A Santíssima Trindade dos Gibis?

0

A expressão virou carne de vaca entre os fãs de quadrinhos: se Will Eisner é o Deus da Nona Arte, então, em tese, seria muito fácil definir qual é a sua santíssima trindade, seu “Pai, Filho e Espírito Santo”. Seriam eles Alan Moore, Neil Gaiman e Frank Miller. Se eu digo “amém”? Bom, devo dizer que, nos últimos anos, passei a ser partidário de apenas 2/3 desta afirmação. O ponto de discórdia tornou-se justamente aquele pilar que, depois das adaptações cinematográficas de 300 de Esparta e Sin City, virou o mais pop dos três. Você é uma pessoa esperta, e sabe muito bem que estou falando de Miller e seu simpático nariz. Verdade seja dita, por mais que isso me faça ser pintado pelos puristas como um herege: peguei um baita dum bode do Miller, numa boa.

As qualidades de Moore e Gaiman, cada vez mais lados distintos de uma mesma moeda, são evidentes. Enquanto o barbudo, o meu autor favorito em atividade, desenvolve com potência digna de um rinoceronte o seu estilo anárquico e contestador, sua contraparte britânica de cabelos desgrenhados refina seu estilo onírico com uma sutileza que dá gosto de ler. A produção da dupla segue constante e digna de aplausos. Até na literatura tradicional ambos têm feito preciosas incursões – Os Filhos de Anansi e A Voz do Fogo tornaram-se duas das minhas obras literárias favoritas de todos os tempos com uma rapidez impressionante, conquistando (e migrando) seus fãs das HQs e fazendo os críticos tradicionais mais azedos se dobrarem sem escolha.

E o Miller, que mal lhe pergunte?

Deslumbrado com os holofotes que a mídia lhe dispensou pela direção conjunta de Sin City ao lado de Robert Rodriguez, Miller virou popstar e com orgulho. Hollywood tornou-se sua casa, os óculos escuros sua vestimenta obrigatória. O autor, inclusive, parece ter realmente gostado das entrevistas, do espocar das câmeras fotográficas, do bafafá dos jornalistas, que logo o procurariam com ainda mais intensidade para falar de 300. E tratou de topar uma empreitada barra-pesada: dirigir, sozinho, a transposição para as telonas do clássico Spirit, herói mascarado criado por ninguém menos do que… Will Eisner. Agora, o lance é ser diretor de cinema. Luzes, câmeras, ação! E isso depois de ter dito que jamais permitiria que suas obras fossem adaptadas para a tela grande, depois que os produtores danadinhos retalharam seu roteiro original e montaram dois filmes ao invés de um: Robocop 2 e Robocop 3. Ai, ai. Esse tal de ego.

Mas… e os quadrinhos? Necas?

Pois é. Necas.

Vejamos. Desde a minha aurora de colecionador gibiota, sempre preferi ler os trabalhos de Gaiman e Moore aos de Miller, que a molecada da minha idade adorava. Gosto muito da passagem dele pelo Demolidor, que geraria a excelente saga Queda de Murdock e, mais tarde, a lisérgica série Elektra: Assassina. Sou definitivamente apaixonado por Ronin, homenagem descarada do camarada ao cultuado mangá Lobo Solitário, de Kazuo Koike. E tenho uma simpatia muito grande pelos primeiros arcos de Sin City, em especial o inaugural estrelado pelo grandalhão Marv e, posteriormente, aquele que conta a história do Assassino Amarelo. Tudo isso, eu não posso ser hipócrita de negar.

Mas e quanto ao Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight Returns), considerado sua obra-prima definitiva? Não. Desculpe, mas não. Não chore, amigo delfonauta. Mas é a verdade. Acho a história boa. Apenas boa. Nada de “excelente”, “fantástico” ou “espetacular”, adjetivos que disponho sem restrições a outro divisor de águas da época, Watchmen. E os desenhos, cá entre nós, deixam bastante a desejar. Em alguns momentos, acho que Cavaleiro apela para elementos de choque puramente gratuitos, que me parecem deslocados da trama total. Se é para eleger aquela que seria a história que melhor define o Homem-Morcego, não penso duas vezes na hora de carimbar A Piada Mortal. Na minha nada humilde e/ou modesta opinião, uma trama intimista e autocontida na qual o Morcegão é quase coadjuvante diz muito mais a respeito dele do que a épica e apocalíptica versão futurista de Miller.

Recentemente, então, nem vou comentar as barbaridades que um sujeito que supostamente deveria estar no mesmo nível de Neil Gaiman e Alan Moore anda escrevendo. Mentira, sou um tremendo falastrão, é claro que eu vou comentar – ou o artigo acabaria por aqui. Big Guy and Rusty The Boy Robot é um gracioso caldeirão pop que amarra Astro Boy e os filmes clássicos do Godzilla em uma história leve e divertida. Ok. Ponto para Miller. Mas o que dizer do tenebroso crossover entre Batman e Spawn, tragicamente desenhado por Todd McFarlane? É o tipo de publicação que dá vontade de rasgar, picotar e jogar fogo – não sem antes pedir o seu suado dinheirinho de volta, é claro. Ele não deveria ser parte da “tríade sagrada”? Então por que causa, motivo, razão ou circunstância o camarada subestima a minha inteligência com uma revista que só faltou ter um desenho do próprio Bruce Wayne apontando para a minha cara e dizendo: “Sua anta!”. Ponto para mim.

Batman, por falar na criação de Bob Kane, tem sido alvo constante de um Frank Miller em absoluta crise criativa. A começar pela desnecessária continuação de O Cavaleiro das Trevas, aquela mesma que me dói a alma só de comentar. O escritor teve as manhas de dar ao Cruzado Embuçado uma história que, de tão ruim, tornou-se oficialmente a sua Saga dos Clones particular. Wayne e todos os seus colegas de Liga da Justiça são colocados em situações puramente constrangedoras, retratados como velhotes acabados que beiram o ridículo. E a virada final, que envolve o fiel parceiro Robin, figura entre os piores momentos dos quadrinhos de todos os tempos! Só lendo para acreditar! Os desenhos e, em especial, o colorido computadorizado de quem acabou de aprender a mexer nos filtros do Photoshop apenas contribuem para um resultado final mal-acabado e notoriamente tosco.

Mas não acaba aí: Batman também sofre horrores em All-Star Batman, anos luz distante do gostinho retrô refinado do Superman da mesma linha, escrito com elegância por Grant Morrison. Tentando reconstruir os laços da relação da dupla dinâmica, tudo que ele conseguiu foi desfazer os ares de sobriedade que ele mesmo ajudou a construir com O Cavaleiro das Trevas, gerando momentos que chegam a lembrar uma versão ultimate do seriado camp da década de 60. Só ficaram faltando os barulhinhos característicos e, é claro, a pancinha de chope do Adam West. Pela mãe do guarda.

Você deve estar aí esperneando e berrando os nomes de 300 e Sin City como provas de coisas “muito boas” que Miller andou fazendo na última década. E lá vamos nós. Sobre Sin City, como eu mesmo disse alguns parágrafos acima, gosto muito dos primeiros especiais da franquia, nos quais vejo a arte irregular do lado desenhista de Miller encontrando a sua forma ideal, mixando a linguagem cinematográfica do mestre Eisner e as experimentações de sombra em P&B do cinema noir. Só que os últimos volumes não chegam aos pés dos seus primórdios, prendendo-se a uma babaquice formulaica de “um vilão estiloso, uma mulher sedutora e quase vadia e, para completar, um herói durão e invencível, com a barba por fazer”. Isso qualquer moleque escreve.

E sobre 300, sem exageros, nunca achei a graphic novel grande coisa. É mesmo um bom registro histórico, bem embasado, e a arte de Miller não compromete. Mas nunca foi nada de tão marcante, daquele tipo para entrar para os anais da bibliografia quadrinística. Tsc. Tanto é que escrevo, sem vergonha nenhuma e com todas as letras, que achei o filme de Zak Snyder muito melhor do que a HQ – cuja linguagem de epopéia 100% cinematográfica coube muito melhor nos cinemas do que nos limitados requadros de uma revista, funcionando bem mais como um storyboard do que como obra única. Leônidas nunca pareceu tão majestoso.

Se der certo no comando de The Spirit, pode ser que tenhamos perdido de vez Frank Miller para o glamour da Sétima Arte. Aí, só Deus sabe quando diabos ele vai resolver voltar a fazer mais um número sequer de All-Star Batman. Tudo bem, afinal de contas. Se é para continuar a escrever porcarias sem qualquer dó de seus fiéis leitores, não vai fazer a menor falta. Nossa Santíssima Trindade pode continuar muito bem só com o Filho e o Espírito Santo. E agora sim: amém.