O mundo que recebe esta análise Far Cry 6 é muito diferente do que recebeu Far Cry 5. Desde então, muita coisa mudou. Há atualmente um verdadeiro cansaço dos jogadores em relação a jogos de mundo aberto com mapas enormes e infindáveis checklists de atividades. E parte disso foi obra da própria Ubisoft, que ao longo de uma década ou mais, lançou quase exclusivamente jogos assim, cada vez mais estufados e complexos. Em geral, de alta qualidade, sim, mas também em alta quantidade. E o mais recente impulso em transformar todas suas séries em RPG/Live services contribuiu sobremaneira a esse cansaço.
Some a esse cansaço as atuais acusações de maus tratos a funcionários, e há naturalmente alguma resistência a jogos como Far Cry 6. Diante de todo esse cenário, como se sentir ao jogar uma nova interação desta que, anos atrás, era uma das minhas séries preferidas? Bom, farei o possível para elaborar esses sentimentos nas humildes linhas a seguir.
ANÁLISE FAR CRY 6
A fórmula de Far Cry mudou bastante em Far Cry 5. Em parte foi positivo. Não era mais necessário fazer atividades mundanas como escalar torres ou caçar animais para tirar limitações arbitrárias e poder enxergar o mapa ou carregar mais armas, respectivamente. Por outro lado, grande parte da qualidade de Far Cry vinha de suas missões de história que traziam a qualidade de um jogo de ação linear.
Essa última parte, em especial, vem rendendo endinheirados frutos para a Sony, em lançamentos como Marvel’s Spider-Man e Ghost of Tsushima. Estes jogos se apropriaram da fórmula clássica da Ubisoft em fazer mundos abertos, ao mesmo tempo em que a própria Ubisoft se afastou deles rumo aos RPGs live services ou, se preferir, a covers de The Witcher somados à armadilha da monetização em excesso.
Já falei aqui outras vezes, mas particularmente foi a Ubisoft, em especial Assassin’s Creed, que me fez ter prazer por jogos de mundo aberto. Infelizmente, foi também a própria Ubisoft que, devido ao excesso de lançamentos mapas cada vez mais enormes me cansou, talvez definitivamente.
ANÁLISE FAR CRY 6: A DESCRIÇÃO
Far Cry 6 vai pelo caminho certo. Sim, é tudo extremamente monetizado. Tem roupinhas, tem “economia de tempo” e, claro, tem o season pass. Sim, o mapa é enorme. Grande demais. Devo dizer que eu fiquei até empolgado quando comecei a jogar, mas quando dei zoom out no mapa e vi que ele era muito maior do que a ilha inicial, me deu uma preguiça tão forte que eu quase parei de jogar.
Porém, ele tenta trazer de volta um pouco das missões de lineares de Far Cry 3, ao mesmo tempo que não exige que o jogador faça atividades maçantes para se livrar de limitações forçadas. Ele é totalmente bem sucedido neste segundo aspecto. Embora haja um grande número de atividades opcionais, você só é obrigado a lidar com elas se desejar. Coisas como perseguir e destruir comboios, por exemplo, que eu já fiz antes em muitos outros jogos e nunca me divertiu, podem ser simplesmente ignorados aqui. A não ser, claro, que você queira limpar totalmente o mapa.
Por outro lado, há atividades prazerosas, que são as mesmas de sempre, mas ainda divertem. Há as tradicionais bases limitares – e suas versões júnior, os checkpoints – corridas com veículos bem variados e até construção de base, que aumentam o equipamento disponível (fique ligado, a única forma de conseguir a indispensável wingsuit é construindo uma dessas bases).
Já quanto ao retorno das fases lineares, vamos começar um novo intertítulo.
FASES LINEARES E O NOVO INTERTÍTULO
Não espere que as missões de história de Far Cry 6 tenham a qualidade das de Far Cry 3. Tem muitas missões típicas de mundo aberto, do tipo “roube um veículo específico”. Também tem muita coisa de jogos cooperativos, do tipo “proteja uma base até a barrinha chegar nos 100%”. E, pior de tudo, tem umas que exigem achar uma porrada de coisas não marcadas no mapa. A mais irritante dessas envolve achar e destruir cerca de 50 ovos de galinha em uma área relativamente grande. Outra exige entregar cartas para todos os filhos de um caboclo tendo como “dica” foto da área em que eles moram. Isso em um mapa que é maior do que a Finlândia, basicamente impossível de explorar tudo.
Porém, há algumas realmente boas. Em especial, as caças ao tesouro podem levar você a explorar cavernas, casas assombradas ou, em um caso especial, uma base usada por um casal de piratas séculos atrás. São missões mais narrativas e cerebrais, com maior valor atmosférico e muito mais plataforma. Eu costumava ligar a Ubisoft, na época dos Assassin’s Creed clássicos e Prince of Persia, a escaladas, e Far Cry 6 traz um pouco disso de volta. E é muito bem-vindo.
A melhor delas é a primeira missão da narrativa das lendas de 67. Nessa, você deve escalar uma montanha através de uma trilha bela e interessante, cheia de pontos para olhar. É turismo virtual da mais alta qualidade.
RPG, MAS NEM TANTO
Felizmente, depois do fiasco do Ghost Recon Breakpoint, a Ubisoft freou um pouco na RPGização de seus jogos. Far Cry 6 não traz o loot cheio de estatísticas que parecia marcar o futuro da série em New Dawn. Mas traz loot. Os equipamentos aqui trazem pequenos upgrades que anteriormente estavam em skill trees.
Algumas roupas são melhores para combate. Algumas para stealth. Outras reparam os veículos automaticamente conforme você os usa. A ideia é que você alterne entre elas de acordo com a situação. Eu não fiz isso. Simplesmente escolhi uma e joguei o jogo inteiro com ela. Como você sabe, não tenho saco para ficar trocando de roupa nem na vida real, que traz ganhos reais em estatísticas, muito menos em jogos. E menos ainda em jogos em primeira pessoa.
O lado negativo desse novo sistema é que é simplesmente impossível se tornar um verdadeiro super-humano, como acontecia no final da campanha dos anteriores. Quando você praticamente completava toda sua skill tree, sabe? Aqui você pode ter, no máximo, uma meia dúzia de upgrades ativos a qualquer momento, de uma seleção de algumas centenas (quiçá milhares). E isso impacta negativamente a sensação de construção de personagem, de power up mesmo.
Ainda sobre o aspecto RPG, cada área do mapa tem um “nível recomendado”. Se você entrar em uma marcada com a caveirinha, prepare-se para sofrer. Eu não costumo gostar disso, de encontrar um inimigo que seja invencível só porque ainda não subi de nível o suficiente para vencê-lo. Porém, isso não aconteceu aqui. Até minha exploração natural me mandar para as áreas de nível mais avançado, eu já estava suficientemente forte para encará-las. O que realmente afeta seu dano, no entanto, é seu equipamento.
ATAQUES APROPRIADOS PARA INIMIGOS APROPRIADOS
Este talvez seja o ponto mais fraco do combate. Você precisa customizar suas armas para várias situações. Inimigos normais precisam de balas “moles”. Quem usa armadura necessita de balas “anti-armadura”. Veículos precisam de “balas explosivas”. E assim por diante. Se você não usar a munição específica para o inimigo em questão, elas quase não farão dano. E isso é bem chatinho. Bioshock tinha um sistema assim, mas você podia alternar entre os tipos de balas durante a ação. Aqui isso só é possível em pontos específicos do mapa. Então é necessário se preparar antes, tendo de preferência uma arma com cada estilo de munição.
Algo que me cansou bastante nos meus primeiros dias com Far Cry 6 foram os helicópteros. Eles devem ser derrubados, claro, com lança-foguetes. Mas eu simplesmente não encontrei lança-foguetes naturalmente. Quando um aparecia na minha frente, eu era obrigado a usar snipers, metralhadoras e o que mais tivesse no meu arsenal. Chegou a hora que eu simplesmente desisti, chamei o Google e perguntei “aí, Google, qual é o melhor lança-foguetes de Far Cry 6 e onde eu pego ele?”. O nosso líder supremo do Vale do Silício respondeu, e eu fui atrás do equipamento para parar de ter problemas.
Deve ter, sei lá, uma dúzia de tipos de armas diferentes em Far Cry 6 (rifles, escopetas, revólveres, lança-foguetes, etc). E cada tipo desses tem mais uma pá de armas específicas, tanto customizáveis, como “únicas” (essas já vêm pré-customizadas). O gameplay ficaria muito mais dinâmico se você pudesse equipar uma de cada tipo e alternar entre elas pelo círculo de seleção. Porém, é possível equipar apenas três armas “grandes” e um revólver. Assim, eu ficava sempre com um rifle automático, um sniper silenciado e na terceira eu tinha que alternar de acordo com a situação, entre escopeta, lança-foguetes ou as armas “Resolver“, que trazem as mais criativas e absurdas, como uma que atira CDs e toca Macarena, por exemplo.
ANÁLISE FAR CRY 6: TIRANDO O FASCISTA DO PODER
E agora que falamos bastante do jogo em si, vamos falar um pouco de sua temática e história. Far Cry 6 se passa em Yara, uma ilha hispânica inspirada por Cuba. O presidente de Yara, Antón Castillo, é interpretado por Giancarlo Esposito (o Gus, de Breaking Bad). Ao contrário de Vaas e Pagan Min, ele não é um doido carismático. Na verdade é até real demais.
Castillo é um fascista que promete transformar Yara em um paraíso. Foi colocado no poder através do voto direto, mas desde então se tornou um ditador cruel, com métodos altamente questionáveis. Ao contrário dos anteriores, que a toda hora te ligavam e conversavam com você, Castillo é mais um típico presidente. As cenas em que ele de fato tem contato com o herói são bem poucas. Em geral, você apenas vê algumas reações dele, em interlúdios em pontos específicos da história.
Far Cry 6 mantém o estilo narrativo da série. Trata de temas realmente sérios, mas também traz um humor bobinho e inocente (e que me agrada), como um jacaré de camiseta chamado Guapo. A questão é que aqui, no Brasil de 2021, sua parte séria atinge mais perto do coração.
CLOSER TO THE HEART
Graças ao olho furado de Odin, não estamos no ponto de ser comum nossos cidadãos serem assassinados gratuitamente por funcionários do Estado. Eu gostaria de dizer que isso não acontece aqui há décadas, mas não seria verdade. E eu, particularmente, tenho muito medo de isso se tornar comum. No caminho atual, eu diria que estamos a uns cinco anos de decisões erradas de o Brasil se tornar como Yara. E o medo enorme que eu tenho disso deixa mais difícil achar graça em uma arma que toca Macarena.
Não acho que Far Cry deveria ter mudado seu estilo “sério, mas com humor”, nem que haja algo errado com isso. Mas como um brasileiro do século XXI, alguém que tem familiares e amigos que literalmente fugiram do país enquanto ainda dá tempo, é difícil não ser afetado por uma história como essa. A história de Far Cry 6, como os anteriores, visa ser política, mas também divertida. Porém, seu lado político pega muito mais pesado para nós do que os anteriores.
ANÁLISE FAR CRY 6 É COMFORT FOOD
Uma vez meu colega Daniel Villela me falou algo que me marcou. Referindo-se ao álbum Painkiller, do Judas Priest, ele disse que era um disco gostoso de ouvir, mas que parecia ter sido criado com esse objetivo, sem pretensões artísticas. É mais ou menos assim que eu vejo Far Cry 6 como jogo.
A verdade é que Far Cry 6 é gostoso de jogar. Ele é extremamente belo, com modelos de personagens altamente reais. A quantidade de folhas e detalhes do cenário é impressionante. Acredito que nunca vi uma floresta tão “cheia” em games antes. Embora eu tenha ficado com preguiça quando vi o tamanho do mapa, é o tipo de jogo que dá para passar horas limpando objetivos secundários sem nem ver o tempo passar.
Suas novidades são poucas, mas ele recupera algumas boas características que Far Cry 5 deixou de lado (como um protagonista desenvolvido ou um cenário mais interessante). Qualitativamente, eu o colocaria entre Far Cry 5 e Far Cry 4. Ainda bem distante de Far Cry 3, sem dúvida, mas muito superior ao que Far Cry 5 entregou.
FAR CRY HEADING FOR TOMORROW
Dito isso, a “fórmula Ubisoft” precisa mudar. É necessário se afastar da monetização predatória e do live service e voltar ao que era antes, a jogos que são vendidos para te dar prazer de jogá-los, não como uma plataforma onde você vai gastar mais dinheiro. Isso, claro, é o meu ponto de vista, de alguém apaixonado por jogos e que sente falta do que a Ubisoft fazia antes. Se esses jogos estão faturando mais hoje do que aqueles feitos sem essas preocupações é outra história. Mas parece que seguir esse outro caminho anda dando muito certo para editoras como a Capcom ou a Sony.
Acredito que Far Cry 6 será o último nesse estilo. E não apenas o último Far Cry, mas o último lançamento premium de alto orçamento da Ubisoft em um bom tempo. Eles claramente estão mudando seu foco para jogos free-to-play e live service. O próprio já anunciado Assassin’s Creed Infinite promete ser bem diferente. Eu sinceramente não sei se vou jogar esses futuros lançamentos, pois está se afastando muito do que eu procuro em games. Mas vejamos, espero estar errado, porque quando foi boa, lá na época do PS3, a Ubisoft esteve entre as melhores. Hoje, pelo que sabemos de seus planos futuros, receio que eles estejam seguindo o caminho da Konami.
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