HQs no Computador

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Alfredo, Alfredo de la Mancha, Delfos, Mascote, Alfred%23U00e3o, Delfianos

Na era da rede mundial dos computadores, do “tudo é multimídia e multimeios”, da “globalização” e de todos os demais termos semelhantes (sempre citando Marshall McLuhan, que é “xique no úrtimo”), virou moda entre comunicólogos e marketeiros usar a manjadíssima expressão convergência das mídias. Se você não sabe o que isso quer dizer, fique tranqüilo: tem muita gente soltando a parada em reuniões e conferências mundo afora sem fazer a real idéia do que está falando e sem sequer conhecer o contexto.

Resumindo a ópera: “convergência das mídias” quer dizer que, cada vez mais, à medida que a tecnologia se desenvolve, mídias como jornal, revista, rádio, televisão e internet passam a se integrar e a misturar suas características. O conceito pode parecer simples de entender, mas tem muita gente por aí achando que é só trocar seis por meia dúzia e a convergência já está completa. “Uau, estamos todos na moda, que legal!”, bradam os hypados com seus tênis all-star e gravatas coloridas. Não, não, não é legal. E como eu ainda não enlouqueci (muito) e o assunto desta coluna continuam sendo as histórias em quadrinhos, acho que é justo manter a discussão dentro deste âmbito.

Quando a gente fala de levar um jornal ou revista para a internet, o que o camarada faz imediatamente, sem pensar? Uma simples transposição do texto da versão impressa para a tela do computador. Quando muito, rola uma matéria exclusiva para a web. E ainda assim, para ser lida em formatão texto, como se fosse uma página do veículo em sua versão “real”. O mesmo acontece com rádio e TV em suas transposições para o meio online – tudo que se faz são transmissões diretas de áudio e vídeo, trocando os respectivos aparelhos transmissores originais pelo computador. O cara fica lá, ouvindo e/ou assistindo, como se estivesse sentado na sala de casa. Isso é convergência? Isso é mesclar os potenciais das duas mídias ou apenas emular a mídia original dentro de uma mídia secundária? Pois é. É exatamente este problema que acontece freqüentemente quando se fala de quadrinhos para a internet.

É necessário fazer aqui um esclarecimento: não estou, em nenhum momento, me referindo aos chamados scans, a prática de digitalizar os gibis assim que são lançados nos EUA ou em qualquer parte do mundo e colocá-los para download. Talvez este seja o assunto de uma ooooooutra coluna em breve, mas já deixo aqui clara a minha inflexível posição sobre o assunto: sem o consentimento dos detentores originais dos direitos autorais, isso é tão pirataria quanto baixar uma música e/ou filme. Não é o mesmo tipo de pirataria que se faz ao dar dinheiro em troca de uma mídia pirateada em qualquer camelô da esquina, há de se admitir. Mas, ainda assim, é pirataria. Falamos mais detalhadamente sobre isso noutro dia.

Particularmente, tenho verdadeira ojeriza ao modo pelo qual lemos quadrinhos no computador nos dias de hoje. Sim, eu entendo perfeitamente que a internet é um meio fácil e barato de você, quadrinista iniciante e/ou sem a grana e a estrutura de uma grande editora (vulgo underground ou independente), poder divulgar o seu trabalho para um número considerável de potenciais fãs. Mas a maior parte dos autores fazem simplesmente uma colagem do material original em páginas HTML, transformando suas páginas e/ou tirinhas em imagens JPEG, GIF ou até em documentos PDF. E você fica ali, sentado, apenas clicando “próximo” ou mexendo a barra de rolagem indefinidamente. Até a Marvel Comics foi preguiçosa e criou suas revistas online com um recurso óbvio através do qual você vira as páginas utilizando o mouse. Uau, hein? Que moderno e inovador! Eu acho é chato pra dedéu.

Neste sentido, sou bem tradicionalista. Gosto de ver meus filmes no conforto de uma sala de cinema, com uma enorme tela e um baldão de pipoca – ou, então, deitadão na minha cama, confortável no travesseiro e ao lado da minha esposa. Não tem segredo. O mesmo processo vale para os quadrinhos, dos quais gosto ainda mais do que de DVDs. Existe todo um ritual de ter o gibi em mãos, de folhear as páginas e quase sentir seu cheiro, de estar devidamente sentado em um lugar apropriado para curtir cada detalhe do texto e da arte, uma poltrona com os pés devidamente colocados para cima – o que, no meu caso, em nada combina com uma cadeira na frente de um monitor. Coisa de colecionador. Coisa de nerd das antigas mesmo.

Assim sendo, como diabos uma história em quadrinhos para a internet poderia cativar este seu colunista ranzinza? Simples como uma música dos Ramones, ó delfonauta atento. É claro que os primeiros pontos a se destacar são um bom roteiro e uma boa arte – sendo que, para a minha apreciação, ainda considero o primeiro bem mais importante do que o segundo. Mas o que eu quero ver de verdade é a tal da convergência acontecendo mesmo, na prática. É uma história em quadrinhos usando e abusando dos recursos que apenas um computador e a internet permitem. Recursos interativos e multimídia (Ei, por que não misturar áudio e vídeo na brincadeira? Talvez uma animação em Flash para dar um gostinho de movimento), recursos de linguagem e metalingüísticos, links no meio das imagens para complementar a leitura e o entendimento dos temas abordados… Vale tudo!

Um mestre na utilização e experimentação deste novo formato para as HQs é o autor e teórico estadunidense Scott McCloud, cujos livros sobre a Nona Arte são considerados referência para muitos especialistas na área, eu incluído. Aqui no Brasil, você encontra traduzidos para o português títulos como Desenhando Quadrinhos, Reinventando os Quadrinhos e o já clássico Desvendando os Quadrinhos, todos da M. Books. Em seu site oficial, McCloud reserva uma área especial para histórias em quadrinhos criadas especialmente com a internet em mente.

É o caso da graciosa The Right Number, na qual cada quadrinho é apresentado ao leitor de maneira ágil e dinâmica por meio de um sistema de zoom. Em Choose Your Own Carl, você segue a velha tradição daqueles “livros-jogo” que iniciaram toda uma geração de jogadores de RPG e muda o final conforme o ângulo de leitura escolhido. Mas os meus momentos favoritos da obra internética de McCloud são mesmo a autobiográfica My Obssession With Chess e a aventura Hearts and Minds, estrelada pelo herói oitentista Zot, criado pelo próprio roteirista quando ainda tinha mais cabelos. Ambas utilizam, de maneira muito criativa, as barras de rolagem vertical e horizontal do seu computador para dar uma dinâmica e um timing diferentes às tramas. Você pode não se acostumar de primeira (foi o que aconteceu comigo, admito). Mas basta uma releitura mais cuidadosa, depois que passa a surpresa inicial do primeiro momento, para que você pegue o jeito e curta a novidade de maneira ideal, entrando no clima e descobrindo as sutilezas da coisa.

Para fãs e criadores de quadrinhos, fica o conselho: estar na internet não significa ser avançado, estar na “crista da onda”, ser o “grande desbravador”. Isso é coisa daqueles modernetes deslumbrados. Para chegar ao ponto de ser chamado de “inovador”, você precisa estar na internet e saber usar a internet. Nada que um pouco de ousadia de verdade (não aquela ousadia mascarada com plumas, paetês e casacos da Adidas) não resolva. Criadores: ousem. Leitores: sejam ousados ao dar uma chance a novos criadores. Ler Homem-Aranha é sempre muito legal. Mas que tal experimentar algo diferente de vez em quando?