Consumidos

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A filmografia do cineasta canadense David Cronenberg era povoada por imagens de gore, transformações físicas extremas e atos sexuais pouco ortodoxos. Em suma, o que de mais bizarro e chocante o corpo humano podia oferecer, interessava a ele explorar em seus longas-metragens.

Contudo, desde Spider – Desafie Sua Mente, de 2002, sua obra entrou em uma nova fase, menos gráfica e mais voltada para o psicológico. Se a estética que o tornou famoso foi deixada de lado na tela grande, ela ainda habita o imaginário de Cronenberg, precisando apenas de uma nova válvula de escape.

Consumidos é o primeiro romance do diretor de cinema e resgata muitos dos elementos tão utilizados na primeira fase de sua carreira no cinema, em uma história que também poderia render um de seus tradicionais longas, ainda que esta aqui em particular acabe se perdendo pelo caminho.

Acompanhamos um casal de jornalistas, Nathan e Naomi, fissurados em câmeras e qualquer outra traquitana audiovisual que eles possam usar em seu trabalho. Naomi, que trabalha para um tablóide, está fazendo uma matéria sobre um crime brutal envolvendo um notório casal de intelectuais franceses e canibalismo.

Já Nathan, especializado em matérias sobre medicina, acompanha um polêmico método de tratamento de câncer de mama ministrado por um médico de ética duvidosa. Em algum momento, as matérias dos dois jornalistas vão se cruzar, como já é costumeiro nesse tipo de trama.

O romance até começa bem, com o referido canibalismo e críticas à sociedade de consumo e ao mundo conectado, sobretudo por conta de Naomi, o tipo que não consegue sair da internet e faz as pesquisas para suas matérias pela Wikipédia. Mas depois ele se perde na história, que vai ficando cada vez mais sem pé nem cabeça.

Me passou muito a sensação de que Cronenberg não sabia para que lado queria levar a história e foi improvisando pelo caminho, colocando um monte de esquisitices e viradas estapafúrdias só para manter a aura de bizarrice, quando na verdade há muito pouco conteúdo ali.

Outra coisa que me incomodou em vários momentos é a prosa dele. Manja quando alguém começa a falar difícil sem o menor propósito, só para parecer inteligente, mas acaba soando apenas ridículo? Há vários momentos assim, com metáforas e usos de adjetivos bem vergonhosos ao melhor estilo “olha, mamãe, como eu sei florear minha escrita”, ao invés de fazer o simples, que muitas vezes é até bem mais difícil.

Até daria para relevar isso se a história fosse legal, mas como ela vai ficando cada vez mais sem sentido, acaba apagando por completo a boa primeira impressão causada pelas páginas iniciais e tornando a leitura bastante enfadonha e decepcionante, visto que ela parecia tão promissora num primeiro momento.

Assim, de início Consumidos até lembra alguns dos melhores momentos de David Cronenberg no cinema, mas não demora muito para essa impressão se desfazer totalmente. Sua estreia na literatura é bem decepcionante e, se fosse um filme, sem dúvida seria sério candidato a um dos piores de sua carreira.

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Nota
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Carlos Cyrino
Formado em cinema (FAAP) e jornalismo (PUC-SP), também é escritor com um romance publicado (Espaços Desabitados, 2010) e muitos outros na gaveta esperando pela luz do dia. Além disso, trabalha com audiovisual. Adora filmes, HQs, livros e rock da vertente mais alternativa. Fez parte do DELFOS de 2005 a 2019.
consumidosPaís: EUA<br> Ano: 2014<br> Autor: David Cronenberg<br> Número de Páginas: 304<br> Editora: Alfaguara<br>