A memória é uma coisa traiçoeira. Ela pode nos pregar peças. Pode nos fazer acreditar que vivenciamos certas coisas que na realidade nunca aconteceram. E também pode apagar lembranças reais, seja por capricho, porque elas simplesmente não eram importantes, ou como uma forma de proteção a alguma experiência horrível. E é nessa terceira opção que se insere Valsa com Bashir.
O cineasta Ari Folman participou como soldado, aos 19 anos, da Guerra do Líbano em 1982, mais um dos infindáveis confrontos entre israelenses e palestinos que assolam aquela região do globo, sem vistas de chegar ao fim. Mas eis o problema: ele não tem nenhuma lembrança de sua participação no conflito. Intrigado, decide que já passou da hora de tentar recobrar essas memórias, ao mesmo tempo em que tenta compreender porque as reprimiu.
Então ele vai atrás de seus antigos companheiros de batalhão, para ver se as lembranças deles podem fazer as suas próprias pegarem no tranco. Fala também com outros militares, correspondentes de guerra e psiquiatras, tecendo um panorama geral do conflito e abrindo uma discussão sobre a capacidade do nosso cérebro de nos proteger de experiências traumatizantes.
E aí entra a grande sacada do documentário: ser todo feito em animação. À medida em que vai localizando e entrevistando seus ex parceiros de exército, e eles vão contando do que se lembram, acompanhamos uma reconstituição do fato em questão. O que sem dúvida ficaria bem mais caro e genérico se feito em live action.
O estilo da animação é muito bonito, embora creia que vai ter muita gente, em tempos de Pixar, achando tosco. Os personagens são em 2D e bem desenhados, mas se movimentam num cruzamento entre os antigos desenhos “desanimados” da Marvel nos anos 60 e aquela série animada do Homem-Aranha que saiu logo depois do primeiro filme, produzida em digital, mas com os personagens bem durões. Em suma, eles não se mexem tanto, e nem com a graciosidade de qualquer produção estadunidense atual, mas sinceramente não vejo nenhum problema nisso. Já os cenários são irretocáveis. Esses sim parecem ter sido criados em computador e são tão perfeitos que algumas tomadas sem os personagens parecem reais. Fora isso, a trilha sonora é outro ponto forte. Rock em hebraico é tremendão!
O filme mescla bem os depoimentos com as reconstituições da guerra e o conteúdo é bem forte e vai num crescendo de barbaridades até culminar em um massacre de civis palestinos no clímax da película, fato que pode estar por trás do “branco” de Folman. É uma narrativa rápida, bem montada e que prende a atenção.
Contudo, não é um longa didático. Quem não sabe nada sobre esse conflito vai boiar um pouco até juntar todas as informações que vão sendo dadas aos poucos com cada entrevista e conseguir distinguir ambos os lados. Mas não espere explicações do naipe de “quanto tempo durou a guerra?” e “por que ela começou?”. Afinal, é provável que nem os envolvidos saibam porque estão se matando até hoje.
No mais, eu que não sou um grande apreciador nem de documentários nem de animações, gostei bastante da fusão inusitada e o resultado é bem poderoso, resultando num filme que faz pensar e diverte, mesmo se tratando de um assunto que não tem nada de divertido.
Curiosidade:
– Deu um problema na exibição e logo no começo o som dessincronizou da imagem, entrando antes do que deveria. E em 90 minutos de projeção ninguém arrumou isso. Você pode imaginar que ver um filme inteiro desse jeito não é uma experiência muito agradável. Boa, Sony!