso.
PICHE!
Antes de elaborar estes pormenores, permita-me dar uma ideia do que o filme trata. Ele não é uma cinebiografia daquelas que mostra a ascensão de alguém à fama. Já no primeiro minuto, é estabelecido que a Lydia Tár é uma maestrina de renome. O longa acompanha um período bem curto de sua vida. E sim, eu só descobri que o feminino de maestro é maestrina hoje. Maestra até agora não me parece errado. Para você parece?
A questão é que nossa amiga não é exatamente flor que se cheire. Pela minha interpretação da história, ela tem um apetite sexual voraz e predatório, o que eventualmente a coloca em maus lençóis.
Por que eu fiz as aspas falando da “minha interpretação”? Então…
ENTRE TARDE, SAIA CEDO
Uma das primeiras coisas que um roteirista aprende é que o desejável é “entrar tarde, sair cedo”. Traduzindo o ensinamento, você deve começar suas cenas um pouco depois do que parece natural, e encerrar um pouco antes. Isso mantém o leitor/espectador envolvido e curioso, disposto a completar mentalmente o que não foi claramente dito, e evita que tudo fique muito mastigadinho.
Pois Tár leva este ensinamento às últimas consequências. Durante boa parte do filme, ele te dá tão poucas informações que é bem difícil você saber o que está acontecendo. Sabe quando uma câmera de segurança filma um assalto e você só vê partes do que rolou? É por aí.
ESCONDER X MOSTRAR
Um exemplo claro é a história da Krista, personagem importantíssima para o filme, mas que não aparece nenhuma vez. Desde o início, sabe-se que ela tinha uma bolsa de estudos e causou problemas. Mas nunca fica claro o que de fato aconteceu? Será que Tár abusou sexualmente dela? Prometeu benefícios profissionais em troca de favores sexuais? A venceu em uma partida de Mario Kart? Nunca fica claro. A única coisa que fica claro é que a Krista é uma pedra no sapato da maestrina.
Outro exemplo que mostra quão intencional deve ser isso é que boa parte do filme é falado em alemão. Sem legendas. Ou pelo menos na sessão de imprensa não tinha legendas nestas cenas. Todas? Não! Alguns raros momentos falados em alemão são legendados. Em outros, cenas inteiras com longos diálogos rolam, sem a gente ter a menor noção do que está sendo falado. As legendas traduzem apenas algumas palavras soltas faladas em inglês. Você gosta disso? Eu não. Como disse, o filme levou a ideia de não mastigar longe demais.
NÃO É O QUE VOCÊ ESPERA
Outro problema que foi forte para mim é que as primeiras cenas colocaram minha mente em um estado de espírito que o filme simplesmente não mais alimentaria. O longa começa com uma entrevista em que Tár fala sobre o papel do maestro – algo que eu, particularmente, sempre questionei. Ela elabora sobre a diferença que a interpretação dele pode fazer em relação a outras versões. Good stuff para quem ama música, como eu e provavelmente você. E continua.
Um pouco depois, Tár está dando uma aula, e cita Bach. O aluno diz que não gosta de Bach por causa da vida misógina que ele levou. Daí começa um discurso sobre separar o autor da obra, e aponta o fato de que o aluno está limitando sua própria evolução intelectual ao se proibir interagir com a obra de Bach. Sensacional também. O aluno sai da aula xingando a professora, mesmo ela não tendo ofendido ele, levantado a voz ou feito nada de errado. Estava apenas debatendo ideias, algo que considero sempre positivo. Mas a gente sabe que esse tipo de opinião que se julga “moralmente correta” costuma fazer as pessoas ficarem bem agressivas quando questionadas.
HOGWARTS LEGACY E O ALCATRÃO
Isso tudo falou muito comigo. Eu amo música, e mesmo aqui no DELFOS, este assunto de separar o autor da obra é uma discussão constante. Mais recentemente, você deve saber das polêmicas envolvendo o vindouro jogo Hogwarts Legacy. Tem gente falando que fazer review dele significa que o jornalista é fascista e compactua das opiniões da J.K. Rowling. Extremamente radical, eu acho.
Ao mesmo tempo, devo eu, que costumo resenhar jogos deste naipe com frequência, simplesmente ignorá-lo por não querer ser chamado de fascista? Ou arrisco escrever algo que me classifique, na mente dessas pessoas, como tal? Se começar a falar de política na análise Hogwarts Legacy, vou acabar me estendendo e escrevendo um monte antes de falar do jogo. Também não é ideal, pelo menos não no âmbito de um review. Mas se faço um texto separado falando da política e outro do game, arrisco que a turma de paraquedistas do Google veja minha análise e venha me chamar de fascista sem ver o outro.
Ora, eu mesmo escrevi resenhas de todos os filmes de Harry Potter quando eram lançados, antes de sabermos das ideias políticas da Rowling. Acho até que deve ter um ou mais textos aqui no DELFOS de filmes com o Kevin Spacey antes de ele virar uma bomba atômica de Hollywood. Deveríamos apagar todos em precaução?
CAMINHO OPOSTO
Tá vendo como começar a falar sobre política estende o texto? E isso é só uma cena de Tár, que vem logo no início. Minha motivação em citar essas cenas é que fiquei com a impressão que Tár seria um filme sobre música e arte. Que discutiria esta linguagem tão arcana e capaz de nos fazer sentir emoções que não sentimos de outras formas.
Que discutiria o papel do maestro, a separação entre criador e obra, a importância da criatividade e tudo mais que o assunto pode render. Cara, seria um filme sensacional! Porém, depois dessa abertura fantástica, ele vai para o caminho oposto, e passa a focar quase exclusivamente nas presepadas sexuais da maestrina.
CRÍTICA TAR E AS DISCUSSÕES EM ABERTO
Não me entenda mal, isso poderia ser interessante. E inclusive me fez pensar como poderia ser interessante uma cinebiografia do Harvey Weinstein. Mas não é o tipo de filme que seus primeiros 20 minutos me educaram a esperar. Assim, talvez numa segunda assistida, sabendo de antemão o foco da narrativa, gostasse mais de Tár. Mas ele foi traído pela sua abertura, que prometia um longa que eu sinceramente preferia ver. É a força da primeira impressão.
No final das contas, eu gostei de Tár pelo que ele faz de diferente. Por ser o contrário de uma história edificante, por ousar mostrar e falar bem menos do que o normal, às vezes em detrimento da sua própria narrativa. É um bom filme, sinceramente melhor do que eu esperava que fosse. Mas seu maior triunfo são as discussões que apresenta, e deixa em aberto.