Entrevistas em geral são uma coisa ingrata. As mais comuns são as de música, e justamente por isso é normal você entrevistar um sujeito que está passando a semana inteira respondendo as mesmas perguntas, e no final de contas temos um monte de “entrevistas exclusivas” que são muito parecidas.
É por esse motivo que as nossas entrevistas rarearam bastante depois dos primeiros anos. O DELFOS não é, nunca foi, nem nunca será um veículo que publica a mesma coisa que os outros. Quando nossas matérias são exclusivas, elas são realmente exclusivas. Então se vamos entrevistar um músico, vai ser para conseguir respostas que ninguém mais tem.
Porém, com um pouco de criatividade, é possível sair um pouco da zona de conforto e conseguir matérias mais interessantes e ainda mais exclusivas do que uma exclusiva com um sujeito que está passando a semana inteira dando exclusivas. E este é o caminho que o DELFOS tem seguido nas nossas entrevistas mais recentes. Claro, isso faz com que não tenhamos tantas entrevistas quanto tínhamos na época que estávamos sempre falando com bandas, mas quando temos uma agora, é muito mais legal e única. Além disso, quando você entrevista um cara que é entrevistado uma vez por mês, ele se esforça muito mais do que alguém que está respondendo perguntas de um sujeito diferente a cada meia hora. O resultado é uma entrevista com muito mais esforço e boa vontade, resultando em uma matéria muito mais interessante.
A entrevista de hoje é com Corey May, o simpático nerd da foto ao lado. Corey é o roteirista principal da série Assassin’s Creed, tendo cuidado do roteiro de Assassin’s Creed, Assassin’s Creed II e Assassin’s Creed III, além de ter co-escrito Assassin’s Creed Brotherhood e Assassin’s Creed Revelations.
Ele também participou do roteiro de outros grandes jogos, como Army of Two, Prince of Persia: Warrior Within e Prince of Persia: The Two Thrones. O cara tem até uma página no IMDB.
Em outras palavras, Corey May é o responsável pela criação do conceito do Animus, da irmandade dos assassinos e pelo rumo geral da história. Ou seja, ele é o sujeito ideal para se conversar para esclarecer mais sobre todos os mistérios que envolvem a série.
Nas linhas abaixo, ele fala sobre a inspiração da série, sua relação com Matrix, os motivos que levaram o terceiro jogo da série à revolução americana, a pesquisa histórica que é obrigado a fazer antes de criar a história de um jogo da série e muito mais. Ele também não fugiu de algumas perguntas cabeludas que fizemos e demonstrou muita inteligência em todas as respostas. É com pessoas assim que eu gosto de conversar.
Assim, o que temos abaixo é, em minha humilde opinião, a melhor entrevista que fizemos no DELFOS até o momento, e tenho certeza que você vai gostar tanto dela quanto eu, mesmo que não seja um grande fã de games, pois ele fala bastante também sobre história, filosofia e literatura.
E isso tudo, meu amigo, é algo que só o DELFOS traz para você. Então nos ajude a divulgar esta matéria nas suas redes sociais, sites e blogs, para possibilitar que tragamos muitas outras coisas únicas e interessantes sobre os bastidores das variadas áreas que abordamos por aqui.
Em tempo, a entrevista abaixo foi originalmente planejada na época do lançamento de Assassin’s Creed III, mas tivemos algumas complicações e atrasos, tanto por parte da Ubisoft quanto nossa, então acabamos deixando para publicar aproveitando o lançamento de Assassin’s Creed IV: Black Flag, que será resenhado aqui no DELFOS amanhã. Enquanto isso, com você, Corey May, o roteirista principal da série Assassin’s Creed.
Perguntas por Carlos Eduardo Corrales e Bruno Sanchez
Como surgiu a ideia do primeiro Assassin’s Creed? É verdade que ele foi originalmente planejado como uma continuação da série Prince of Persia?
Eu não diria que foi planejado. O núcleo do time do primeiro Assassin’s Creed também trabalhou em Prince of Persia: The Sands of Time. Quando o trabalho começou, houve alguma discussão sobre criar uma sequência para a próxima geração. Mas desde o primeiro dia, o protagonista era um Assassino. E quanto mais o trabalho avançava, mais ficava aparente que o jogo estava caminhando para uma direção completamente diferente. E assim, Assassin’s Creed formalmente nasceu.
Podemos dizer que houve uma inspiração do livro “Eram os Deuses Astronautas?” de Erich von Däniken, já que conforme a história progride nós sabemos mais sobre a criação do homem e o Jardim do Éden?
É difícil dizer com certeza. Eu li os livros do Erich von Däniken quando era criança, mas os dele eram só alguns entre muitos. Eu li Sitchin e Temple. Hoagland e Hapgood. Até Graham Hancock. Mas o que realmente me inspirou foi um livro chamado Mundos em Colisão, de Immanuel Velikovsky.
Acho importante dizer que, mesmo quando criança, eu não era religioso. Não sou um criacionista (bíblico, progenitor, extraterrestre, ou nenhum outro). O que me atraiu a estes livros era o jeito que eles manipulavam registros históricos ou as lacunas nos registros, para criarem histórias e mitologias. Eles reinterpretavam evidência e brincavam com a percepção.
Eu os encarava como ficção especulativa. Eram fontes de entretenimento para mim, não de educação. A ideia de reinterpretar a história como um jeito de contar uma história é o que eu tirei da experiência (mais até do que a ideia dos progenitores). A ideia da “primeira civilização” teve mais inspiração de coisas como o Space Jockey do filme Alien e de jogos como Ultima VII: The Serpent’s Isle.
E sobre Matrix? Houve uma inspiração do filme na forma de funcionamento do Animus?
O Animus foi inspirado por pesquisas em memória genética. Isso chega a ser abordado de leve no começo do AC1. Pelo que eu me lembro de Matrix (já faz um tempo que assisti), a tecnologia era mais focada em produção de energia, né? A simulação só existe para garantir que as pessoas não percebam que viraram baterias orgânicas.
Para nós, o Animus era mais uma forma diferente de viagem no tempo. Tem mais em comum com De Volta Para o Futuro ou A Máquina do Tempo nesse sentido. Mas era algo que poderia ser usado para pesquisa e conhecimento, não manipulação do mundo físico. Então não havia paradoxos ou peculiaridades do gênero. Você está ASSISTINDO à história – não mudando ela. É basicamente um DVD player – aliás, é até mais próximo de um console de videogame. E parte da inspiração veio de Prince of Persia: The Sands of time, no sentido de que tentamos criar algo que explicasse as convenções de videogame no nosso jogo (sincronização, a presença de um HUD, etc).
Obviamente, as ideias/temas de uma realidade fabricada ou reconstruída são compartilhadas com filmes como The Matrix. Mas também existe Cidade das Sombras (Dark City, no original em inglês), que é um dos meus filmes favoritos, e 13º Andar. Tem também um romance fascinante chamado Darwinia (nota do tradutor: escrito por Robert Charles Wilson) que mistura aventura de época com tecnologia (ainda que de forma bastante diferente). Então eu não quero dizer que esse filme específico foi uma inspiração que merece destaque especial – é apenas o mais popular.
O final do primeiro AC gerou bastante controvérsia por não ficar claro que o jogo acabou. Isso foi intencional ou teve um efeito Knights of the Old Republic II, em que vocês tiveram que lançar um produto incompleto por causa de datas de lançamento?
Foi intencional, não houve conteúdo cortado. A história de Altair estava completa. A do Desmond estava apenas começando. Então meu sentimento foi de que você tinha um encerramento para um personagem, e o fim de um prólogo para o outro. Pensando nisso hoje, provavelmente foi mesmo muito abrupto. Se pudesse fazer de novo, eu consideraria terminar com a fuga da Abstergo (Nota do tradutor: o início de AC2). Isso provavelmente seria uma conclusão mais satisfatória.
O Ezio se tornou um personagem muito popular. Alguma chance de ele voltar em um futuro AC?
Quem sabe o que o futuro pode trazer? Mas eu realmente não posso dizer mais do que isso.
Por que você decidiu começar o ACIII com outro personagem, e só apresentar o Connor depois de cinco horas de jogo?
Como estávamos contando uma história entre pai e filho, quisemos dar ao jogador bastante tempo com os dois personagens centrais. Era importante que pudéssemos conhecer Haytham como ele realmente era e como seu filho o via. Isso também possibilitou que passássemos algum tempo com personagens que eventualmente se tornariam os alvos do Connor. Para mim, pelo menos, não era sobre contar as horas. Era sobre garantir que tivéssemos tempo suficiente para conhecer Haytham. Refletindo hoje, talvez tivesse sido mais interessante dividir a história, ao invés de contá-la de forma linear.
Achilles diz que Connor tem a pele clara o suficiente para se passar por um espanhol, e daí dá a ele o nome de Connor Kenway. Isso é bem estranho, já que Connor Kenway não parece nem um pouco com um nome espanhol. Por que você decidiu usar um nome tão anglo-saxão, e não algo como Guillermo Gutierrez?
Quando Achilles diz isso ao Connor, ele está se referindo a como as pessoas o verão em meio à multidão. Ele não está sugerindo que Connor finja ser espanhol, apenas que muitos vão deduzir que ele tem sangue espanhol.
Connor é batizado com o nome do filho de Achilles, que morreu muito jovem. Você pode encontrar a lápide no homestead. Tanto a esposa de Achilles como seu filho estão enterrados lá. O primeiro nome é também uma forma de ilustrar a relação de pai-filho adotivos que se desenvolve entre Achilles e Connor. Nosso herói literalmente assume o nome do filho que Achilles perdeu.
Connor nunca chega a assumir o nome Kenway. Até abri o roteiro, e uma busca por Connor Kenway não trouxe resultados. O sobrenome foi dado a ele pelas pessoas da equipe (e posteriormente, pelo público). Mas na minha cabeça, Connor não tem sobrenome. Ele por acaso é filho de Haytham Kenway, então por isso eu imagino que o nome pegou.
Achilles é um personagem fascinante, mas não foi muito desenvolvido em ACIII. Existe possibilidade de vermos sua vida como um Assassino no futuro?
Nós temos bastante coisa da história de Achilles criada. Tudo desde sua infância até a destruição da Irmandade de Assassinos Colonial e a morte de sua esposa e filho. Então a fundação narrativa está lá. Mas além disso, não posso dizer.
Nós sabemos que o povo dos EUA valoriza muito a história do país, mas essa história não é amplamente conhecida, e nem mesmo admirada fora dos EUA, especialmente se comparada ao Renascimento ou às Cruzadas, por exemplo. Para praticamente todos os outros países do mundo, seria muito mais interessante ver uma história que se passasse no Japão Feudal, Egito ou Grécia, por exemplo. Ainda assim, você escolheu este caminho. Por quê?
Houve muitas razões para escolhermos a época e o local que escolhemos. A revolução (e a Revolução Americana em particular) se encaixa muito bem com os temas de pai e filho que queríamos explorar. Temos Haytham e Connor, Achilles e Connor, Desmond e William – e daí a Grã-Bretanha e as Colônias. Isso nos dá muitos paralelos para brincar. Uma época de revolução é uma época de ideologias em conflito – assim como a guerra entre Assassinos e Templários é uma guerra de ideologias. Então aí temos mais um paralelo temático bacana. Era também uma oportunidade para explorar novas formas de gameplay – tudo desde a caça à escalação de árvores, passando por um clima variável. A força da natureza foi muito importante durante a revolução, então tivemos uma razão legal para explorar a navegação naval e nas florestas. Então aí temos muitas razões: narrativa, temática, meta-histórica e técnica!
Houve pressões de marketing para fazer algo que apetecesse quase exclusivamente ao povo dos EUA, já que este é o mercado mais importante?
Não. A ideia de um ambiente revolucionário veio da equipe – e já estava sendo ativamente discutida antes mesmo da produção do AC2 começar. Nós decidimos pela localização e época específicas um tempo depois, mas foi uma decisão criativa baseada no arco meta-histórico e nos temas que queríamos explorar.
Quem dá a palavra final para a “época” na qual o jogo vai se passar? Se não for você, você pode opinar nisso, ou apenas cria a melhor história possível com a missão que recebe?
Na verdade não tem alguém que bate o martelo. As opções são discutidas pelo núcleo da equipe até chegarmos a um consenso. O produtor executivo, o diretor criativo, o roteirista principal e os designers principais estão envolvidos. E acontece muito cedo no processo. As sementes narrativas para um Assassin’s Creed são planejadas com muita antecedência – então seguimos um mapa de para onde queremos ir e por qual motivo. Aí refinamos as escolhas e ideias conforme progredimos, mas não são decisões feitas em cima da hora.
Eu li umas entrevistas em que pessoas envolvidas com a série consideram uma má ideia visitar épocas como a Revolução Francesa e o Egito antigo. Por quê?
Não sei dessas entrevistas, mas acho que as pessoas têm direito de ter suas preferências. Como um time, no entanto, não descartamos nada. Há prós e contras para diferentes eras e ambientações. Nós discutimos os méritos de todos os ângulos diferentes. A história da guerra entre Assassinos e Templários abrange milênios e acontece no planeta inteiro. Seria bobo da nossa parte descartar algo.
Além disso, eu tenho um documento interno que cobre todos os grandes momentos históricos que você consegue pensar. O documento resume vários elementos importantes, incluindo: o status do conflito entre Assassinos e Templários na época e os eventos e personagens importantes daquele período. Também inclui seções sobre desafios e oportunidades de uma perspectiva técnica e artística.
Tem muitas bandeiras e patriotismo no jogo. No delicado momento histórico que vivemos, quais reações você estava buscando conseguir da comunidade internacional? Ou foi focado apenas nos EUA?
Não sei se entendo o que você quer dizer com “muitas bandeiras”. As bandeiras aparecem no jogo meramente como representações do período histórico. Não houve um desejo para ter mais ou menos. Elas estão em navios, mastros em fortes, e em alguns campos de batalha, porque é historicamente onde você as encontraria.
Eu acho que o jogo é bem justo em relação à perspectiva que apresenta sobre a revolução. Não o considero patriota demais (embora talvez alguns discordem). A história não foge de destacar tanto os sucessos quanto os fracassos dos founding fathers (Nota do tradutor: é a forma como os estadunidenses chamam os fundadores do país, e considerei melhor deixar no original, ao invés de usar um “pais fundadores”, que soa muito bobo em português) e do exército patriota. Tempo e espaço é inclusive dedicado a explicar o lado daqueles que eram fiéis à colônia.
Nosso objetivo era apresentar uma visão equilibrada da era, ainda que como uma fatia bem pequena de uma história maior e mais complicada (a da Revolução Americana). Além disso, a revolução deveria servir como um pano de fundo. O foco era no conflito entre os Assassinos e Templários (entre Connor e seu pai, Haytham).
A relação de ACIII com a primeira civilização é bem clara. Você já pensou na possibilidade de levar a série ao extremo oposto, viajando milhares de anos no passado, para que pudéssemos ver o fim daquela era?
Pessoalmente, eu AMARIA isso! Eu penso muito nisso. Tenho muitas ideias. Tem um montão de histórias para contar sobre aquele período. Agora se vai acontecer? Apenas o tempo dirá.
Até uma geração atrás, podemos dizer que os games de console precisavam chegar às prateleiras sem bugs sérios, porque não havia nenhuma forma de lançar um patch para consertar. AC3 tem um monte de bugs. Você acha que teria lançado o jogo dessa forma se não existisse a possibilidade de ser consertado depois, ou a data de lançamento seria adiada até que o jogo estivesse totalmente pronto?
Honestamente não sei. Eu não me envolvo nesse tipo de decisão. Obviamente, todo mundo na equipe quer lançar o melhor jogo possível.
Qual é o tempo de desenvolvimento de um jogo como Assassin’s Creed?
Varia de dois a quatro anos, mas o sistema e a engine estão constantemente sendo refinados e atualizados. Então não há um número mágico. O que posso dizer com certeza é que nenhum Assassin’s Creed é feito em um ano.
Que tipo de pesquisa você usa para a criação do contexto histórico?
Muitas formas de pesquisa são usadas em um Assassin’s Creed. Primeiro, os roteiristas vão passar vários meses durante a concepção e pré-produção aprendendo sobre o período histórico. Isso inclui ler relatos não-fictícios sobre a época, conversar com professores de história e experts e, quando possível, visitar as cidades em que o jogo acontece.
A equipe também trabalha com vários historiadores durante a produção. Geralmente, temos um no escritório, que trabalha com a equipe. Eles estão disponíveis para fazer pesquisas adicionais, encontrar respostas para perguntas obscuras e checar os fatos. Também trabalhamos com consultores externos (normalmente professores universitários) que vão ler os roteiros e dar suas opiniões em tudo, desde o tratamento dos eventos históricos e personagens até a autenticidade dos diálogos.
É importante lembrar que os Assassin’s Creed não são documentários ou substitutos para aulas de história. Eles são inspirados por história – e sempre que possível – tentamos nos manter fiéis aos eventos como eles ocorreram.
Alguma dica sobre os locais que os futuros games vão nos levar?
O único comentário que posso fazer aqui é: SEM COMENTÁRIOS!!
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– Assassin’s Creed: o começo de uma das maiores séries da história dos games.
– Assassin’s Creed II: surge Ezio Auditore da Firenze.
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