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– O jornalismo e o diploma: Será que faz mesmo tanta diferença na profissão?
– A inutilidade das universidades: Agora o Torquemada quer acabar com as universidades.
Nota: A coluna Pensamentos Delfonautas é o espaço para o público do DELFOS manifestar suas opiniões e pensamentos sobre os mais variados assuntos. Apesar de os textos passarem pela mesma edição que qualquer texto delfiano, as opiniões apresentadas aqui não precisam necessariamente representar a opinião de ninguém da equipe oficial. Qualquer delfonauta tem total liberdade para usar este espaço para desenvolver sua própria reflexão e, como não são necessariamente jornalistas, os textos podem conter informações erradas ou não confirmadas. Se você quer escrever um ou mais números para essa coluna, basta ler este manual e, se você concordar com os termos e tiver algo interessante a dizer, pode mandar ver. Inclusive, textos fazendo um contraponto a este ou a qualquer outro publicado no site são muito bem-vindos.
A essa altura, todos já devem saber que há algumas semanas o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a exigência do diploma de Jornalismo para o exercício da profissão de jornalista, não é? A polêmica decisão gerou um certo bafafá por alguns dias, mas foi deixada de lado pela mídia em geral – e consequentemente também pela população – antes mesmo da morte de Michael Jackson (que Deus o tenha!), que agora rende pauta para todos os noticiários possíveis. Mesmo com esse esquecimento tão tipicamente brasileiro, a pergunta que não deixa de pairar sobre minha cabeça de jornalista recém-formado é: quais serão as consequências disso?
Confesso que não sei. Os dias passam e eu converso com colegas da área e pessoas de fora dela, e ouço opiniões bem distintas. Enquanto alguns colegas são bem otimistas, trazendo o discurso “de qualquer forma, só os melhores se sobressaem”, outros não deixam de considerar que o Q.I. (o famoso “Quem Indica”) poderá ser ainda mais forte, dentre outros fatores que causam receio em profissionais e estudantes. Pois bem, farei desse texto um porta-voz dessas dúvidas, e não uma tentativa de amarrar o monte de nós que foram deixados soltos após a decisão do STF.
Primeiro de tudo, devo comentar um dos argumentos utilizados para a derrubada da exigência do diploma: o fato de a profissão de jornalista não requerer uma técnica, por se igualar a uma atividade artística, ou algo assim, de acordo com os excelentíssimos senhores do STF. Uma arte, é? Pois bem, concordo que o exercício do Jornalismo requer, sim, uma boa dose de criatividade, pois para elaborar um texto atraente é necessário ter uma certa inspiração. Agora, será que também um arquiteto não precisa desse “toque artístico” na hora de bolar uma planta? Um advogado não precisa ser um “artista” ao planejar a defesa que irá salvar aquele cliente que já está condenado pelos fatos? Um dentista não precisa de senso estético e criatividade aguçada ao restaurar um dente? Ora, essas profissões também precisam de uma dose de “inspiração artística”, mas também é essencial que se conheça a técnica para poder fazer o seu trabalho, não é?
O mesmo ocorre com o Jornalismo. Nem toda reportagem ou texto jornalístico pode ser considerado uma obra de arte, você não concorda? Na verdade, o que encontramos diariamente na TV e nos jornais – principalmente quando se trata de assuntos factuais, notícias – são textos que seguem a cartilha da técnica jornalística ao pé da letra, somente encaixando os fatos em estruturas narrativas utilizadas como modelo. Há algo de errado nisso? Não, é simplesmente a técnica para a transmissão da mensagem ao público. Nem tudo é digno de Prêmio Esso. Nem tudo é “arte”. Chegaram a comparar os jornalistas com os músicos por aí… Ah, quanto exagero!
No entanto, eu logicamente reconheço que a prática é mais importante para o Jornalismo do que a teoria. Digo isso pois, durante meu tempo de faculdade, sempre me senti incomodado com o “academicismo” excessivo, aquele tipo de comportamento em que professores tentam entupir o aluno de textos teóricos que dificilmente serão lembrados quando este já não for mais um estudante, e sim um profissional em meio à loucura de uma redação. Por outro lado, posso dizer que tive professores – e até colegas – que contribuíram muito para minha formação profissional. A faculdade tem o seu valor, e funciona como uma forma de preparar o terreno do futuro profissional, inserindo-o gradativamente na realidade do mercado onde pretende trabalhar. Você pode escrever bem, ser curioso e engajado, mas não é por isso que você já é um jornalista. Assim como não basta entender muito bem de um assunto para se considerar apto a tratá-lo de forma jornalística.
Eu gosto da definição que descreve o jornalista como um “especialista em coisa alguma”. Essa falta de exclusividade a um único ramo do conhecimento, digamos assim, o facilita a exercer seu papel, que é o de mensageiro, porta-voz que leva informações tratadas em linguagem específica pelos especialistas, ao público leigo. Por exemplo, temos jornalistas que escrevem sobre economia, sobre medicina, sobre informática. Eles constantemente estão em contato com pessoas da área, seja consultando-os ou entrevistando-os, para elaborar suas pautas, e depois de peneirar aquela informação, que chega “criptografada” pelos termos e costumes de cada uma dessas profissões, eles a passam para o público através de uma linguagem acessível. Agora, vamos supor que o dono de um veículo coloque aquele amigo médico renomado para cuidar de uma editoria de saúde. Há grandes chances de termos aí um texto muito técnico sendo produzido, pois nem todos são Drauzio Varella – aliás, você acha que este também não tem jornalistas trabalhando nos bastidores de suas reportagens?
Caso o leitor me permita contar um pouco de minha história, vou lhes dizer como entrei para o curso de Jornalismo. Primeiramente, quando tinha 17 anos, tentei vestibular para dois cursos em universidades diferentes: Jornalismo e design industrial. Passei somente no de design industrial e fui levando, sem me identificar com o curso. Até que um dia fui a uma feira do vestibular, onde empresas e insituições de ensino se divulgavam para os estudantes indecisos, e fiz um teste em uma agência de notícias. Era só escrever um texto sobre o evento. Escrevi, e fui selecionado para estagiar na agência. Mas eu não pude, pois não cursava Jornalismo. Naquela época, ainda era exigido o diploma.
Pois bem, resolvi tentar novamente o vestibular para Jornalismo e passei. Identifiquei-me tanto com o curso que resolvi largar o design no terceiro ano. Não demorou muito para que eu arrumasse outro estágio, mas fico me perguntando como teria sido minha jornada profissional caso tivesse começado naquela agência de notícias, que era até renomada na cidade. O fato é que se eu analisar textos de quando tinha acabado de entrar na faculdade, tenho vergonha. Penso “como podia eu escrever assim?”. Não havia nenhum conhecimento dos critérios jornalísticos, nem nada disso, mas na época eu me achava o bonzão, achava que a faculdade não ia me acrescentar nada. Deve ser assim que muitos devem estar pensando neste momento em que o diploma foi rejeitado.
Mas é claro que podem argumentar que as faculdades de Jornalismo são fracas em sua maioria, e eu lhes digo: e as faculdades de Direito, que são muito mais numerosas, mas só conseguem aprovar uma pequena porcentagem de seus alunos no exame da OAB? Neste caso, a profissão de advogado permanece “a salvo” devido a uma minoria entre os estudantes de Direito. Ao contrário disso, o Jornalismo teve seu diploma sacrificado devido a uma minoria: os profissionais que trabalham sem diploma. Com certeza existem muitos profissionais bons neste meio, que foram aperfeiçoados puramente pela prática e tiveram a oportunidade “de ouro” de entrar no mercado sem precisar sentar no banco de faculdade, mas continuam sendo minoria. Então por que a maioria tem que ser prejudicada devido a uma minoria?
Você pode argumentar “mas quem disse que os diplomados vão ser prejudicados?”, e eu lhe respondo que, nesse aspecto, acabo me juntando ao coro dos pessimistas. Vamos falar um pouco da parte financeira. Sabemos que o salário dos jornalistas não é dos melhores, e a cada ano os sindicatos de jornalistas de cada estado negociam com empregadores um aumento de alguns trocados. O que será que nos espera a partir de agora quanto ao assunto de piso salarial? Não podemos deixar de considerar que o Jornalismo deixa de ser uma profissão de nível superior. Já que está tudo sendo nivelado “por baixo” – a partir dos profissionais que não têm o diploma – por que o salário não deverá seguir essa tendência também?
Outra consequência será a confusão de quem poderá ser considerado jornalista ou não. Um dos argumentos utilizados pelo STF – e tão defendido pelo pessoal do Direito – seria a “liberdade de expressão” de todos os cidadãos. Pelo que eu entendi disso, o fato de você estar escrevendo em um veículo jornalístico deveria ser direito de todos então, pois isso seria liberdade de expressão, mas isso não faz muito sentido, convenhamos. Os jornais sempre tiveram espaço para cartas do leitor, nunca foi preciso ter diploma para ser colunista, e em tempos onde qualquer pessoa pode montar um blog sem custo algum em questão de segundos, quem pode reclamar de liberdade de expressão? As ferramentas estão aí, basta saber usar, e para isso não precisamos sair distribuindo o título de jornalista para todo mundo.
É aí que vamos ter uma multidão de blogueiros se autodenominando jornalistas, e coisas do tipo. Convenhamos novamente, não é porque um blog é legal e divertido que ele vai ter o mesmo nível de qualidade de informação que um meio jornalístico. Um exemplo disso foi a cobertura da Campus Party no ano passado: dezenas de blogueiros badalados estiveram presentes, mas em nenhum – ou quase nenhum – de seus blogs era possível ler sobre os assuntos discutidos nas palestras do evento. A cobertura blogueira girava em torno do humor e do espírito de “Uau! Que legal a Campus Party!”, enquanto a imprensa tradicional tratou de cuidar dos assuntos, digamos, sérios. E alguém poderia argumentar que a imprensa está cheia de maus profissionais e veículos que podem ser considerados “marrons”, mas novamente estaríamos cometendo o equívoco de nivelar por baixo. Também há um monte de maus médicos e maus advogados, não há? Além do mais, aí está mais uma importância da faculdade, local onde, mesmo com tantas carências e defeitos, discute-se exaustivamente sobre ética e boa prática da profissão.
Imaginando o pior dos cenários, teremos uma imprensa desorganizada – pois vai ficar difícil organizar sindicatos e regulamentar jornalistas, já que, além do diploma, não é mais exigido registro profissional no Ministério do Trabalho também. Se a imprensa é considerada por alguns como o “quarto poder”, responsável por vigiar as atitudes dos Três Poderes oficiais do Estado, encerro este texto parafraseando Alan Moore: “Quem vigia os vigilantes” agora?
* Fiz questão de escrever Jornalismo sempre começando com letra maiúscula. 0/