O Animal Cordial me chamou a atenção imediatamente. Apesar de a diretora Gabriela Amaral Almeida dizer em entrevista após a sessão que a referência ao conceito de Sérgio Buarque de Holanda não foi intencional, é impossível não se lembrar dele. Digo mais, eu colocaria O Animal Cordial como um dos melhores títulos de filmes nacionais que já vi.
Felizmente, a obra continua interessante quando você chega mais próximo dela. Classificado como slasher/thriller/gore no release enviado pela distribuidora, sem dúvida ele chama atenção em meio aos filmes brasileiros, sempre tematicamente semelhantes. Eu não concordo exatamente com esta tripla classificação, e vou elaborar isso, mas neste momento cabe dizer que O Animal Cordial é um filme de terror sem concessões.
DON’T BREATHE
Escolados em filmes de terror vão lembrar de O Homem nas Trevas (Don’t Breathe, no original) assim que lerem algo sobre a trama de O Animal Cordial. Afinal, como no filme estadunidense de 2016, aqui temos um protagonista/vilão que inicialmente até está com a razão, mas que a perde ao longo da projeção.
Inácio (Murilo Benício) é o dono de um restaurante que, nas palavras da diretora, “ele considera chique, mas está perto da decadência”. Quando dois assaltantes resolvem roubar o estabelecimento – e, ao fazê-lo, violam sua funcionária e uma cliente – ele resolve proteger sua propriedade.
Vivemos em um país em que muita gente considera que “bandido bom é bandido morto”, então não espantaria se Inácio fosse considerado um herói por uma galerinha, mais ou menos como aconteceu com o Capitão Nascimento. Inácio, no entanto, perde a razão forte. E um dos maiores trunfos deste filme é justamente a forma como trilha este arco dramático invertido.
Não demora para ele estar com os ladrões subjugados, mas também com clientes e funcionários. A paranoia é forte neste menino, e O Animal Cordial acerta em nos deixar em dúvida sobre o que é ou não factual.
VIOLENTO, MAS SEM VIOLÊNCIA
O Animal Cordial é um filme violento e pesado, mas não tem violência gráfica. Apesar de ser classificado como gore no release da distribuidora, não espere por tripas ou algo assim. Há sangue de montão, verdade, mas sua violência acontece primordialmente fora das câmeras. Isso não significa que ele não seja impactante, mas o impacto vem mais da situação do que do mostrado de fato. Por isso, em minha avaliação, ele não é gore.
Agora slasher… aí a coisa fica mais complicada. O que temos aqui não é semelhante a um Sexta-Feira 13 ou A Hora do Pesadelo, bastiões máximos do gênero. Estes filmes, em geral, são divertidos e focados em um público adolescente, o que não é o caso aqui. Porém, não dá para negar que temos aqui um psicopata matando pessoas, então esta é a situação que o aproxima ao gênero, ainda que a emoção que ele causa seja bastante diferente.
Eu fiquei dividido quanto à direção. Em alguns planos, a mão da diretora é segura e estilosa, mas em outros, especialmente no início – parte mais fraca do longa – é um tanto pesada. Ela abusa um tanto demais de ter algo (uma parede, por exemplo) obstruindo parte da tela, o que acaba sendo um desperdício de telona, a característica mais marcante do cinema.
O ANIMAL CORDIAL
A história também segue alguns caminhos que causam estranhamento. Mais de uma vez, o filme me arrancou risadas, e não me refiro às cenas que intencionalmente servem como alívio cômico.
Além disso, há um momento de reviravolta que simplesmente não é mostrado. Não é que simplesmente acontece fora da câmera, é mais algo remanescente daquela piada do Planeta Terror em que aparece a mensagem de que um trecho do filme foi perdido.
É o tipo de decisão arriscada que poderia até ter rendido frutos, mas da forma que foi montada acabou dando a sensação de que queriam levar a história por um determinado caminho. Daí, ao não saber como chegar lá, simplesmente foram do antes para o depois sem passar pelo durante, causando uma sensação quase literal de coito interrompido.
Isso não significa que eu não gostei do filme. Muito pelo contrário. Aliás, tenho a sensação que sempre que gosto muito de um filme nacional, o Irandhir Santos está no elenco (o excelente Olhos Azuis vem à mente). Este cara realmente sabe escolher bem seus papéis. Murilo Benício também me chamou a atenção, mas este foi mais por uma absurda semelhança física com o cantor Glenn Danzig.
E já que falamos das atuações, desta vez elas não me incomodaram, o que é um grande elogio para um filme nacional. Obviamente, estamos longe da qualidade internacional neste aspecto, mas este é um dos longas que trazem um claro sinal de melhora.
O Animal Cordial é, portanto, um ótimo representante do terror, gênero que raramente é feito aqui no Brasil. Por conseguir fazê-lo usando de personagens e temas tipicamente tupiniquins, aumenta bastante o interesse e fica fácil recomendá-lo para fãs do cineminha de medo.