O Aborto dos Outros

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Qualquer pessoa que visita o DELFOS há algumas semanas, já deve saber minha opinião sobre a descriminalização do aborto. Afinal, já abordei o assunto em profundidade aqui e ainda dei palhinhas simpáticas sobre isso aqui e aqui.

Ainda assim, sempre há mais para falar. Afinal de contas, eu me sinto realmente incomodado por morar em um país que proíbe isso. Para mim, é como se os vegetarianos tomassem o poder e proibissem todo mundo de comer carne. O governo não tem que se meter no que não é um perigo para as outras pessoas. E eu nunca ouvi um argumento convincente a favor da proibição que não apele para coisas religiosas (o que deve ser uma opção individual, assim como fazer ou não o aborto) ou variações de “ninguém mais vai usar camisinhas se puder abortar depois” (o que é uma opinião deveras ignorante e já expliquei o motivo num dos textos supralinkados).

Por ter uma opinião bem forte sobre o assunto, esse é o tipo de filme que fui ver mais por interesse próprio do que para resenhar no DELFOS. Afinal, esta resenha provavelmente será lida por poucas pessoas e, destas, menos ainda realmente irão ao cinema. Porém, sou obrigado a dizer que ele muito me decepcionou.

O documentário conta com entrevistas com mancebas que abortaram, algumas de forma ilegal, mas a imensa maioria de forma legal (casos de estupro, má formação do feto e afins). Algumas coisas são interessantes, como uma delas que diz que foi informada na delegacia que, mesmo sendo legal, até o juiz autorizar, já vai ter passado dos seis meses de gravidez e não vai mais dar para fazer. Também achei curioso ver a reunião de médicos que decide o destino do resto da vida da moça grávida julgando se ela está ou não dizendo a verdade. Não é poder demais para um grupo de pessoas?

A maior parte das pessoas entrevistadas não mostra o rosto. Embora eu entenda a necessidade disso entre aquelas que fizeram aborto ilegal, não acho que seja tão difícil encontrar alguém que fez o legalizado e que aceite aparecer no cinema.

Os 72 minutos de filme são muito mal aproveitados (tem uma parte que fica um tempão mostrando uma torneira vazando e em outras são apenas as moças chorando, sem falar nada), sobretudo pela péssima escolha de personagens. Afinal, é bem mais relevante ver os efeitos que a ilegalidade do aborto tem nas pessoas do que ver como são feitos os casos previstos em lei. Afinal, é a parte da ilegalidade que a gente precisa mudar e, para conseguirmos isso, precisamos mostrar os efeitos negativos que a lei tem no povo, mostrando que, ao invés de cumprir o papel de proteger a população, ela na verdade está nos matando e torturando.

Porém, a diretora não concorda comigo e focou quase todo o filme nas mesmas pessoas, sobretudo em uma mina de 13 anos que foi estuprada. Porém, mesmo nesse caso, eu tenho que reclamar. Logo no início, a moça diz que namora e que era virgem. Poxa, não seria interessante falar também com o namorado dela? Afinal, ele deve ter sentimentos bem fortes sobre o assunto, visto o que aconteceu com sua amada.

Mas não, como normalmente acontece nesses casos, esse é considerado um problema exclusivo do sexo feminino e, portanto, todos os depoimentos são de mulheres. Em parte, eu até entendo, pois são as femininas que passam pela operação em si. Portanto, tratar isso como uma lei que só prejudica as mulheres ou como uma decisão exclusiva delas é errado. Afinal, se a moça decide ter o filho, o pai é obrigado a assumir e sustentá-lo. E, se ela decidir abortar apesar de o pai querer o filho, também não está certo. Tem que ser uma decisão do casal, não apenas da mulher. Ou senão é tão injusto quanto o pai carregar a mulher à força para um aborto clandestino. No filme, não temos nenhuma conversa com algum casal, é quase como se as mulheres, a exemplo da Virgem Maria que tanto admiram, engravidassem sozinhas.

Considerando que vemos o grupo de médicos decidindo o destino das mulheres que solicitam o aborto legal, também seria interessante uma entrevista com uma moça que teve esse direito negado por eles. Como ela reagiria? O que ela sentiria ao ter pessoas que nem conhece ou com quem se importa ditando como seria todo o resto de sua vida? Isso sem dúvida acrescentaria muito à obra.

Todos os entrevistados são pessoas muito parecidas e, mesmo as que fizeram aborto ilegal, ficam falando que serão castigadas por Deus e coisas do tipo. Um pouco mais de mistura seria deveras positivo. Com certeza muitos dos abortos ilegais feitos no nosso país são realizados por estudantes universitários que não são tão religiosos e têm pleno conhecimento da existência da camisinha (uma das entrevistadas diz que não sabia o que era isso até fazer seu quarto aborto ou algo assim), mas, por algum infortúnio do destino (afinal, camisinhas podem rasgar), engravidaram e não estão prontas para cuidar de uma criança. Por que não ouvir o que essas pessoas têm a dizer?

Por fim, há algum tempo, um amigo, cujo pai é médico, comentou que o pai dele costumava indicar hospitais seguros, limpos e legalizados, que poderiam fazer um aborto “por baixo dos panos” para qualquer pessoa que precisasse ou quisesse abortar. Claro, essa segurança tem seu preço, mas se esse mercado clandestino existe, é essencial que algo sobre ele esteja presente no filme. E não está.

Aliás, esse mercado clandestino só existe por burrice do governo, mais ou menos como a pirataria de games, que só é tão forte aqui por causa dos impostos abusivos. Os governantes achavam que isso traria mais bufunfa para os cofres públicos, mas acabaram afastando todos os fabricantes do setor por pura burrice. Assim, quem quer jogar e não tem uma ótima condição financeira não tem muita opção a não ser cometer um crime. O mesmo pode ser dito do aborto: em uma tentativa religiosa de proteger a possível, mas não garantida vida de um feto, o governo preferiu assassinar 80 mil mulheres por ano (segundo informações de um livrinho que foi distribuído na seção de imprensa, esse é o número de moçoilas que falecem ao se submeterem a um aborto clandestino), o que me fez cunhar a frase que ilustra a chamada de capa desta matéria: Brasil: o Estado laico mais religioso do mundo.

O problema é sério e tem que ser discutido até que a lei seja mudada. Porém, O Aborto dos Outros pouco contribui para isso, por ser focado principalmente em mulheres que já têm o direito de fazer algo que todas deveriam ter.

Curiosidades:

– Segundo o livrinho, no Brasil, uma em cada quatro gestações é voluntariamente interrompida, o que causa mais de um milhão de abortos por ano. Fazendo as contas, isso significa que nascem em torno de três milhões de nenês a cada 365 dias? Medo! O.o

– Confira aí embaixo na galeria mais uma página do livrinho, que mostra como o aborto é tratado pelas leis do mundo inteiro. Não é curioso que ele só seja proibido em países do hemisfério sul, quase exclusivamente na América Latina e África, ou seja, o lado pobre do mundo?

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Nota
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Carlos Eduardo Corrales
Editor-chefe. Fundou o DELFOS em 2004 e habita mais frequentemente as seções de cinema, games e música. Trabalha com a palavra escrita e com fotografia. Já teve seus artigos publicados em veículos como o Kotaku Brasil e a Mundo Estranho Games. Formado em jornalismo (PUC-SP) e publicidade (ESPM).
o-aborto-dos-outrosPaís: Brasil<br> Ano: 2008<br> Gênero: Documentário<br> Duração: 72 minutos<br> Diretor: Carla Gallo<br>