Como o Gavião Arqueiro resgatou meu amor por HQs

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Chegou ao fim uma das séries mais celebradas dos quadrinhos recentes: a HQ do Gavião Arqueiro com roteiro de Matt Fraction e arte do David Aja. Confesso que deixei de ler HQs há anos por alguns motivos (apesar de ter crescido com elas e ter desenvolvido afeição por vários personagens). O principal foi ficar velho. A rotina corrida de faculdade, estágios, trabalho e outras responsabilidades da vida adulta me obrigaram a investir em outras mídias como o cinema e séries de TV (não deixo de ler meus livros, é claro).

Outro motivo relevante é o desgaste do formato das HQs. Não tenho paciência para arcos intermináveis que desembocam em reboots de todo universo, personagens que voltam à vida mediante o uso de recursos questionáveis etc. O que até me beneficiou na medida em que comecei a buscar histórias/arcos mais curtos como Watchmen, o Cavaleiro das Trevas do Frank Miller e outros itens tidos como “essenciais”.

Em resumo, tenho preferência por narrativas com início, meio e fim. Fico extremamente irritado em dedicar anos a algo que só se alonga por motivações econômicas ou tentativa de manutenção do hype. Dois exemplos: Naruto e How I Met Your Mother. Tanto o animê/mangá quanto a sitcom perderam a oportunidade de encerrar suas histórias com dignidade, enquanto um se tornou um fanfic cômico de si próprio o outro se degradou com temporadas totalmente desnecessárias.

CASCÃO VS. GAVIÃO ARQUEIRO

A última vez em que tive contato com uma obra criativa, direta e que soube dosar bem o seu desenvolvimento foi Scott Pilgrim do Bryan Lee O’ Maley. Com traços simples, muito humor, referências à cultura pop e elementos capazes de cativar qualquer nerd. A saga de Scott versus os ex-namorados da Ramona se tornou uma das minhas histórias favoritas pela originalidade. Outra surpresa recente foram alguns arcos do Batman dos novos 52, do Scott Snyder e Greg Capullo.

Mas nenhuma delas me surpreendeu tanto como o Gavião Arqueiro da dupla Fraction/Aja, série iniciada em 2012.

Apesar do status de vingador favorito de todos após a adaptação cinematográfica da Era de Ultron, o Sr. Clint Barton está longe de compor o primeiro escalão da Marvel. Ele não é um supersoldado, nem um deus do trovão, não é um monstro verde raivoso e não se identifica como um gênio, bilionário, playboy e filantropo. Está a uma Scarlett Johansson de distância da Viúva Negra. Barton é apenas um louco com arco e flecha e seu super poder talvez seja reconhecer que vai parar no hospital se pular de um prédio.

Particularmente, sempre achei o personagem tosco demais. Aliás, sempre preferi o Robin Hood da Disney em comparação a figuras como Clint Barton e Oliver Queen. Portanto, imaginem a minha decepção na edição da Turma da Mônica dedicada aos Vingadores na escolha do herói que seria retratado pelo meu xará mais famoso.

ASK ME NO QUESTIONS, I’LL TELL NO LIES

O ponto comum do sucesso cinematográfico do Gavião Arqueiro e desta série nos quadrinhos é a ridicularizarão do personagem (e sua arma do período Paleolítico) capitaneada pelo próprio. O Clint do Matt Fraction é um falastrão que precisa conciliar a vida de vingador com as missões da SHIELD e as tretas do dia-a-dia.

E são as tretas do dia-a-dia que tornam a série especial. Barton veste a carapuça de uma espécie de Hank Moody, aquele cara de bom coração, mas um tanto quanto autodestrutivo e que se envolve em altas confusões e aventuras no estilo Sessão da Tarde.

O enredo é simples e centrado nos vários relacionamentos do Arqueiro: com os seus vizinhos, o seu cachorro, sua família, os Vingadores, a SHIELD, as mulheres da sua vida, o grupo de vilões da história. O ponto de partida é a briga dele com a Máfia Russa para impedir a compra do seu prédio (a Casa das Ideias gosta de brincar com especulação imobiliária).

Kate Bishop, versão feminina do Gavião Arqueiro, exerce o papel de amiga, protegida e discípula de Barton e possui grande relevância na trama. Algumas edições são inteiramente dedicadas a ela e sua incursão na cidade de Los Angeles. O relacionamento dos dois é retratado como o amor encontrado na admiração mútua da relação mentor e protegido, incluindo seus altos e baixos.

O mérito da série é ser algo que pode ser lido por qualquer pessoa, independente de conhecimento prévio do universo Marvel. A série se mantém original e criativa, mesmo trabalhando com personagens já existentes, os explorando de forma não ortodoxa e até mesmo despretensiosa. O humor é o típico da Marvel aliado ao tom de comédias televisivas. Por exemplo: nada me tira da cabeça que a breve aparição do Tony Stark no apartamento do Barton foi inspirada nisso aqui.

OKAY…THIS LOOKS BAD

A narrativa das edições não é linear. Em algumas passagens temos prévias do que será mais aprofundado em edições posteriores na visão de outros personagens. Há uma edição desenvolvida totalmente a partir da visão do personagem mais carismático de todos: Lucky (a.k.a. The Pizza Dog), o cachorro de Barton. A abordagem da percepção canina dos fatos é brilhante e sensibiliza qualquer amante de cachorros.

Outras edições são igualmente sensíveis como a que não possui textos em alguns balões de diálogo e passagens na linguagem de sinais para retratar a surdez de Barton, bem como a que destaca as relações complicadas do Arqueiro com as principais mulheres da sua vida: Natasha Romanov (Víuva Negra), Barbara Mose (Harpia) e Jessica Drew (Mulher-Aranha).

São alguns recursos utilizados para romper paradigmas estabelecidos no começo da série a exemplo do texto de abertura:

Clint Barton também conhecido como Gavião Arqueiro: se tornou o melhor atirador conhecido pela humanidade e se juntou aos Vingadores. Isto é o que ele faz quando não é um vingador e é tudo que você precisa saber”.

O texto foi revisto algumas vezes para se adequar ao abordado na edição ou por pura galhofa. As ilustrações do David Aja (e equipe criativa) ajudam a moldar o tom clássico e visceral da série, chegando a lembrar artes do Hergé (As Aventuras de Tintin.)

SUDDENLY EVERYBODY’S METALLICA’S DRUMMER

Basicamente, Hawkeye (2012-2015) é uma das melhores HQs que eu já li. Se por um lado, fiquei órfão com seu término, consegui resgatar um hábito antigo em contrapartida. Imagino que o futuro reserva o status de clássico definitivo dos quadrinhos para esta história do Arqueiro falastrão. Pode até se tornar fonte para outras adaptações: quem sabe um seriado do Netflix inspirado naquele outro seriado do Netflix?

Hawkeye (2012-2015) está disponível em versão digital (somente em inglês) para compra no Comixology. Cada edição custa por volta de 2 dólares.

“You asked about the Avengers. Y’wanna know the best part about being an Avenger? Having Captain America around you all the time. He just—the guy just brings out the absolute best in people. You want to be good when he’s around. You really do.

Ivan, look around you real quick. Because right now, Captain America ain’t here.”

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