Você consegue imaginar um mundo sem Internet? Sem MSN, sem Hotmail (Nota do Carlos: Hotmail fede!), sem ICQ, sem IG, sem o Google e tantas outras ferramentas que facilitam a nossa vida atualmente?
Pois, por incrível que pareça, este mundo já existiu, e olha que não faz tanto tempo assim. A rede mundial dos computadores chegou ao Brasil há menos de 10 anos. Antes disso, o máximo que se conhecia em vida “online”, era um palavrão chamado BBS. Mas o que eram essas BBSs, titio Bruno?
A sigla, em inglês, significa Bulletin Board System. Complicado, né? Mas na prática, a sua tradução era muito simples: as BBSs eram “provedores” onde você poderia se conectar através dos modems, assim como se conecta na Internet hoje em dia, e bater um papo com alguém, baixar arquivos e fazer uma jogatina online.
Quando você lê o parágrafo acima, deve imaginar um portal estilo UOL certo? Mas as BBSs estavam longe da beleza de uma página de Internet. Na verdade, a maioria dos programas utilizados para a conexão eram em formato DOS (o antigo sistema operacional da Microsoft), portanto o mouse era apenas um enfeite e todos os comandos tinham de ser digitados pelo teclado. As telas eram bem simples, não tinham variações de cores, imagens e fontes variadas, o HTML com seus gráficos e fotos só apareceria alguns anos mais tarde.
Era tudo bem simples e rústico, mas ninguém reclamava. Pelo contrário, as BBSs viviam lotadas, e era muito difícil conseguir se conectar à meia noite (horário em que o pulso telefônico fica mais barato).
Aliás, esse era um outro problema, pois os servidores tinham o número de “nodes” (linhas) bem baixo fazendo com que o telefone dos provedores desse muitas vezes ocupado até se conseguir uma conexão, irritando muita gente. Conseguir se conectar na BBS à meia noite, então, era para heróis que passavam até mais de meia hora, sem brincadeira, apertando o botão de rediscagem dos programas até conseguir um sinal (aquele barulho irritante dos modems quando conectam).
Completando o drama, você não podia passar o dia online como faz hoje. Todas as BBSs tinham um limite de tempo bem rigoroso, que normalmente variava entre 60 e 90 min diários. Época difícil!
Mas as BBSs tinham sua vantagens. A principal delas, era a possibilidade de qualquer pessoa poder criar uma. Bastava ter uma linha telefônica e um programinha para estruturar os diretórios. Obviamente, que somente as grandes sobreviveram ao longo dos anos, mas essa acessibilidade pode até ser comparada aos atuais blogs.
Em São Paulo, existiam duas grandes BBSs: a Mandic e a STI.
A Mandic era muito forte no número de arquivos disponíveis. Lá, você podia baixar programas diversos de computador, jogos shareware (de graça por um tempo determinado, depois ele parava de funcionar a não ser que você pagasse uma taxa), pornografia (só fotos e vídeos pequenos), arquivos com dicas de jogos e outras bobeiras.
Já o STI, onde fui sócio muito tempo, era mais conhecido pelo seu excelente sistema de conversação com outros usuários (semelhante ao ICQ), sua grande variedade de jogos e o alto giro de pessoas.
Outro dia eu escrevo mais aqui no Delfos falando desta época curiosa, mas agora quero me focar em um assunto específico: os jogos online disponíveis naqueles tempos. Em especial, um jogo que marcou toda uma geração chamado Legend of the Red Dragon, mais conhecido como L. O. R. D..
Como pode um jogo com gráficos horríveis, sem sons e uma jogabilidade muito simples atrair milhares de pessoas ao redor do mundo?
No início dos anos 90, a Internet (para o grande público) ainda estava engatinhando e jogos online complexos eram apenas um sonho distante. Você tinha, sim, bons jogos de computador como Wolfenstein 3D, Doom, World Circuit, Stunt Island e Civilization, mas nenhum deles tinha um modo multiplayer (Nota do Carlos: O Doom tinha.) à distância. O problema é que os modems fabricados até então, não tinham uma velocidade aceitável para a transmissão de dados entre computadores.
A solução encontrada era a criação de jogos simples, sem gráficos, com uma jogabilidade baseada apenas em textos, ocupando um pequeno espaço nos servidores, e explorando a imaginação dos jogadores com boas estórias, intrigas e uma grande interação com os demais jogadores dentro de uma BBS, criando assim uma comunidade específica.
Vários jogos pipocaram utilizando essa técnica, os mais comuns eram transições de clássicos de tabuleiro como por exemplo WAR, Gamão e Xadrez. Mas com o tempo, os programadores perceberam que os RPGs (também originários nos tabuleiros) se encaixariam como uma luva ao esquema proporcionando boas estórias, desenvolvimento de personagens, e grandes duelos. O Legend of The Red Dragon, de um cara chamado Seth Able Robinson, era exatamente uma cria desta filosofia.
A premissa do L. O. R. D. é muito simples: Você é um morador de um lugar medieval chamado simplesmente de Realm (reino em inglês). O problema é que o tal Realm está sendo atacado por um perigoso Dragão Vermelho (daí o título).
Obviamente que o seu objetivo é matar o dragão. Mas, para isso, deve atingir o nível 12 e estar equipado com a melhor arma e a melhor armadura disponíveis na cidade, caso contrário você será apenas mais uma presa fácil.
Você começa podendo optar por três categorias para seu personagem: ladrão, mago ou guerreiro e aqui o jogo funciona exatamente como nos RPGs tradicionais: você mata inimigos aleatórios que aparecem em uma floresta e, com isso, vai coletando experiência e ouro. Ao atingir uma certa quantidade de experiência, ganha o direito de enfrentar um mestre no centro de treinamento, vencendo esse mestre você sobe de nível e assim vai até chegar ao nível 12. Acumulando o ouro, você vende seu equipamento antigo e compra um novo, mais moderno e forte.
Enfrentando e matando o dragão, você “reseta” o seu personagem, mas ganha skill points que melhoram sua classe (ladrão, mago ou cavaleiro – 40 skill points masterizam uma classe), ganha poderes especiais e tem direito a escolher uma outra profissão para recomeçar tudo de novo e, assim, masterizar todas as suas profissões e aprender todos os poderes do jogo.
Matando o dragão 10 vezes (o padrão) você reseta TODO o Realm (gerando a raiva de todos os outros jogadores), e seu personagem acaba virando uma lenda: ele é mencionado nas canções dos bardos e nas lembranças dos mais velhos.
Como se pode perceber, é uma idéia muito simples. Mas a graça do L. O. R. D. nem estava tanto em matar o dragão, e sim na interessantíssima variedade de opções proporcionada contra os outros jogadores.
A formação de clãs com o passar do tempo era inevitável. Mesmo sem essa opção pré-estabelecida no jogo, era muito comum que dois ou mais jogadores compartilhassem a mesma “cor” no nome de seu personagem, desta forma estava identificado um clã com o compromisso da ajuda mútua e o dever de enfrentarem os rivais. Não preciso dizer que as traições e as intrigas também estavam embutidas no pacote certo?
Você também poderia paquerar os jogadores do sexo oposto, e mesmo se casar e ter filhos (um fato inédito até então). As paqueras poderiam ser tanto padronizadas quanto textos que você mesmo escrevia. Dá para sacar as palhaçadas, né?
Também eram possíveis transações financeiras através de um banco interno no jogo onde, se você deixasse seu ouro aplicado, ele renderia tantos por cento ao dia, ou você poderia transferir uma grana para aquele seu amigo pobre que acabou de entrar no Realm para que ele se equipasse.
Aliás, você deve ter imaginado que um jogador não passaria o dia inteiro online certo? Cada jogador poderia realizar um determinado número de lutas por dia (caso você morresse em alguma dessas lutas, só poderia acessar novamente no dia seguinte), e então tinha a opção de escolher dormir em um hotel ou na floresta para assim desconectar e só voltar a jogar no outro dia. Se dormisse na floresta, qualquer jogador adversário – aí não importava o nível – poderia te atacar, mas se dormisse no hotel teria a facilidade de não ser atacado por jogadores muito mais fortes (jogadores do mesmo nível ou um nível acima podiam subornar o cara do hotel para te atacar do mesmo jeito). Essa “regra” não adiantava muito, já que muitos jogadores “estacionavam” em um nível mais baixo, se tornando muito poderosos para o nível e podendo, assim atacar covardemente até os guerreiros mais fracos. O mais legal mesmo eram os duelos online, travados ao vivo e em turnos como nos RPGs tradicionais.
O jogo ainda possuía diversas surpresas como senhas especiais para serem digitadas na floresta, prêmios ao pedir músicas para o bardo local, possibilidade de anúncios no “Jornal” do Realm desafiando alguém, roubar o banco entre outras coisinhas.
Os gráficos eram baseados em texto. Você tinha um menu principal com as opções do que queria (ir ao banco, à floresta, ao bar, à loja de armas ou armaduras, ao centro de treinamento, etc) e cada um destes lugares tinha uma cor característica para diferenciá-los entre si. Gráficos ANSI (outra característica típica das BBSs, pois eram desenhos rústicos feitos a partir dos números e fontes) se encarregavam de desenhar folhas na floresta ou o dragão de uma forma bem precária, apenas para dizer que o jogo não era totalmente sem visual.
O jogo ainda tinha uma opção chamada Other Places, que era uma espécie de expansão do L. O. R. D., onde as BBSs compravam pacotes com várias localizações diferentes onde os jogadores poderiam ganhar ouro, lutas a mais, ou mesmo apostar em alguns dos “mini-jogos” presentes.
O pessoal aqui do Delfos, tanto o Carlos Corrales quanto eu, jogamos L. O. R. D. durante anos na STI, chegamos a ser considerados os melhores jogadores e até fundamos clãs rivais: Sayajins (o meu), carinhosamente apelidado pelos rivais de Saias Jeans e Clan Halen (o dele), apelidado de Smurfs, devido à cor azul escolhida para identificá-los. (Nota do Carlos: O meu foi o primeiro, o mais cobiçado, popular e temido clã da STI. ). Infelizmente, como todo bom sonho que chega ao fim, as BBSs acabaram na segunda metade da década de 90 com o avanço da Internet e levaram consigo um dos melhores jogos online já criados.
L. O. R. D. era a prova definitiva de que um bom jogo não precisa de gráficos, sons, animações computadorizadas, placas 3D da última geração e outras baboseiras. Uma boa idéia e a iniciativa de colocá-la em prática são suficientes para marcar toda uma época e muitas vidas.
Algumas curiosidades sobre o L. O. R. D.:
– A primeira versão saiu em 1989 para o AMIGA. Em 1992, o jogo chegou às BBSs com o padrão PC.
– O criador do jogo, Seth Able Robinson, vendeu os seus direitos a uma empresa chamada Metropolis. INC. e fundou a Robinson Technologies, empresa criadora de mini-jogos e aplicativos para PC.
– Com o sucesso do jogo, Seth Able lançou um “clone espacial” chamado Planets que também fez bastante sucesso por onde passou (eu também jogava esse no STI).
– As últimas versões de L.O.R.D (de 1996) tinham a possibilidade de conectar duas ou mais BBSs trazendo milhares de jogadores a um mesmo Realm.
– Pouco antes de vender sua criação, Seth chegou a lançar um tal Lord II em 1997 para as BBSs, mas este não tinha nem metade do carisma e diversão do original.
– Uma versão com gráficos (apenas imagens paradas), chegou a ser lançada com uma tecnologia chamada RIP Graphics que, basicamente, conseguia converter imagens em formatos BMP para dentro das BBSs.
– Apesar do fim das BBSs, você ainda consegue jogar L. O. R. D. em algumas Telnets americanas, como as duas abaixo:
lord.nuklear.org port: 10240
bbs.goldengate.net port:23
Divirta-se!