Homem-Aranha 2099

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Se hoje em dia o Homem-Aranha Ultimate é mais divertido de acompanhar do que o da cronologia oficial (confusa e cheia de absurdos e demônios apagadores de memória), lá nos já longínquos anos 90, o personagem vivia uma situação muito semelhante. Na linha normal, o escalador de paredes estava envolvido na tenebrosa Saga dos Clones. E para quem não queria saber dessas confusões rocambolescas e queria uma abordagem mais descompromissada, direta e diferente, havia a versão futura do personagem, o Homem-Aranha 2099, também conhecida como uma das HQs favoritas da minha adolescência (junto com Spawn), pela qual tenho um grande carinho até hoje.

E qual não foi minha surpresa ao saber que este tão estimado personagem ganharia um novo título dentro da iniciativa All-New Marvel Now!, e com ninguém menos que o próprio Peter David, o escritor original, novamente comandando suas aventuras. A primeira edição do novo título, inclusive, foi lançada em julho nos EUA.

Por conta dessa volta a um título próprio e para prestar minha singela homenagem ao gibi original que tanto alegrou minhas tardes quando ainda não tinha idade para me barbear, resolvi escrever essa matéria para apresentar o personagem para quem não o conhece e refrescar a memória daqueles que não se lembram dele. Para tanto, é preciso também uma pequena recapitulação sobre esse ambicioso projeto Marvel, o de criar todo um novo mundo de personagens futuristas baseados em seus medalhões da cronologia normal.

A LINHA MARVEL 2099

Não há muito segredo. Assim como a linha Ultimate é uma tentativa (bem-sucedida) de dar um reboot nos personagens, livrando-os de suas cronologias imensas e complicadas de décadas, atualizando suas origens e dando uma pegada mais realista, com o intuito de atrair novos leitores (e quem sabe, levá-los também a ler os personagens clássicos), o objetivo da linha Marvel 2099 era o mesmo: fazer os true believers acompanharem mais títulos e atrair os neófitos com um bando de revistas novinhas em folha que eles poderiam acompanhar desde o começo.

Nessa nova abordagem, as histórias se passavam num futuro sombrio do universo Marvel, no ano de, bem, 2099, oras! Com uma forte pegada de ficção científica, principalmente do gênero cyberpunk, tínhamos um mundo onde os super-heróis desapareceram no final do século XX em algum tipo de cataclismo e nunca mais voltaram. O planeta foi dominado pelas grandes corporações (sendo a Alchemax a mais importante), chegando ao cúmulo de privatizar até a polícia (chamada de Olho Público, uma subsidiária da própria Alchemax) e junto com os avanços científicos, como carros que correm sobre trilhos magnéticos e secretárias holográficas, veio também a perda de liberdades, e, sobretudo, da esperança. Poético, não?

Desta feita, eis que de repente, todos os heróis de outrora, dos quais o povo só conhecia pelos registros históricos, começam a retornar em novas versões, e um dos primeiros, e sem dúvida o mais popular, foi justamente o Homem-Aranha, em um título mensal escrito por Peter David e desenhado por Rick Leonardi.

Na mesma época foi lançado também Justiceiro 2099, Destino 2099 e Ravage 2099 (este, um personagem totalmente novo, criado por Stan Lee, mas que não fez sucesso). Com a boa recepção deste novo universo, logo vieram mais títulos, como X-Men, Hulk, Motoqueiro Fantasma e por aí vai, criando um mundo interligado, cheio de crossovers e de grandes histórias que afetavam a todos os personagens simultaneamente. Isso foi, ao mesmo tempo, uma grande sacada enquanto havia poucos títulos, e também sua grande ruína, como veremos mais para frente. Pois, por ora, é chegado o momento de centrarmos as atenções no tema da matéria: o Homem-Aranha futurista.

O ESCALADOR DE PAREDES DO FUTURO

Miguel O’Hara é um brilhante e egocêntrico engenheiro genético, funcionário da Alchemax, uma das principais e malignas megacorporações que dominam o mundo. Trabalhando num projeto para criar operários mais resistentes fisicamente (capazes de sobreviver no fundo do oceano ou no vazio do espaço), ele tem em mãos uma amostra do DNA de Peter Parker, o Homem-Aranha da chamada Era Heróica do século XX. Ele acredita que a mutação desse DNA (cortesia de uma aranha radioativa) pode lhe ajudar em seu projeto. Seu chefe, Tyler Stone, ignora seus avisos de que ainda é muito cedo para testar sua terapia genética em humanos e o obriga a seguir em frente mesmo assim, matando sua cobaia. Cheio de remorso, Miguel decide sair da empresa.

No entanto, para impedi-lo de deixar a “família” Alchemax, Tyler o vicia em êxtase, uma droga sintética altamente viciante e nociva, e fornecida oficialmente apenas pela própria Alchemax. Assim, ele teria de ficar e continuar o projeto em troca das doses necessárias, pois sem a droga, poderia morrer. Mas ele decide dar uma cartada desesperada e tenta usar sua terapia genética para livrá-lo do vício, imprimindo em si mesmo uma amostra de seu próprio DNA antes de ter a droga em seu organismo. No entanto, um funcionário invejoso testemunha o que ele está fazendo e sabota a máquina, trocando a amostra de Miguel pela de Peter Parker. Isso gera uma sobrecarga nos aparelhos, que explodem, revelando um novo Miguel O’Hara.

Resultado: ele ressurge com poderes aracnídeos. E alguns até bem diferentes do herói original, deixando-o mais parecido ainda com uma aranha humana. Fora a superforça, maior velocidade e resistência, ele ganha garras retráteis nas pontas dos dedos das mãos e dos pés (que o permitem escalar paredes), presas que secretam um veneno paralisante, uma visão mais potente (mas fotossenssível, o que o obriga a usar óculos escuros o tempo todo) e o principal, gera sua própria teia (ideia utilizada nos filmes do Sam Raimi e posteriormente até na cronologia normal nos quadrinhos por um curto período).

A Alchemax fica sabendo do acidente, descobre que alguém escapou vivo da explosão e como tudo que está dentro de seu prédio é de sua propriedade, passa a perseguir a cobaia fujona para estudá-la, sem saber que se trata do próprio Miguel O’Hara, o garoto de ouro da companhia. Para ocultar sua identidade, ele passa a usar uma antiga fantasia do festival mexicano do Dia dos Mortos e adota de vez o nome de Homem-Aranha. E assim temos a gênese de mais um herói tremendão.

O QUE A SÉRIE TEM DE LEGAL

Relendo a série para escrever essa matéria, foi um prazer constatar que ela ainda funciona muito bem, diverte e emociona, com um ritmo acelerado de adrenalina e até um senso de humor afiado do qual nem me lembrava, mas que foi muito bem vindo, ainda que as tramas acabem sendo mais simples do que me lembrava quando tinha meus 12 ou 13 anos. Para começar, toda a ambientação da Nova Iorque da época é bacana, com a cidade alta sendo futurista e ensolarada, cheia de carros voadores, e a baixa, aonde a luz do sol nem chega, tem seus prédios remanescentes do século passado e é infestada de gangues exóticas. Fora os traços culturais, exacerbando para o futuro coisas que já existem hoje como a grande influência nos EUA da cultura hispânica e o surgimento de seitas religiosas malucas.

Depois, o personagem é bem fundamentado. Diferente de Peter Parker e seu bordão (você sabe qual é!), Miguel começa como um “boyzinho” egocêntrico sem nenhuma consciência social. Ele se torna o Homem-Aranha a princípio apenas para salvar a própria pele, já que quer apenas ocultar sua identidade da Alchemax. E as primeiras histórias são apenas ele fugindo e se defendendo dos caçadores de recompensa contratados pela empresa para capturá-lo.

No entanto, à medida que a história avança, ele vai tomando conhecimento do mal causado pela corporação à cidade e principalmente às pessoas que não podem desfrutar de seus serviços. Assim, assume o papel de defensor da população, em um processo gradual que não fere a construção inicial do personagem, tornando-o mais complexo, ao mesmo tempo em que vamos também descobrindo suas origens e sua ligação direta com seu desafeto, Tyler Stone.

Claro, no meio disso tudo ele enfrenta versões futuristas dos vilões do antigo Aranha, como o Abutre (agora, um canibal da cidade baixa) e Venom (o simbionte unido a Kron Stone, filho de Tyler), dentre outros inéditos, embora nenhum desses novos vilões seja particularmente marcante. Ele também interage com os outros heróis que começam a pipocar pelo mundo, gerando uma nova Era Heróica.

Os grandes pontos altos da série, escrita com muita competência (como sempre) por Peter David, sem dúvida são o clima de ficção científica distópica, com máquinas maravilhosas, mas uma sociedade caótica e cruel e principalmente o tom religioso que nunca antes havia sido abordado e gera momento hilários bem como o primeiro grande crossover do universo Marvel 2099.

Logo que surge, ele é tido pelos thoritas (uma religião de adoradores de Thor, que também desapareceu no fim do século XX) como o arauto do retorno do deus do trovão. Não demora muito até se envolver com os lunáticos membros da seita. E seus atos anticorporativos chegam até a causar um racha nela gerando uma nova facção, os aranhitas, que não apenas o veneram, como saem por aí fantasiados como ele, cometendo atos de anarquismo.

Sem dúvida, uma abordagem diferente do tradicional “encha o vilão do mês de bordoadas”, que não envelheceu nem um pouco e poderia até voltar a ser utilizada com mais frequência.

O DECLÍNIO E O FIM

Infelizmente, a Marvel sempre dá um jeito de estragar tudo em algum ponto. E com o Universo 2099 não foi diferente. A princípio restrito a poucos títulos, à medida que o sucesso aumentava, mais personagens debutavam sob a marca. E aí a editora exagerou. Quando chegou a um ponto em que havia até Geração X 2099 (sério, a do universo normal já era inútil!), as coisas degringolaram.

Eram muitos personagens, a maioria sem a mesma graça dos primeiros, e dizer que eram em demasia não seria nenhum exagero. O universo do futuro virou uma grande bagunça, com as interligações atrapalhando, já que era preciso ler uma grande quantidade de títulos para entender o que acontecia (o maior exemplo disso é a saga onde o Dr. Destino vira presidente dos EUA). Assim, a qualidade das histórias despencou e as vendas baixaram drasticamente.

Ao mesmo tempo, o editor da linha, Joey Cavalieri, foi demitido como medida de diminuição de custos. Como resultado, vários dos escritores e artistas se demitiram em protesto, incluindo-se aí Peter David. Aí a HQ do escalador de paredes desceu a ladeira de vez, sendo cancelada no número 46, a mais longeva de toda a linha.

O universo Marvel 2099 acabaria pouco tempo depois, deixando saudade nos leitores da época. E embora tenha durado relativamente pouco tempo (seis anos), a experiência levou a editora a uma nova tentativa de linha paralela de revistas, criando a linha Ultimate. E se hoje você vibra com as histórias de um Peter Parker novamente adolescente, tenha certeza que isso se deve muito a Miguel O’Hara, o Homem-Aranha de 2099. Então faça um favor a si mesmo e corra atrás desse material, pois vale muito a pena.

CURIOSIDADES:

– As 46 edições do título Spider-Man 2099 foram publicadas nos EUA de novembro de 1992 a agosto de 1996.

– Sobre a equipe criativa: Peter David escreveu as edições 1 a 20 e 22 a 44. Quase tudo. Na arte, quem mais ficou foi o desenhista Rick Leonardi, junto do arte-finalista Al Williamson. Juntos, fizeram os números 1 a 8, 10 a 13, 15 a 17, 19 e 20 e 22 a 25. Depois disso o título passou por um grande rodízio de artistas, o que também prejudicou a qualidade do gibi.

– No Brasil, suas histórias foram publicadas pela Editora Abril no título Homem-Aranha 2099, que teve 39 edições lançadas entre outubro de 1993 e dezembro de 1996, compilando todas as edições de sua contraparte estadunidense. E eu tinha a coleção completa!

– Vale citar o encontro entre Miguel O’Hara e Peter Parker na edição especial Spider-Man 2099 Meets Spider-Man, de novembro de 1995 (no Brasil, saiu em Homem-Aranha 2099 #35, de agosto de 1996) onde primeiro eles trocam de lugar. Peter vai parar em 2099 e Miguel acorda no passado, ao lado de Mary Jane. Depois eles finalmente se encontram para derrotar um inimigo em comum. É clichezento, mas é divertido!

– Em 2009, a Marvel revisitou o Universo 2099 com a minissérie Timestorm 2009 – 2099, escrita por Brian Reed e desenhada por Eric Battle, promovendo um grande crossover entre os personagens do presente e do futuro. No entanto, pelo que apurei, os personagens tiveram suas histórias mudadas. O próprio Miguel O’Hara voltou a ser um adolescente e ganha seus poderes numa explosão causada pelo fluxo do tempo enquanto fazia experimentos com uma aranha geneticamente alterada. E só de ler isso eu já brochei…

– Já em 2013, Miguel O’Hara participou do arco (até o momento do fechamento dessa matéria, ainda não publicado no Brasil, portanto cuidado com spoilers neste tópico) Necessary Evil (Mal Necessário) do título Homem-Aranha Superior (fase conhecida pela mente do Dr. Octopus controlando o corpo e os poderes de Peter Parker). Na trama, Miguel O’Hara volta no tempo até o presente para investigar uma anomalia que reverberou no futuro e, ao final da saga, acaba preso no presente.

– E agora em julho de 2014 estreou nos EUA o novo título Spider-Man 2099, com Peter David voltando a escrever o personagem, com arte de Will Sliney. As novas aventuras são retomadas do ponto onde parou sua participação no arco do Homem-Aranha Superior.

– O personagem também já deu as caras nos games, como um dos quatro Homens-Aranha de Spider-Man: Shattered Dimensions, ao lado do (Ultimate, o Amazing (o da cronologia normal) e o Noir.

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