Vôo United 93

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A capacidade estadunidense de transformar tragédias em lucro ou, na pior das hipóteses, em condicionamento é impressionante. Como se não bastassem as músicas, notícias, livros, e tudo mais tratando do ataque ao World Trade Center, agora teremos também filmes sobre o assunto. E dois deles com datas de estréias bem próximas.

O mais curioso é que as pessoas realmente se deixam manipular por isso e, se você perguntar a um semi-burro qual foi a coisa mais desumana que já aconteceu na nossa história, é bem possível que o dito-cujo se refira ao famoso 11 de setembro. O que me deixa fulo nisso é que, embora não concorde com as vidas inocentes sacrificadas, foi apenas um prédio comercial que foi destruído. O próprio país do Tio Sam vive destruindo castelos com mais de cem anos lá no Oriente Médio (há algum tempo fiquei sabendo de um castelo iraquiano de mais de 800 anos que foi destruído) e, convenhamos, o impacto é muito maior nesses casos, pois enquanto a “cultura do Big Mac” tem pouco mais de 100 anos (isso sendo generoso), a cultura árabe tem milhares. E não se abre mão de uma cultura milenar desse jeito. Pelo menos não sem luta (daí a derrota dos EUA no Vietnã, já que os vietcongues lutavam para defender a sua cultura enquanto os estadunidenses estavam lá contra a sua vontade em nome de interesses mesquinhos de uma minoria).

Ah, claro, e isso sem falar na que eu considero o ato mais desumano da nossa história: as duas bombas atômicas jogadas no Japão no fim da segunda grande guerra. Ora, enquanto o 11 de setembro derrubou um PRÉDIO, os EUA destruíram DUAS CIDADES e EXTERMINARAM milhões de civis inocentes, fazendo com que nossos amigos do oriente ainda arquem com as conseqüências deste covarde ataque até hoje. E nem por isso ficam se lamentando em dezenas de peças culturais de valor duvidoso, quiçá apenas condicional.

Você me diz, delfonauta, o que é pior, do ponto de vista humano: um prédio (claro que, como diz no fenomenal V de Vingança, o prédio é um símbolo, assim como o ato de destruí-lo), com algumas centenas de pessoas dentro ou duas cidades com milhões de seres humanos? Imagino que, se as peças fossem invertidas, a vingança dos estadunidenses seria tão extrema que é provável que você ou eu nunca tivéssemos nascido, pois o mundo teria acabado antes. Lembrando que as próprias bombas atômicas já foram uma resposta dos EUA ao ataque à base militar de Pearl Harbor (o que também virou filme – como esses caras choram pelo leite derramado, cacilda!), que, justamente por ser uma base militar, não teve baixas civis (ou pelo menos não tantas), como deveria ser em qualquer guerra. Claro que, se fôssemos pensar no que DEVERIA ser, nem deveriam existir guerras. Na verdade, as fronteiras deveriam ter funções apenas geográficas, só para sabermos onde estamos, não como um limite para saber quem são os países rivais. Mas já me estendi bastante. Vamos ao filme.

Para quem não lembra, foram quatro aviões raptados nesse fatídico dia. Desses quatro, apenas um não alcançou seu destino. Adivinha qual? Pois é, pois é, pois é. Foi justamente o vôo 93 da United Airlines, também conhecido como a inspiração para esse longa. Pelo que fala no release, o bichinho ficou 90 minutos no ar. Agora me responda, se você fosse fazer um filme baseado nessa história como faria? Como sou egocêntrico, eu mesmo respondo: faria esses 90 minutos em tempo real, focando unicamente no drama da tripulação e dos passageiros.

Bom, não foi essa a idéia do diretor Paul Greengrass. Embora não tenha ficado claro para mim se o filme se passa ou não em tempo real (embora tudo indique que sim), a maior parte da história é focada no povo que trabalha nos aeroportos controlando o tráfego aéreo (e todos falando em jargões quase incompreensíveis para aqueles entre nós que nunca trabalharam em um aeroporto). Da tripulação, nós não sabemos nomes nem nada. Os personagens mais fortes do filme são os terroristas e mesmo deles não sabemos nada, nem sequer o destino para o qual pretendiam levar o avião. Péssima idéia do diretor que, aliás, parece ter várias delas brotando ininterruptamente. Outra escolha ruim do cara foi filmar tudo com câmeras de mão. Para completar, ele aparentemente escolheu alguém com mal de Parkinson para manuseá-las, ou seja, as câmeras não param de tremer um minuto, deixando o pobre espectador com dor de cabeça e mais desorientado que os passageiros.

Tudo tem um clima de documentário bem forte. A total ausência de atores conhecidos e mesmo de trilha sonora (pelo que me lembro, só uma das últimas cenas tem música) contribui para isso. O problema é que isso deixa o filme chato e arrastado. Eu, pelo menos, não estou nem aí para os caras que controlam o tráfego aéreo, quero saber apenas o que aconteceu com os terroristas e com os passageiros, mas o sádico Greengrass nos nega esse prazer.

Claro, tudo fica beeeeem melhor depois que os terroristas iniciam seu golpe, só que isso demora mais de uma hora para acontecer e provavelmente a gritaria da cena serve justamente para acordar o público que, a essa altura, já está babando na cadeira do cinema.

A partir daí, a coisa esquenta e finalmente é possível vermos algum sentimento no filme. É comovente acompanhar os passageiros ligando para casa para se despedir de seus entes queridos e lembrá-los de seu amor. É também emocionante o momento que a galera percebe que os terroristas estão em uma missão suicida e que a única chance que têm de sobreviver é “fazer justiça com as próprias mãos”. É curioso que, pelo que me lembro na época, todos diziam que o pessoal desse vôo sacrificou as próprias vidas para impedir que o avião atingisse o alvo, mas pelo que mostra no filme, como bons capitalistas que são, eles queriam mesmo é se salvar, não proteger o país.

De qualquer forma, isso tudo acontece no final do filme e, até lá, ele é um saco de proporções herculanas. O mais bizarro é que, depois da seção, tinha um monte de gente chorando. É incrível como o condicionamento, assim como os poderes jedi, realmente funciona apenas em mentes fracas.

Para terminar, uma brincadeira: conte para nós o que você estava fazendo no dia 11 de setembro de 2001 e como foram as reações das pessoas ao seu redor quando o ataque aconteceu.

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Carlos Eduardo Corrales
Editor-chefe. Fundou o DELFOS em 2004 e habita mais frequentemente as seções de cinema, games e música. Trabalha com a palavra escrita e com fotografia. É o autor dos livros infantis "Pimpa e o Homem do Sono" e "O Shorts Que Queria Ser Chapéu", ambos disponíveis nas livrarias. Já teve seus artigos publicados em veículos como o Kotaku Brasil e a Mundo Estranho Games. Formado em jornalismo (PUC-SP) e publicidade (ESPM).
voo-united-93País: EUA<br> Ano: 2006<br> Gênero: Drama<br> Duração: 111 minutos<br> Diretor: Paul Greengrass<br> Distribuidor: UIP<br>