Stanley Kubrick – O filósofo das imagens

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Poucos diretores conseguiram ao longo do tempo construir uma filmografia tão densa e autônoma como a do estadunidense Stanley Kubrick (1928-1999). Menor ainda é o número de diretores que figuram entre os tremendões do DELFOS do DELFOS. Kubrick é o terceiro, o primeiro foi Tim Burton. Colocar o nome na calçada da fama em Hollywood é baba, difícil é ser tremendão.

Perdoem-me os novos aficionados e admiradores dos cinemas “alternativos” que lotam as salas em mostras de cinema e que insistem em estabelecer uma linha que divide o “cinema comercial” do “cinema de arte”. Mas se há essa linha, Kubrick, assim como Alfred Hitchcock, caminhou sobre os dois trilhos. Sempre financiado por grandes produtoras, mas nunca permitiu que elas interferissem na genialidade e autonomia de sua obra.

De temperamento difícil e avesso à mídia, Kubrick sempre dirigiu o que lhe parecia interessante (vide os hiatos entre suas produções, ainda maiores nos intervalos de suas últimas obras). Seu início de carreira como fotógrafo da revista Look define a característica do seu cinema profundamente visual, com planos longos e exaustivamente repetidos na gravação até alcançar a perfeição. É dada a impressão de que a câmera é o próprio olho do diretor, que vigia cada passo do ator e cada milímetro da cena. Ao ver seus filmes, imagino que nenhum plano poderia ser filmado sem ser daquela maneira, tamanha a precisão. Kubrick trabalha, essencialmente, com o não verbal, o que nos permite sentir a imagem e a música.

Sua filmografia não é extensa. De Fear and desire (1953) ao controverso e criticado De olhos bem fechados (1999) foram 13 filmes, sendo O Grande Golpe (1956) seu primeiro longa-metragem expressivo. Com uma narrativa não linear, o filme é considerado influência para obras como Pulp Fiction (1994) e outros filmes da fase conhecida como “neobrutalismo”, nas décadas de 80/90, e narra a tensa história de um grupo de ladrões que elaboram um plano perfeito para assaltar um hipódromo.

Em 1957, lança Glória Feita de Sangue, estrelado por Kirk Douglas e considerado por muitos o melhor filme sobre a Primeira Guerra de todos os tempos – mesmo não mostrando cenas violentas dos fronts de batalha. Após ordenar um ataque suicida, o general do grupo escolhe três soldados que vão ser condenados à morte. Kubrick viaja pelo lado humanista, pelos rostos dos combatentes e denuncia os absurdos e as insanidades da guerra. O zoom, comumente usado em todas suas obras, nos aproxima dos soldados e chegamos aos seus sentimentos, fato inédito em filmes de guerra.

Spartacus (1960) é um filme épico e o primeiro de grande orçamento que Kubrick dirige. Após o abandono do diretor original Anthony Maan, a escolha do seu nome para dirigir o filme o confirma entre os grandes diretores de Hollywood e, a partir deste, sua característica de perfeccionista obsessivo é firmada.

Se a obra literária de Vladimir Nabokov é considerada um dos maiores romances do século XX, a adaptação de Kubrick para o clássico Lolita (1962) esteve à altura. Mesmo sendo menos “quente” e mais cômico que o livro, Lolita é o espetáculo da regressão, da decadência do homem. A cena da morte de Clare Quilty (com uma brilhante atuação de Peter Sellers) atrás do quadro, nos primeiros minutos do filme, denuncia a falência da cultura européia e da sociedade contemporânea. A paixão do erudito escritor por uma garota de 14 anos é a prova da impotência do ser humano preso ao desejo sexual.

Doutor Fantástico (1964) é considerado por muitos críticos o início da segunda fase das obras de Kubrick. Já estabelecido na Inglaterra desde a produção de Lolita, o filme marca a passagem do cinema de caráter “humanista” – que marcou suas seis primeiras obras – para a fase da exploração dos mistérios humanos.

Dr. Fantástico é um clássico do humor negro, da crítica ao militarismo, à corrida armamentista, à banalidade que os chefes de Estado atribuem à guerra. Os bastidores da Guerra Fria são expostos e, por conseqüência, a total desmistificação do poder. Peter Sellers é simplesmente genial no papel de três personagens (um deles, o próprio Doutor Fantástico, um médico alemão que não consegue controlar seus instintos nazistas na cadeira de rodas e que se contorce todo para não saudar o presidente americano com a mesma predestinação que saudava Hitler).

Considero esse filme essencial para a cinemateca de qualquer cinéfilo. É visível o caráter crítico e peculiar com o qual o diretor enxerga a humanidade e consegue adaptar para as telas os mais falhos extintos do ser. Em Dr. Fantástico, a relação homem-máquina é proposta pelo diretor e retomada no filme seguinte. Se em 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968) o computador Hal 9000 substituiria os erros humanos, como a máquina perfeita que nunca comete falhas, a bomba construída pelo doutor Fantástico foge ao controle do homem, que nada pode fazer para impedir a bomba de destruir o planeta. A humanidade passa a ser vítima de sua própria criação.

Enigmático, revolucionário, impecável. Muitos são os adjetivos que podemos atribuir à obra-prima do cinema de ficção-científica 2001: Uma Odisséia no espaço. Não somente é o maior filme de ficção científica de todos os tempos, como também a obra que redefiniu o gênero. Originalmente criado em 70mm, era para ser assistido em Cinerama, uma espécie de tela em 180º, que daria a sensação do espectador mergulhar na imagem, desde o átomo até o universo (se na tela da TV já ficamos fascinados, imagine estando dentro do filme).

A evolução (ou não-evolução) do homem, desde o macaco que descobre a ferramenta até o astronauta que se aventura pelo universo é marcada pela presença do enigmático monolito negro. Ele determina o tempo e a história, sua aparição sempre representa alguma mudança na evolução da espécie no planeta. A inteligência humana é substituída pela máquina Hal 9000. Em 2001, os homens não têm personalidade, inclusive, no filme, o único personagem carismático é o próprio Hal, o único que fala de assuntos relacionados a sentimentos, mesmo afirmando não possuir nenhum. A máquina é superior aos falhos astronautas, mas mesmo assim oferece total obediência aos tripulantes da nave. A falha do computador é um mistério, é impossível deduzir se Hal detectou um erro em seu funcionamento ou se sua atitude foi proposital. Mais uma vez, o homem torna-se refém de sua própria criação. Os planetas parecem movimentar-se ao som da música e os planos longos definem uma viagem visual única na história do cinema. É impossível não se impressionar com o universo de 2001.

Caro amigo delfonauta, se você já anotou o nome dos últimos dois filmes para serem os próximos da lista da locadora, obrigatoriamente terá de incluir o próximo. Laranja Mecânica (1971) completa a trilogia das obras geniais de Kubrick. É o retrato do sujeito da pós-modernidade, uma não-identidade que se libera na violência e no sexo. Nada mais primitivo. Alex DeLarge (numa memorável atuação de Malcom McDowell) é o líder de uma gangue de “drugues”, e suas principais diversões são a prática da violência e a música de Beethoven, o que exemplifica a mobilidade do sujeito.

Com a inviabilidade das leis, no século XXI, novas formas de tratamento serão testadas. Alex será vítima de um tratamento de choque que cura a violência com a exibição exaustiva de violência. São tirados do homem os seus impulsos naturais, tornando-o um objeto vazio. Kubrick faz análises sociológicas e filosóficas impiedosas para o futuro do ser humano. O grande número de simbolismos no filme é prova disso. Um ser pós-moderno que vive da inconstância, da identidade móvel e do hedonismo. A exibição de Laranja Mecânica foi proibida na Inglaterra, a mando de Kubrick, em resposta à avalanche de críticas recebida pelo excesso de violência.

A imprevisibilidade é característica na filmografia kubrickiana. Não se pode deduzir o que será a próxima obra do diretor, pois do violento e polêmico Laranja Mecânica ao romântico Barry Lindon (1975) apenas quatro anos se passaram.

A beleza plástica de Barry Lindon é única. O filme todo foi realizado com iluminação natural, descartando qualquer auxílio de luzes artificiais, inclusive nas cenas à luz de velas. É uma viajem pelo século XVIII ao som de Bach, Mozart e Schubert. Barry Lindon é a história da ascensão e queda de um charlatão, amante dos duelos, do jogo e da vida boêmia. Mesmo sendo um de seus filmes mais belos, é um dos menos divulgados.

Cinco anos mais tarde foi incumbida a Kubrick a adaptação da obra O Iluminado, de Stephen King. O trabalho não agradou o autor do livro, porém o filme O Iluminado (1980) faz o expectador mais cético cobrir-se até o pescoço e rezar um Pai Nosso antes de dormir. Não há quem assista ao filme e que não se lembre da expressão ensandecida de Jack Nicholson. O filme aposta no clima claustrofóbico, na profundidade psicológica e na lenta metamorfose da mente de Nicholson, atormentado por forças malignas. Inclua esse na sua lista da locadora também.

Apesar de uma excelente direção e roteiro, a produção beirou o fracasso, sendo reavaliado pela crítica ainda nos tempos atuais, como acontece com outras grandes obras da história do cinema que foram vítimas da crítica especializada. Nas filmagens, Kubrick usou um total de 390 mil metros de película para um filme de 142 minutos que gasta, em média, 2.800 metros. Uma média de 102 takes por plano, enquanto a média normal é de 10 takes. Foi usado apenas 1% do material filmado no produto final. (Acho que depois desses números ninguém mais discordará quando falo do perfeccionismo do tio Stanley).

O grande sonho de Kubrick era dirigir um longa-metragem sobre Napoleão. O cara era fascinado pela vida do imperador francês. Não o fez, mas sete anos após O Iluminado resolveu dirigir um filme sobre a guerra do Vietnã. Nada original, pois já haviam sido produzidos filmes antológicos como Platoon e mais uma dezena de filmes de guerra semelhantes
(obsessão de estadunidense). Nada original se o filme não tivesse o padrão Kubrick de qualidade. Nascido para Matar (1987) é uma crítica ao absurdo da guerra e à viciosa estrutura norte-americana. Mostra ,como nenhum outro filme, o processo de transformação dos jovens recrutas em máquinas de matar sem escrúpulos. A mesma expressão de loucura de Jack Nicholson em O Iluminado é percebida no rosto do jovem destruído pelo absurdo dos campos de treinamento.A guerra é a ruína da sociedade e do psicológico, despedaçado e desfragmentado pelos seus horrores.

Todos imaginavam a aposentadoria do diretor. Já havia dirigido, ao menos, dois dos maiores filmes da história do cinema e seu nome figurava ente os maiores gênios da sétima arte. Discretamente vivendo na Inglaterra, longe da mídia e do glamour hollywoodiano, era difícil prever sua volta.

Porém, dez anos após o lançamento de Nascido para matar, Kubrick volta aos estúdios para as filmagens de De Olhos Bem Fechados (1999). A produção durou quase três anos, obrigando o casal de protagonistas, Tom Crise e Nicole Kidman a se estabelecerem na Inglaterra durante os 18 meses de filmagens. Mesmo a história sendo passada em Nova Iorque, todas as cenas foram filmadas em solo inglês, inclusive as de externas, reproduzidas em estúdio.

O filme volta a explorar um tema pouco abordado pelas obras kubrickianas: o sexo. Um casal, aparentemente perfeito, mergulha nos seus desejos individuais.A infidelidade não é representada apenas no plano físico (no ato de trair), mas também no psicológico, explorando as fantasias e a busca de cada um pelo labirinto enigmático do desejo. De Olhos Bem Fechados ficou abaixo das expectativas dos fãs.

Kubrick faleceu em sete de março de 1999, antes da estréia de sua última obra. O diretor tinha a característica de alterar seus filmes mesmo dias antes da estréia, o que deixa a dúvida em todos os fãs sobre o final deste. A Warner Bros, produtora de seus filmes, afirma que o filme é 100% Kubrickiano. Mas se Kubrick sempre tratou dos instintos mais primitivos do ser humano com especial atenção, nada melhor que encerrar sua filmografia com a maravilhosa Nicole Kidman sussurrando o verbo: “To Fuck”.

Aos apocalípticos e aficionados por teorias obscuras de plantão, Kubrick faleceu 666 dias antes da chegada do ano de 2001, o ano da sua odisséia no espaço. O diretor foi indicado a 13 Oscars (um pelos efeitos especiais em 2001, três como produtor, quatro como roteirista e cinco como diretor) entre outros prêmios pelo mundo pela sua contribuição à história do cinema.

Porque recomendo Kubrick, você pergunta? Porque o cara soube explorar como poucos os instintos humanos – como sexo e violência – e analisar seus desejos, criações e fantasias. Em seus filmes, o ser humano caminha sempre pelo labirinto misterioso da existência. No universo de Kubrick viajamos de incerteza em incerteza, num circulo fechado.

O que me impressiona em seus filmes é a mobilidade entre diversos estilos e temas: do épico Spartacus ao ficcional 2001: Uma Odisséia no espaço, do violento Laranja Mecânica ao clássico e belo Barry Lyndon. E em todos é possível analisar o comportamento humano, mesmo em situações e épocas completamente distintas. Kubrick é um filósofo das imagens que nos leva a uma reflexão introspectiva e a prova definitiva de que “cinema de arte” pode, sim, agradar grandes públicos.

FILMOGRAFIA:
1. Fear and Desire (1953)
2. A Morte Passou por Perto (Killer’s Kiss, 1955)
3. O Grande Golpe (The Killing, 1956)
4. Glória Feita de Sangue (Parths of Glory, 1957)
5. Spartacus (Spartacus, 1960)
6. Lolita (Lolita, 1962)
7. Doutor Fantástico (Dr. Strangelove, 1964)
8. 2001 – Uma Odisséia no Espaço (2001 – A Space Odissey, 1968)
9. Laranja Mecânica (A Clorkwork Orange, 1971)
10. Barry Lyndon (Barry Lindon, 1975)
11. O Iluminado (The Shining, 1980)
12. Nascido para Matar (Full Metal Jacket, 1987)
13. De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1999)

Momento mais tremendão: A seqüência que consagrou Kubrick, os filmes Dr. Fantástico (1964), 2001:Uma Odisséia no Espaço (1968) e Laranja Mecânica (1971).

Momento menos tremendão: O filme De Olhos Bem Fechados e o circo formado em torno de sua produção. Simplesmente apresentou o mesmo brilhantismo de outras épocas e frustrou muitos fãs.

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