O Batman de Christopher Nolan e o Brasil

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O Batman entrou para o meu hall de heróis preferidos há pouco tempo, e isso se deve aos seus últimos três filmes. A trilogia de Nolan, com sua visão mais realista do mundo do herói, foi exatamente o que eu sempre esperei de um filme do tipo.

Foi o Batman de Nolan que levou a verossimilhança em filmes de heróis a outro nível, construindo uma trama extremamente sólida em que a parafernalha altamente tecnológica do Batman não está lá simplesmente por estar – apesar de também ser bastante importante.

Em Batman Begins, o que me animou bastante era, de fato, a tecnologia. Todos os veículos e armas pareciam ser extremamente reais, e sempre que eu via tinha a impressão de que aquilo poderia realmente existir. Eu tinha apenas nove anos, e foi muito tempo depois – só com o lançamento de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge – que eu me dei conta da obra-prima que aquela trilogia havia sido.

O que torna a trilogia tão sensacional e tão verossímil é o fato de que a trama não trata de mocinhos e vilões, mas sim de pessoas e suas visões de mundo. Nolan mostra o mundo como ele é, e que Batman e Coringa são apenas desdobramentos que, nas condições normais de temperatura e pressão, poderiam existir de fato. E é aí está toda a mágica.

O BAT-UNIVERSO REPRESENTANDO O MUNDO REAL

O grande protagonista da história não é Bruce Wayne, mas sim a própria cidade de Gotham City. Gotham é uma cidade corrompida de todas as formas possíveis, desde o mais alto até o mais baixo escalão da sociedade. O Estado em Gotham também é um exemplo dessa corrupção, onde ninguém da polícia – que é o órgão estatal que deveria garantir a segurança de ir e vir do povo – é confiável.

E se o Estado não traz segurança, o que você faz? O certo seria fazer as mudanças no próprio Estado, mas se você não confia nele, isso é impossível. Então o que resta são três opções: você pode se acomodar e viver com medo, entrar para o jogo e se corromper ou ainda tentar mudar por conta própria – que é a escolha do homem-morcego.

A gênese do herói acontece muito depois da morte do casal Wayne. É óbvio que a morte dos pais de Bruce não influenciou o surgimento do homem-morcego somente por seu caráter afetivo, porque se fosse assim ele poderia pagar um psiquiatra e sair por aí tomando banho com ruivas e comendo bacon. O que aconteceu é que Wayne cresceu e viu que a morte dos seus pais foi só um desdobramento de algo muito pior, a doença da sociedade de Gotham. Ele viu que a morte de seus pais se unia à morte diária de muitas outras pessoas, e que isso acontecia porque tanto a própria sociedade quanto o Estado que a representa estavam imersos em corrupção. E ele resolve arrancar esse câncer pro conta própria.

Ra’s Al Ghul e a Liga das Sombras também podem ser vistos dessa forma. Apesar de não terem surgido em Gotham, o único motivo que os leva para lá é o mesmo do surgimento do Batman. Eles querem expurgar o problema da cidade, só que de uma outra forma, que também tem lá sua justificativa. Os problemas sociais se mostram tão grandes e tão arraigados à própria população de Gotham que Ra’s e depois Bane não veem outra solução a não ser a destruição total da cidade.

Já o Coringa é a personificação louca e psicótica de toda a desordem de Gotham, que sabe como o sistema funciona e vai às últimas consequências para instaurar o caos. E a relação entre Coringa e Harvey Dent mostra exatamente o que acontece quando desordem e ordem se encontram e a última não consegue vencer a primeira – o Estado (Harvey Dent) morre. Harvey Dent deixa de existir e Duas-Caras surge, tão louco e perigoso quanto o Coringa – que é o que acontece quando o Estado perde sua função e sua maquinaria passa a funcionar para outros fins que não a ordem.

A questão é que, se você viu a trilogia toda, provavelmente nenhuma dessas reflexões é novidade para você – e se você está aqui no DELFOS é bem provável que você tenha visto. Então por que eu estou falando disso?

A GRANDE SACADA DE NOLAN

Porque a Trilogia Batman segue uma linha completamente diferente do que estamos acostumados quando se trata de filmes de super-herói. Desde os mutantes viajando no tempo até o guaxinim e a árvore monossilábica, o que vemos é que super-heróis, no cinema, são títulos que buscam unicamente uma diversão descompromissada. Vamos lá, tirando as explosões e frases maneiras do Guardiões da Galáxia, teve mais alguma coisa que fez você continuar pensando no filme depois?

GROOT!

E mesmo outros filmes da DC não seguem uma linha muito diferente. De cara eu me lembro logo do desastre Lanterna Verde e do Homem de Aço, que também não trazem nenhuma crítica mais profunda. E é claro que eu não vou deixar de citar o cara que fez o mundo rodar ao contrário só para salvar a Lois Lane.

O fato é que, tirando o romance e a ação descompromissada, os filmes de heróis não vão muito além disso – e isso para mim não é um problema, muito pelo contrário. Só que é importante destacar como a Trilogia Batman seguiu o caminho completamente oposto e foi extremamente bem sucedida. E vou mais além para demonstrar o peso que esses filmes têm.

Você reparou que, em alguns parágrafos, se eu mudasse “Gotham City” por “Brasil” as diferenças de contexto seriam mínimas? Eu poderia inclusive dizer que, guardadas as devidas proporções, a única coisa que muda de Gotham City para o Brasil é o fato de que lá o Rei do Camarote se veste de morcego para combater o crime.

A corrupção está entranhada tanto na nossa sociedade quanto na do filme, e, tanto aqui quanto lá, não vemos o Estado com a devida importância. Não estou dizendo que vamos acabar do mesmo jeito que a cidade fictícia, mas essa reflexão nos mostra que acomodação não nos leva a lugar nenhum. Não precisamos ser vigilantes para poder mudar alguma coisa – ainda que alguns boçais façam isso -, basta ver as coisas como elas realmente são.

O Estado é tão importante quanto a família, e talvez até mais. O problema é que a pessoalidade ainda é algo muito forte no pensamento do brasileiro, e acaba fazendo com que essa noção de público simplesmente desapareça. E, se não temos noção de público, como acreditar no Estado para fazer qualquer coisa? Gotham é um exemplo de uma cidade viciada, em que o Estado não possui valor – e isso, para mim, não é muito diferente de um país onde as pessoas votam no Tiririca.

E o mais curioso é reparar que, no fim das contas, o Batman não salva Gotham de nada. No fim da Trilogia, a cidade ainda está por se reconstruir, e é curioso reparar como um dos pontos altos dessa reconstrução é o investimento que Bruce faz nas crianças de Gotham. Fica bem claro que o caminho para se consertar qualquer coisa é rejuvenescer e reeducar a nossa sociedade. E você acha que aqui o caminho seria diferente? Mais um ponto para Christopher Nolan e sua habilidade de criar universos incríveis.

TIRANDO A POEIRA DO BATMÓVEL

E já que saiu o novo lançamento do Nolan, delfonauta, por que não relembrar os velhos lançamentos do diretor? Tire a poeira do seu uniforme de morcego, coloque uma prótese de metal para consertar o seu joelho e revisite a velha Gotham. Garanto que você irá se sentir tão empolgado quanto da primeira vez.