Ruídos Delfianos: Dream Theater – Under a Glass Moon e o surrealismo

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Já faz algum tempo desde que o primeiro texto da série Ruídos Delfianos foi lançado. Há quase um ano atrás, o lorde da cafajestagem Frodrigues fez o texto que viria a ser o debut da série, falando da música “2 Minutes to Midnight”, do Iron Maiden, e, ainda que tenha demorado um pouco, aqui está o texto que dá sequência à série.

Porém, vou fazer um pouco diferente do Frodrigues. Enquanto o debut explicava de forma concreta a música do sexteto inglês, o que vou apresentar neste texto é muito mais uma conjectura do que uma explicação definitiva – até porque a música em questão pretende provocar muito mais as confabulações do que dar de fato uma resposta final.

MUITO PROG PARA SER METAL, MUITO METAL PARA SER PROG

O Dream Theater é uma banda que, ao longo de toda a sua história, sempre se preocupou em dar muitos significados às suas músicas e discos. Como qualquer banda prog que se preze, vários discos e músicas da banda são construídos em cima de conceitos e temas diversos – e aqui eu dou um destaque especial à Twelve-Step Suite, que trata da passagem do baterista Mike Portnoy pelos 12 Passos dos Alcoólatras Anônimos.

Isso obviamente faz com que ouvir músicas da banda seja uma constante surpresa, pois é comum descobrir alguns elementos nelas que você não tinha reparado anteriormente. Ao mesmo tempo, isso também permite que surjam outras interpretações e que outras músicas com um sentido não tão claro finalmente mostrem a que vieram. E aí vem Under a Glass Moon.

QUEBRANDO O VIDRO

Under a Glass Moon foi uma faixa que eu demorei muito para entender. Nas primeiras vezes que eu ouvi, achei um saco, mas depois de um tempo acabei me acostumando e gostando dela. Porém, foi só depois de analisá-la a fundo que ela entrou para o meu Top 10 de músicas da banda. Abaixo está a música, mas já aviso que não garanto que você vá gostar – e logo depois do vídeo eu explico o porquê.

Nas primeiras ouvidas desatentas, algo que chama bastante atenção é o exagero da faixa. Sim, isso é verdade, essa música é absurdamente exagerada. Ela possui diversas mudanças de andamento, vocais muito ostensivos e um solo de guitarra que beira o ridículo de tão técnico e complexo. Porém, diferente do que acontece em outras músicas da banda – que são complexas, mas ainda assim soam bem “musicais” -, Under a Glass Moon soa muito “anti-musical”.

Essa música, a princípio, parece que nasceu errada: ela é muito pomposa e tem tanta informação ao mesmo tempo que chega a dar náusea. E aí, quando você vê que a banda é conhecida pela qualidade técnica dos seus integrantes, fica a impressão de que foi mesmo uma bola fora, e que eles cometeram aquele erro crasso de se preocupar mais com a técnica do que com a musicalidade. Eu passei muito tempo pensando que, ao fazer Under a Glass Moon, eles se esqueceram de que estavam fazendo música e resolveram competir para ver quem fazia a linha musical mais complexa e chata.

BANHANDO A ALMA EM LÁGRIMAS DE PRATA?

Por isso fiz evil monkey para a banda por muito tempo, fazendo pipi na capa do CD e dizendo o quanto a Lua de Cristal da Xuxa era mais legal, até o dia em que eu passei a gostar dela e resolvi ver a letra da música. E aí eu fiquei ainda mais espantado: eu não entendi bulhufas. A letra não fazia nenhum sentido! Mais do que qualquer coisa, parecia um apanhado de metáforas e não uma letra que tivesse um significado propriamente dito. Isso me deixou curioso e eu resolvi ir um pouco mais fundo.

Entre as diversas conjecturas que eu fiz, uma bem interessante era a de que a letra da música soava muito bem. Se às vezes algumas músicas têm letras tão travadas que são desagradáveis de se ouvir, outras vão pelo caminho oposto e têm letras que soam muito bem – e que não precisam nem dizer nada, pois o simples fato de soar bem já é o bastante. Então, ainda que ela não dissesse coisa com coisa, pelo menos era legal de ouvir e de cantar.

Mas mesmo assim me parecia muito simplório pensar que aquelas metáforas todas só existissem para a música ficar bonita de cantar. Outra coisa que eu percebi é que, afinal de contas, aquelas metáforas todas criavam um mundo fantasioso, algo que parecia saído do subconsciente, algo… surrealista. E foi quando eu me lembrei das aulas de Arte da escola que tudo pareceu fazer sentido.

QUANDO DOIS MUNDOS COLIDEM

Uma coisa muito interessante e, de certa forma, bastante comum do mundo artístico é quando duas formas distintas de arte se encontram e se misturam. Seja ideológica ou materialmente, é fato que alguns dos melhores momentos artísticos acontecem nesses momentos. Quer um grande exemplo? O cinema: o encontro da música, da pintura, da literatura e da fotografia, que juntas formaram algo completamente novo. E, ainda assim, quando o cinema encontra qualquer uma dessas outras formas de arte é comum que surjam outros momentos igualmente grandiosos.

Pois foi exatamente nisso que eu pensei enquanto analisava Under a Glass Moon. Afinal de contas, será que a ideia da banda era criar uma música feita unicamente para se ouvir? Ou o objetivo era criar algo diferente? Será que esse aparente diálogo com um outro universo artístico não teria sido proposital? A meu ver sim, pois as semelhanças com o pensamento surrealista não eram poucas ou isoladas.

Como eu sei que as aulas de Artes sempre são boicotadas no colégio e que muitos não gostam da matéria (coitada!), é válido fazer uma contextualização. O Surrealismo foi um movimento artístico surgido no século XX. Esse movimento foi fortemente influenciado pela psicanálise do Freud e tem como um grande expoente o pintor Salvador Dalí. Você provavelmente já viu quadros dele – e, se não viu ou não lembra, eu coloquei alguns na galeria.

Mas qual é, afinal, o mote desse movimento? O nosso bom, mas não tão velho, pai dos curiosos tem a resposta: o Surrealismo enfatiza o papel do inconsciente na atividade artística. O objetivo nesse estilo é criar uma arte livre da consciência e da lógica, expressando o mundo da imaginação, do inconsciente e dos sonhos.

Imaginação? Sonhos? Inconsciente? Exatamente, delfonauta. E a música, assim como os quadros do Dalí, é extremamente rica em detalhes, como se cada compasso fosse feito para te colocar em um estado de imersão, de total ausência de consciência. A introdução forte, grandiosa, que traz a sensação de se estar entrando em um lugar incomum. As diferentes texturas que os instrumentos criam, com uma ótima performance do baterista Mike Portnoy e do vocalista James LaBrie. E, como não poderia deixar de ser, o solo de guitarra.

UM SOLO INCOMUM PARA UMA MÚSICA INCOMUM

Lembra que eu falei o quanto eu achava esse solo ruim? Pois é, eu mudei de opinião. O solo sempre soou estranho porque ele não se parece com nada do que o guitarrista John Petrucci faz. Esse solo tem muitas técnicas complexas e muitos detalhes que são mais estéticos do que propriamente musicais.

Isso pode não fazer nenhum sentido em uma proposta essencialmente musical, mas possui todo o sentido se passarmos a avaliar a partir da imersão que a música se propõe a criar. O solo funciona exatamente como um solo deve funcionar – prestando um serviço à música – mas a questão é que a música em si não funciona da maneira comum. Under a Glass Moon não é só uma faixa, é uma experiência. E exatamente por isso o solo tem como objetivo dar texturas e detalhes a ela, tornando mais rica essa imersão que se pretende criar. E apesar de eu ter destacado o solo de guitarra, não é apenas ele que é exagerado, mas também o vocal, a bateria, o teclado…

Essa música é bastante abrangente e com certeza renderia muitas outras páginas com as mais diversas interpretações, por isso deixo essa lacuna para você preencher. E digo mais: o delfonauta que conseguir achar indícios de que ela é, na verdade, uma adoração à Deusa Ruiva do Bacon, ganha um abraço telepático.

E com essa matéria encerramos o nosso Especial Dia do Rock. Não se esqueça de comentar e compartilhar as matérias do Especial com seus amigos e nos ajudar na dominação mundial!

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