Poucos devem se lembrar hoje, mas entre 2013 e 2015, existiu um remake de Resident Evil 2, chamado Resident Evil 2: Reborn. Criado por fãs italianos, do Invader Studios (na época, chamado de Invader Games), RE 2: Reborn recebeu enorme atenção com seus vídeos de gameplay.

Bem, eu me lembro. Lembro-me da empolgação de ver um Resident Evil com os zumbis clássicos – esses que a série principal havia abandonado há muitos anos. Lembro-me de conferir Leon, meu personagem favorito, nas ruas de Raccoon City com o famoso formato de câmera inaugurado em Resident Evil 4. Era em terceira pessoa, com a câmera atrás do ombro.

RE 2: Reborn, Daymare: 1998, Delfos
Se RE 2: Reborn tivesse acontecido, este trecho estaria em Raccoon City. Obs.: esta e outras imagens de Daymare: 1998 são do meu gameplay.

O impacto dos vídeos de RE 2: Reborn, em especial, os de julho de 2015, foram significativos. Sim, foram tão relevantes que uma gigante japonesa, com sede localizada em Osaka, mudou o planejamento dos próximos anos para a franquia.

Esta é a incrível história de Resident Evil 2: Reborn, o projeto de fãs que mudou tudo, da reação surpreendente da Capcom e dos fantásticos jogos que nasceram desta iniciativa: Resident Evil 2 remake e Daymare 1998.

RE 2: Reborn – o início de tudo

Sete anos atrás, a reputação da Capcom com os jogos de Resident Evil estava bem diferente da atual. A recepção de Resident Evil 6 havia sido fraca, a ponto de Resident Evil: Revelations, original para 3DS (2012) e relançado para PS3 e Xbox 360 (2013), ter recebido mais críticas positivas do que o jogo de grande orçamento da série principal.

Resident Evil, mais do que nunca, precisava de uma reinvenção. O foco em ação dos últimos dois jogos (RE 5 e RE 6) havia trazido bons resultados financeiros e um grande público. Porém, era claro o descontentamento dos fãs da franquia.

O público de Resident Evil ficou dividido. A Capcom também não podia ignorar os jogadores novos que havia conquistado. Eram os fãs da abordagem de RE 4 em diante, que não gostavam de algumas características dos originais (como a jogabilidade tanque e os saves limitados pelos Ink Ribbons). Por isso, não estava claro o que a Capcom iria fazer com os próximos jogos principais da franquia.

RE 2: Reborn, Daymare: 1998, Delfos
Resident Evil 2 é icônico. E nada mais icônico do que a delegacia, aqui refeita para RE 2: Reborn. Imagem: Invader Games

É nesse contexto que nasceu Resident Evil 2: Reborn. Michele Gianonne, Diretor de Negócios do Invader Studios, foi um dos fundadores e idealizadores do remake, lá nos idos de 2013 e falou com a gente para nos ajudar a contar essa história. “Nós éramos um grupo de amigos e profissionais que decidiu fazer algo a mais, juntos. Começamos o remake não oficial de RE 2, o jogo que queríamos realmente jogar como fãs”, diz.

Com apenas “seis ou sete pessoas” e cinco computadores, ninguém do estúdio poderia prever o resultado que eles teriam com esta iniciativa.

RE 2: Reborn – o meio termo que a franquia precisava

O desenvolvimento de RE 2: Reborn seguiu em 2013 e 2014 sem grandes acontecimentos. A Invader Games subiu vídeos no YouTube sobre o projeto e ganhou alguma atenção na mídia. Porém, foi com 30 minutos de gameplay em 17 julho de 2015 e o anúncio do lançamento no final desse ano que o projeto tomou outra proporção.

Em dois meses, o vídeo de gameplay somou mais de dois milhões de visualizações. O impacto, no entanto, foi muito maior – e mais difícil de mensurar. A quantidade de matérias, em todos os veículos especializados, posts e comentários em redes sociais, foi massiva. Os fãs queriam jogar aquele remake.

E dar tiros nos zumbis de Raccoon City. Imagem: Invader Games

Os vídeos de RE 2: Reborn preencheram um vazio deixado pelos últimos jogos da franquia. Mais do que isso, ele parecia o “meio termo” ideal que Resident Evil precisava. Seria o remake não oficial o consenso entre os fãs de survival horror e os fãs de ação?

Lógico que a atenção gerada por RE 2: Reborn não passaria despercebida pela Capcom, detentora da IP. Normalmente, as histórias de jogos de fãs não têm final feliz (é só ver a atuação comum da Nintendo, por exemplo, que cancela todo projeto que encontra). Então, a Invader Games não estava preocupada? “Claro que sim, mas nós decidimos ir em frente. O pior cenário seria bom para nós, de qualquer forma”, explica Michele Giannone.

No dia 30 de julho de 2015, a Capcom, por um post no Facebook, pediu a “franca opinião” dos fãs. “Vocês querem mesmo um remake de RE 2”? Naturalmente, o retorno foi positivo. Em 12 de agosto de 2015, menos de um mês após os vídeos de gameplay de RE 2: Reborn, a Capcom anuncia o tão desejado remake oficial de RE 2 (que sairia em janeiro de 2019). O desenvolvimento de RE 2: Reborn é encerrado no mesmo mês.

RE 2: Reborn – Uma viagem para Osaka, Japão

Se você é forte crente em coincidências, pode ter pensado: “ah, mas a Capcom talvez já estivesse com o remake de RE 2 no jeito, a Invader Games só atrapalhou tudo”. Hum.

Numa virada de roteiro mais surpreendente do que os filmes de M. Night Shyamalan, a Capcom convidou a equipe da Invader Games para visitar sua sede, em Osaka. O encontro ocorreu em outubro de 2015.

Este encontro não faz parte da história oficial do remake de Resident Evil 2, mas não pudemos deixar de perguntar a Giannone: a Capcom decidiu desenvolver RE 2 após o sucesso dos vídeos de RE 2: Reborn?

“Nós temos certeza disso. Porque eles nos contaram durante a reunião, e a prova é também o fato de sermos mencionados nos créditos oficiais de Resident Evil 2. Não há outra razão para estarem lá a não ser por essa”, Gianonne.

Com o anúncio do remake oficial de RE2, a Invader Games precisou “virar a chave”. RE 2: Reborn se transformaria em Daymare: 1998, que só seria anunciado um ano depois, em 12 de setembro de 2016.

RE 2: Reborn, Daymare: 1998, Delfos
Isto é o que você vê logo que carrega Daymare: 1998. Hum, de onde será que veio?

Gianonne comenta que o projeto surgiu de forma natural, após o cancelamento de RE 2: Reborn, mas também levou algum tempo para o time entender essa nova abordagem. “Daymare: 1998 é em parte o que queríamos fazer e mostrar com o remake não oficial. É em parte algo totalmente novo, original e criado por nós”, comenta.

A Invader Games não guardou qualquer ressentimento sobre a intervenção da Capcom. Pelo contrário, Michele Gianonne descreve o encontro como uma experiência incrível. “Nós mostramos a primeira versão de Daymare: 1998 e não apenas eles deram muito feedback e sugestões na reunião, mas também ao longo dos próximos anos”, Gianonne diz. E continua:

“Durante a reunião, eles também nos levaram para os andares superiores da sede e nos mostraram algo totalmente exclusivo e confidencial. (Vimos) Resident Evil 7 e o estágio inicial do RE 2 remake. Algo totalmente incrível para fãs e desenvolvedores apaixonados como nós”.

Posteriormente, a Invader Games mudou seu nome para Invader Studios e buscou financiamento coletivo pelo Kickstarter. Não chegou à meta, porém, arrecadou 43 mil euros e conseguiu boa divulgação, necessária agora que o projeto do grupo não contava com o nome do remake para seguir em frente.

RE 2: Reborn – As heranças deixadas para Daymare: 1998

Daymare: 1998 é o primeiro jogo do estúdio, desenvolvido após o cancelamento de RE 2: Reborn. Michele Gianonne conta que alguns conceitos e ideias foram aproveitados do remake. O objetivo do grupo era fazer algo inspirado na série de RE, mas também em outros jogos dos anos 90, filmes e séries de terror clássicos.

“Há tantas influências. Não apenas relacionadas às localizações, mas também aos personagens e pontos da narrativa. (Filmes como:) A Coisa, Fantasmas, A Última Ameaça, Criatura, A Relíquia, Epidemia, Vírus, O Iluminado e muito, muito mais.”

A viagem a Osaka ajudou a equipe com contatos importantes. Kazuhiro Aoyama (Diretor do Resident Evil 3: Nemesis original) e Satoshi Nakai (enemy designer da série) contribuíram com o desenvolvimento de Daymare: 1998.

“Kazuhiro Aoyama nos deu sugestões e conselhos porque o jogo dele (RE 3) era a referência perfeita para o que queríamos com Daymare: 1998. O apoio dele nos ajudou especialmente no começo da produção. Satoshi Nakai é um artista incrível. Ele consegue desenhar qualquer coisa com estilo pessoal e assustador. Adoramos as criações dele e, claro, usamos as criaturas que ele fez usando nossas ideias e direções. Somos honrados por termos a chance de eles terem colaborado no nosso primeiro jogo.”

Além da inspiração no gameplay, cenários e inimigos de RE, Daymare: 1998 tem uma participação especial que deve ser lembrada. O personagem “Cleaner” é dublado pelo ator canadense Paul Haddad, voz original de Leon S. Kennedy de RE 2 de 1998. Infelizmente, o ator faleceu em 11 de abril de 2020, pouco antes do lançamento de Daymare: 1998 para consoles.

“Como fãs e desenvolvedores, nós queríamos a colaboração dele no nosso primeiro jogo, porque ele estava fora da indústria (de games) há muito tempo. Foi incrível como ele estava feliz e empolgado para o nosso jogo, durante e após as gravações. Foi uma honra conhece-lo, ter a chance de ele apoiar nosso jogo. Ele era uma grande pessoa e excelente profissional. E será lembrado assim. Nós nunca esqueceremos das gravações que fizemos juntos e do apoio que ele deu ao jogo após o lançamento (em agosto, para PC).”

Daymare: 1998: algo totalmente novo

Apesar da origem do jogo e do estúdio, Daymare: 1998 não é RE 2: Reborn com outro nome. Isto é o que a Invader Studios acredita e que nós, do DELFOS, concordamos.

Comentei com Michele que, ao jogar Daymare: 1998, há vários trechos que parecem desconstruir as expectativas clássicas de RE 2. Logo no começo, seu personagem inicial, Liev, mata um desconhecido que pede ajuda. É o oposto do que acontece com Resident Evil 2 remake, quando Leon encontra Marvin.

“Queríamos que fosse similar, mas diferente. Toda a ideia por trás do jogo é celebrar os clássicos, mas ao mesmo tempo surpreender os jogadores com algo novo e inesperado. Essa cena é um exemplo perfeito deste conceito”.

Daymare: 1998 tem várias mecânicas e características únicas, inclusive algumas bem “survival horror hardcore”, como o modo de recarregar as armas, comentado no review. Em Daymare, o carregamento dos pentes é muito mais similar à vida real. “Os jogos atuais de survival horror em terceira pessoa são muito orientados para ação, na nossa opinião. Então, decidimos adotar uma característica mais real e que consome tempo, para deixar o jogador em situações difíceis”, diz Giannone.

Os famosos e adorados puzzles de RE foram reinventados em Daymare: 1998. Eles são elevados à última potência, vamos dizer, pois exigem que o jogador “aprenda” código Morse e até digite em grego. “(Nós queríamos) que o jogador pensasse. É algo que os jogadores modernos não estão tão acostumados, e queríamos isso no nosso jogo”, diz Giannone.

RE 2: Reborn, Daymare: 1998, Delfos
Bem, se você não aprendeu código morse na sua vida, que tal para resolver um puzzle de Daymare?

No entanto, o estúdio sabe que a mecânica pode ser controversa. Portanto, enviaram guias para as equipes que fizeram reviews do jogo, como nós. “Reconhecemos que algo que amamos pode ser difícil demais para alguns jogadores. Precisamos ajudar as pessoas que não estão acostumadas com esses puzzles, ou simplesmente não têm tempo, como seria o caso de jornalistas e influenciadores”, diz Giannone.

Invader Games: os próximos passos do estúdio

Daymare: 1998 saiu em agosto de 2019 para PC e no final de abril de 2020 para consoles. Esta é a conclusão de um projeto que começou em 2013, mas não o fim do estúdio. “Survival horror é o nosso gênero favorito. Queremos continuar com ele. Nós aprendemos tanto com nosso primeiro jogo e queremos melhorar no próximo. Além disso, sempre pensamos em Daymare como parte de uma trilogia. Trabalhamos nele para ficar aberto para uma prequência e sequência.”

O mundo passa, hoje, por um de seus maiores desafios: a pandemia causada pelo Covid-19. Em vários momentos de Daymare: 1998, você encontra corpos cobertos por panos brancos. É desconcertante como a vida real está parecida com a arte.

RE 2: Reborn, Daymare: 1998, Delfos
Perturbador.

Perguntei a Michele Giannone sobre isso também. Como desenvolvedores de jogos de survival horror italianos, se a pandemia teve um efeito na forma como eles veem o gênero.

“Antes de tudo, esperamos que você e todos os seus leitores estejam bem e seguros. É, esta situação afetou nossa vida cotidiana e trabalho, mas felizmente, conseguimos trabalhar remotamente no momento. Mal podemos esperar para voltar ao estúdio, claro. Sobre influências e inspirações futuras, quem sabe? Nós aprendemos tanto com essa situação ruim”.

RE 2: Reborn: o impressionante legado de um jogo que nunca saiu

Digo como um profissional de Marketing: não é fácil saber exatamente o que o seu público quer. Hoje, é simples dizer que zumbis e o clima de survival horror funcionam perfeitamente com a jogabilidade em terceira pessoa criada em RE 4. É mais fácil ainda dizer que os fãs adoraram o remake de RE 2 e muito de RE 3 (embora não tudo, como sabemos).

Gerir uma franquia tão importante como Resident Evil não é fácil. É impressionante que grande parte da solução tenha vindo dos próprios fãs, de um estúdio indie. Mais impressionante ainda é que a Capcom soube ouvir e agir em relação ao remake não oficial. Há humildade e reconhecimento de ambos os lados.

RE 2: Reborn, Daymare: 1998, Delfos
Nova visita de parte da equipe de Daymare: 1998 à Capcom, desta vez, após o lançamento de Daymare (11/2019). Michele Giannone é o segundo da esq. para dir. Imagem: Invader Studios

No fim, todos saíram satisfeitos. De 2015 para cá, a Capcom acertou muito mais nos jogos de Resident Evil. Tornou-se mais assertiva sobre o que fazer com o feedback dos fãs. O Invader Studios também se saiu muito bem.

“Nós conseguimos o resultado que queríamos. Algo ambicioso e não perfeito, claro, mas uma realização incrível para 10 pessoas e orçamento limitado”, diz Giannone.

A própria Capcom recebeu cópias Daymare: 1998 e a Invader Studios aguarda o feedback deles.

Mais felizes, arrisco dizer, foram os fãs empolgados, como eu. Eles souberam de RE 2: Reborn e terminaram com um IP novo do estúdio e o remake oficial da Capcom quatro anos depois.

RE 2: Reborn, Daymare: 1998, Delfos
Comentários de fãs no vídeo de RE 2: Reborn. Nos comentários, a Invader Games também se posiciona sobre o cancelamento e convite da Capcom.

Se você quer minha opinião sincera sobre o jogo, estou nos capítulos finais de Daymare: 1998 – é realmente uma experiência assustadora e digna de ser jogada, não só pela incrível história da qual ele faz parte, mas pelos seus méritos próprios.

Nunca saberemos o que teria acontecido se RE 2: Reborn tivesse saído. No entanto, o legado dele é enorme de qualquer jeito. Não se esqueça disso quando estiver fugindo do Mr. X, em Resident Evil 2, ou surpreso com as atitudes de Liev, em Daymare: 1998.

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