Trans-Siberian Orchestra em Ottawa (22/12/2010)

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Antes de dar início à resenha propriamente dita, um pequeno desabafo e alguns fatos.

Fazia muito tempo que eu não escrevia para o DELFOS. Aliás, fazia muito tempo que eu não escrevia nada de cunho jornalístico. Isso porque ultimamente eu venho me envolvendo cada vez mais com uma carreira musical que começa a dar seus primeiros passos, e a apresentar os primeiros sinais de que pode vir a ser frutífera.

Trata-se simplesmente do maior sonho da minha vida, em que eu só passei a investir pra valer depois de ser apresentado a uma banda norte-americana aí, um tal de Savatage. O bom delfonauta sabe que o Trans-Siberian Orchestra representa, até certo ponto, uma continuidade do que o Savatage foi por anos, valendo-se de músicos, arranjos e mesmo composições originalmente associados à banda de Jon Oliva. Dessa maneira, minha expectativa em relação ao que eu assistiria no dia 22 de dezembro de 2010 em Ottawa, Canadá, era de ver em ação uma banda cuja história deu sentido a boa parte da minha vida recente.

Feita a ressalva, fica claro que essa resenha é dotada de carga emocional que tende ao infinito.

MALDITOS ATRASOS

Eu gostaria de iniciar o texto com aquela tradicional descrição do momento de chegada, falando sobre a ansiedade do público, descrevendo o local e narrando o momento em que as luzes se apagaram. Infelizmente, isso vai ser impossível. Nós chegamos (sim, chegamos. Arrastei minha família para o show) no local atrasados. O Scotiabank Place, estádio de hockey onde foi realizado o espetáculo, fica extremamente afastado do centro da cidade, coisa de 20 quilômetros. Essa distância, um trânsito natalino infernal e um erro de cálculo típico de turistas em férias nos levaram a adentrar o estádio dos Ottawa Senators às 16:20, cerca de cinco minutos após o previsto para o início do concerto. E não se deixe enganar. Ele já tinha começado havia cinco minutos.

Fiquei um tanto aliviado ao chegar e ainda conseguir identificar acordes finais da música de abertura, Night Enchanted, extraída do mais recente álbum da banda, Night Castle, de 2009.

Uma correria quase patética para conseguir passar os ingressos e adentrar o salão principal, e, finalmente, lá estava. Ao longe, conforme Beethoven, do álbum Beethoven’s Last Night, de 2001, já enchia os auto-falantes, avistei, num palco gigantesco e lotado de recursos especiais, três silhuetas de instrumentistas, suspensos no ar por plataformas. Joel Hoeska (guitarras), Roddy Chong (violino) e Chris Caffery (guitarras) já estavam lá, detonando. Chris Caffery, cara! Um tanto incrédulo, eu caminhei pelo estádio, lotado, até encontrar meu lugar, devidamente marcado e respeitosamente desocupado. Finalmente me acomodei, a tempo de acompanhar a primeira narração de Bryan Hicks.

ENFIM ACOMODADO

O Trans-Siberian Orchestra vem se consagrando, desde seu início, em 1996, por um espetáculo dividido em duas partes. Na primeira, conta, através de canções de seus dois primeiros álbuns (Christmas Eve & Other Stories, de 96, e The Christmas Attic, de 98), e das teatrais narrações de Hicks, uma espécie de conto de natal rockeiro. Na segunda faz uma apresentação mais geral, e de repertório mais flexível, mais semelhante a um show como conhecemos.

Dessa forma, apesar do medley Night Enchanted/Beethoven, que vem sendo utilizado como abertura nas turnês mais recentes da banda, é como se o concerto só começasse de fato quando tem início a história de um anjo que vem à Terra observar os seres humanos nos dias que antecedem o natal. E foi então que entrou em cena An Angel Came Down, na voz do jovem John Brink.

A canção foi imediatamente seguida pelo medley instrumental O Come All Ye Faithful/O Holy Night, melodias tradicionalíssimas do natal norte-americano, interpretadas de forma bastante rockeira e extravagante, uma constante do Trans-Siberian Orchestra. A partir desse momento foi possível perceber, in loco, o motivo do tão crescente sucesso que o TSO vem obtendo na América do Norte. É fácil de ver, pelo bombardeio anual de filmes natalinos que recebemos, o tamanho da importância dada pelos estadunidenses e canadenses a essa época do ano.

E quando se coloca num palco um conteúdo que faz parte das tradições mais populares dessa região do mundo, interpretado de uma forma diferente, apoteótica, e altamente ligada ao hard rock e ao heavy metal, o resultado é uma platéia lotada, com um público absolutamente misto.

Casais de meia idade, alguns idosos, famílias inteiras, alguns jovens que poderiam ser delfonautas, e mesmo figuras que facilmente integrariam o Hell’s Angels. Todos dividem o espaço e se entretêm igualmente com a mistura apresentada pela banda. E não estou falando de “vamos todos dar as mãos, acabar com as diferenças, lutar por um mundo melhor blá blá blá”. Só estou dando as coordenadas da mina de ouro encontrada por Paul O’Neill, idealizador do projeto e ex-produtor do Savatage.

Logo, mais um trecho narrado por Hicks, e então veio Music Box Blues, na gigantesca voz da negra Erika Jerry. Ressalto o fato de ela ser negra porque, quando se trata de vozes, isso faz uma diferença tremenda. Ainda mais na América do Norte, em que os spirituals e gospels negros foram determinantes na formação da cultura musical. Aliás, o fator Motown/Broadway, suas vozes potentes e ar absolutamente ‘bluesy’, é outro dos pontos que compõem a grande mescla feita pelo TSO, uma espécie de ponto de harmonia entre as melodias tradicionais e o instrumental mais pesado e agressivo.

O ELO COM O SAVATAGE

Em seguida, uma trinca de composições instrumentais: First Snow, que contou com uma nevasca artificial que, agora posso afirmar, foi bastante realista; A Mad Russian’s Christmas e Christmas Eve/Sarajevo 12/24. Essa última foi, aliás, o primeiro single lançado pelo Trans-Siberian Orchestra, em 1996. O fato curioso é que a música foi o ponto de união entre o Savatage e seu filho natalino, já que a banda de Jon Oliva já a havia lançado em 1995, no álbum Dead Winter Dead, e ela acabou atingindo um sucesso repentino quando lançada sob um nome que não estava estigmatizado pelo universo do rock pesado.

De qualquer forma, o fato é que, quando as guitarras, junto com o violino de Roddy Chong e o baixo de Dave Z, tomaram a frente do palco, uma figura começou a atrair atenção, mais do que qualquer outra: Chris Caffery. Com um carisma que eu sinceramente não esperava, o ex-guitarrista do Savatage tomou as rédeas da situação como poucos. Dividiu solos e expressões de alegria com seu parceiro novato Joel Hoeska, mas sempre servindo como uma grande referência para a banda e a platéia. Fiquei particularmente feliz por perceber que, na ausência de Paul O’Neill, que não faz parte das equipes de turnês, um membro do Savatage se torna uma espécie de líder do Trans-Siberian Orchestra, mantendo aceso o elo entre as duas bandas.

Finda a tríade de composições instrumentais, a primeira parte da apresentação entrou em sua reta final. Com uma belíssima seqüência de músicas cantadas, contou um trecho da história em que uma garota, perdida de sua família, tenta encontrar o caminho para casa.

Primeiro veio Ornament, em que o pai da garota, interpretado pela voz rouca e poderosa de James Lewis, lamenta o fato de sua filha estar perdida em plena época de natal. O clima savatageano dessa canção é simplesmente inconfundível, com um refrão emocionado e melancólico, rasgado por solos de guitarra muito bem marcados.

Depois veio Old City Bar, em que um bêbado, muitíssimo bem interpretado por Jason Wooten, com direito a figurino e tudo, conta o momento em que o anjo, disfarçado de criança, convence o dono de um bar a ajudar a garota. Com o acompanhamento feito somente pelo violão de Joel Hoeska, esse foi possivelmente o ponto alto de emoção do show, tanto pela letra como pela interpretação em si.

O refrão, “if you want to arrange it, this world you can change itme fez chorar feito uma criança me arrancou algumas lágrimas. Em seguida, veio Promises To Keep, interpretada por um pitelzinho chamado Georgia Napolitano, que fala sobre a transformação sofrida pelo dono do bar. A excelente e animada This Christmas Day veio logo em seguida, trazendo James Lewis de volta. Dessa vez, interpretando o pai feliz pela notícia do retorno de sua filha para casa. Com o retorno de John Brink ao microfone principal, An Angel Returned colocou um ponto final à história, contando o momento em que o anjo retorna ao céu.

PARTE II: A SEGUNDA PARTE

Enfim, se encerrou a primeira parte do espetáculo, bem como a participação de Bryan Hicks. Logo, os cantores da banda se enfileiraram no palco, e Caffery, vestindo a camisa do Ottawa Senators, fez as honras, apresentando um a um. O guitarrista falou um pouco sobre a campanha de divulgação de Night Castle, e logo deu a deixa para que a banda iniciasse a instrumental Mozart and Memories, extraída do álbum, que nada mais é do que uma regravação/rearranjo de Mozart and Madness, lançado pelo Savatage em 1995, no álbum Dead Winter Dead.

Em contrapartida ao clima mais alegre e natalino da primeira parte da apresentação, esse segundo trecho teve um início bastante pesado, e calcado na relação do TSO com a música erudita. Depois de Mozart and Memories veio The Mountain, que também é uma regravação de uma antiga faixa do Savatage: Prelude To Madness, do clássico álbum Hall Of The Moutain King, de 87, e que conta com trechos da composição homônima do (literalmente) norueguês Edvard Grieg. Formando um medley de respeito, em seguida tivemos Moonlight and Madness, em que o pianista/tecladista Derek Wieland deu um show de técnica.

Durante essa seqüência, duas passarelas suspensas por cabos desceram do teto, e por ela os quatro instrumentistas livres, Caffery, Hoeska, Chong e Z, passaram a circular conforme tocavam, dando início a um momento de crescente interação direta com o público. Alternando-se com eles, as quatro cantoras (além de Erika Jerry e Georgia Napolitano, havia também Natalya Rose Piette e Autumn Guzzardi), agora agindo muito mais como dançarinas e backing vocals, passaram a fazer coreografias em praticamente todos os trechos instrumentais, compondo o cenário de muitas luzes e pirotecnia, que parecia não parar de se agigantar.

Logo, no entanto, as luzes baixaram, e se fez ouvir uma melodia de piano bastante singela e familiar. Tim Hockenberry foi ao microfone, e Believe tomou os amplificadores. Ele acabou se tornando o cantor oficial deste clássico do Savatage desde que cantou sua regravação, no álbum Night Castle. Sua voz, com um timbre bastante rouco, muitas vezes até comparada à de Louis Armstrong, acabou se mostrando uma ótima substituta à de Jon Oliva. A reprodução foi fiel à gravação original, mas acabou faltando um pouco da emoção e do significado bastante forte que a canção sempre teve.

Em seguida, o show de efeitos especiais teve um novo episódio, com o início de Queen Of The Winter Night. Conforme a banda introduzia a canção, uma bela ilustração era projetada, junto com os jogos de luzes. E quando Georgia Napolitano voltou à cena para cantar a melodia, extremamente aguda, ela surgiu… no meio da platéia. Uma plataforma, que até então havia passado despercebida, serviu como palco para a jovem novata, que ainda teve gás para atravessar a pista e voltar ao palco correndo, enquanto cantava. Logo seus companheiros passaram a imitá-la, e daí até o final do show, não hesitaram em descer do palco e tocar literalmente junto à platéia. Ninguém os tentou tocar ou agarrar uma vez sequer.

Terminada Queen Of The Winter Night, Chris Caffery apresentou a banda, dando destaque ao grupo de cordas, proveniente da Orquestra Sinfônica de Ottawa, bem como a seu ex-colega de Savatage, o baterista Jeff Plate. Em seguida, contou que atualmente o TSO está preparando dois álbuns de estúdio, o já aguardado Romanov, e Gutter Ballet, um musical que terá forte relação com o álbum Streets, lançado em 1991 pelo Savatage.

Logo, chamou ao palco a jovem Kayla Reeves, de apenas 18 anos, para cantar duas músicas que constarão no álbum: Sleep, lançada pelo Savatage em 1993, no álbum Edge Of Thorns, e Help, dos Beatles, completamente rearranjada e adaptada ao estilo da banda. Kayla Reeves se mostrou uma boa cantora, mas ainda passa bastante imaturidade. Dá a entender que sempre quis cantar agressivamente, e aprendeu a fazer isso ontem: não suaviza a voz um segundo sequer, o que frequentemente contribui para a banalização e esmorecimento do feeling das canções. Ainda não merece um posto de cantora oficial no TSO.

Logo, dando mais uma pincelada ao clima natalino, veio Christmas Canon Rock, do álbum The Lost Christmas Eve, de 2004, contando com uma ótima interação, de movimentos e vozes, entre as quatro cantoras principais. Emendado com o final da canção, o solo de bateria de Jeff Plate que, surpresa, não durou mais que 30 segundos! Estava dada a deixa para a sequência final do concerto, iniciando com um medley matador entre The Nutrocker, do Night Castle; Siberian Sleigh Ride, do The Lost Christmas Eve, e An Angel’s Share, do The Christmas Attic. A seguir, a clássica Wizards In Winter, que já foi até tema de comercial da Budweiser, serviu como uma válvula de escape para toda a empolgação da banda, que fez coreografias e tirou sarro de si própria. O violinista Roddy Chong não parou de correr de um lado a outro do palco enquanto tocava.

E, quem diria, mais surpresas estavam por vir. Requiem (The Fifth), do Beethoven’s Last Night, trouxe de volta o clima de peso e tensão, com efeitos pirotécnicos absolutamente impressionantes. Chamas ritmadas e coloridas acompanharam a clássica melodia da Quinta Sinfonia de Beethoven. Por fim, de volta ao básico, a banda executou uma reprise de Christmas Eve/Sarajevo 12/24, que contém a sua mais emblemática melodia, brindando os presentes com um final apoteótico e cheio de sorrisos por parte de todos.

Enfim, o que se viu no dia 22 de dezembro no Scotiabank Place foi uma banda extremamente profissional e preparada, que, para além de quaisquer relações com o Savatage ou com o cancioneiro natalino norte-americano, une, de acordo com o próprio conceito apresentado por Paul O’Neill, diversos públicos diferentes, em torno de um único objeto: música e espetáculos de qualidade extrema. O público norte-americano em nada tem a ver com o brasileiro. Não é tão caloroso, nem tão receptivo. Mas deve-se dar o braço a torcer. Se os norte-americanos vêm apoiando o Trans-Siberian Orchestra desde seu início, e ajudando a banda a crescer cada vez mais, seu bom gosto é inegável.

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