Todo mundo sabe que a Argentina é a terra do tango, do Boca Juniors, do River Plate, de Evita Perón, dos deliciosos alfajores e também do Messi e do deus Maradona (não necessariamente nesta ordem). Mas há muito mais coisa lá do que podemos imaginar. As artes e política afloram pelas ruas da capital, Buenos Aires.
Quando estive lá em janeiro de 2012, fiquei surpreso ao ver a enorme quantidade de livrarias e lojas de livros, discos e filmes usados. E era muito difícil encontrar alguma vazia, sem ninguém folheando e bisbilhotando as páginas dos livros e das histórias em quadrinhos que transbordavam por lá. Perto da Avenida 9 de Julio, encontrei uma dessas lojas que vendiam quadrinhos e estava lotada de jovens lá dentro, discutindo, comprando e absorvendo o que havia para ser absorvido. Dentro da loja havia mesas e cadeiras para que se pudesse sentar e ler, igual ao que muitas mega livrarias fazem hoje.
Antes de chegar ao hotel, comecei a reparar que os argentinos discutem política como se discute futebol no Brasil e os milhares de cafés que existem pela Ricoleta e por toda Buenos Aires, fervilhavam de assuntos políticos. Quando estive lá, foi a época em que a presidenta Kristina Kirchner tinha sido diagnosticada com câncer e precisava ser operada. A preocupação sobre os rumos políticos do país eram discutidas em todas as esquinas. Para a sorte dos argentinos, ela não precisou ser operada, pois o diagnóstico constatou que apenas tratamento médico resolveria.
Quando cheguei ao hotel, fui pesquisar pela nossa querida Internet os grandes nomes das histórias em quadrinhos que existem por lá. Sinceramente, conhecia apenas Quino e sua famosa Mafalda, um dos ícones da cultura pop pelo mundo. E qual não foi a minha surpresa quando descobri a arte de Oesterheld e López e um tal de El Eternauta, que era admirada por fãs no mundo todo. Infelizmente aquele dia era o meu último dia em terras hermanas e como estava cansado, resolvi ficar no hotel a fim de esperar pela volta às terras tupiniquins ao invés de ir até a livraria mais próxima e trazer um exemplar de souvenir. Eis um dos meus grandes arrependimentos.
O tempo passou (e rápido pelo jeito) e aqueles nomes nunca saíram da minha cabeça. Mas o futuro nos prega peças e, no início deste ano, estava eu bisbilhotando nas estantes da biblioteca da escola pública onde leciono e o título de um livro ali no fundo, chamou-me a atenção. A primeira coisa que fiz foi tentar puxar pela memória onde tinha visto aqueles nomes antes. E claro, todo aquele sentimento a respeito da minha viagem a Buenos Aires voltara à minha mente. Eu estava segurando, amigos delfonautas, a edição brasileira d’O Eternauta. Ao folhear o livro, não hesitei e o levei para casa. Foi aí que descobri que estava diante de uma das mais belas e importantes obras de história em quadrinhos de todos os tempos.
VIAJANTE ATEMPORAL
O Eternauta narra a história do viajante atemporal Juan Salvo, que aparece repentinamente na casa de um roteirista de quadrinhos (provavelmente o alter ego de Oesterheld, o roteirista). Ele se revela como o Eternauta, um homem que vem viajando pela eternidade, do passado ao futuro e que resolve contar sua história e como foi parar ali.
Assim, ele conta ao roteirista a história do argentino Juan Salvo, que uma noite, jogando cartas com seus quatro melhores amigos, é pego de surpresa ao perceber que estava nevando em plena Buenos Aires. E isto os pega de surpresa, pois quase nunca neva na capital argentina. Quando olham pela janela, percebem que todos aqueles que estavam na rua haviam morrido. Carros batidos, pessoas ao chão, cidade sitiada, um caos total. Deduzem, portanto, que aquilo que caía não era neve, mas algo que matava as pessoas pelo simples contato e que eles só estão vivos porque estavam protegidos em casa, pois, como estava frio, as janelas e portas estavam muito bem fechadas.
O pânico toma conta de Juan Salvo e seus amigos, que começam a arquitetar algo para descobrir o que realmente acontecera. E após criarem um “traje hermético”, saem às ruas para coletar comida e a partir daí descobrem que tudo não passava de uma invasão alienígena e passam a lutar contra os invasores. Ficamos sabendo quem são os ”mãos”, os cascudos, e descobrimos o inteligente Professor Favalli, o personagem que é amigo de Salvo e é o seu oposto. Enquanto Juan é corajoso e destemido, Favalli é o cérebro da dupla. Mas não é só pela dupla que a história é feita, ela é também preenchida por outros personagens que se unem na caçada aos alienígenas. E no final, descobre-se o paradeiro do nosso viajante e narrador da história. Eis o mote desta belíssima obra-prima.
E, amigos delfonautas, que obra prima! Que ficção científica! E há vários motivos para se crer nisso. Oesterheld é o mestre do roteiro de ficção científica na América Latina. Cativa em seu enredo e o faz em momento fragilizado pela população argentina, que vive em meio a uma ditadura. É como se aqueles poucos sobreviventes da invasão alienígena, idealizada por Oesterheld, lutassem contra o governo. É como se fosse os poucos contra os milhares, como qualquer intervenção contra o sistema, e como qualquer invasão alienígena que se preze.
O próprio criador define sua obra de forma magistral: “O verdadeiro herói de O Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano. Isso reflete, embora sem premeditação, meu sentimento íntimo: o único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o herói individual, o herói solitário”.
Viu só? Imagina você e mais uma dúzia de homens lutando contra um exército alienígena ou você e mais uma dúzia de homens saindo às ruas para protestar contra uma ditadura sem fim. Amigo, a metáfora criada aqui é a de união. Ou como diria nosso sábio ditado popular: uma andorinha só não faz verão. Nem se forem andorinhas africanas.
Além disso, os desenhos de López dão o tom necessário ao enredo, com um jogo de sombras que intercalam o preto e o branco dos desenhos. Sua técnica é chamada de chiaroscuro, que em italiano significa luz e sombra. Técnica muito utilizada por ninguém menos do que Leonardo da Vinci e consiste em delimitar pela cor negra o desenho, ou seja, não é necessário usar linha de contorno, pois a própria perspectiva é responsável por isso (veja na galeria alguns exemplos, em espanhol). Agora imagina isso junto com o enredo acima. Imagina tudo isso sendo feito no final da década de 50, quando poucas obras primas da nona arte haviam sido feitas.
São 360 páginas (ainda bem) de pura adrenalina e suspense e a cada página virada, uma nova surpresa. Você, com certeza, se pegará torcendo por Juan Salvo e seus amigos ao fim da vitória contra os alienígenas nas ruas de Buenos Aires.
Como pode notar, é uma obra de arte feita para um público acostumado a dialogar política e a consumir literatura, como pude constatar. Uma HQ além do seu tempo. Uma ficção científica dona de características únicas e que é atemporal. Mesmo depois de 50 anos, pode se aprender muito com a dupla Oesterheld e López. Clássico absoluto.
CURIOSIDADES:
– El Eternauta é considerado até hoje o exemplo máximo do heroísmo argentino. Todos os argentinos gostariam de ser Juan Salvo. E isso é tão forte na cultura de Mar del Plata que o até então candidato à presidência da República Nestor Kirchner usou o personagem de Juan Salvo para fazer sua propaganda: era o Nestornauta, uma referência e influência dada à famosa história em quadrinhos.
– Oesterheld foi caçado, torturado e morto pela ditadura argentina. Isso o tornou um dos grandes nomes das artes no país. Para a nossa sorte, antes de sua morte, ele conseguiu nos presentear com um universo amplo no ramo das histórias em quadrinhos e deixou outras grandes obras, inclusive O Eternauta 2, também lançado pela mesma editora aqui no Brasil.
– Como disse anteriormente, encontrei essa edição brasileira na estante da escola pública onde leciono e qual não foi a minha surpresa ao descobrir que a HQ faz parte do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e foi distribuído pelo Ministério da Educação às escola públicas do país. Parabéns ao nosso Ministério, espalhando essa obra de arte aos nossos alunos. É uma pena que muitos dos meus alunos não gostem de história em quadrinhos. Está aí um desafio para mim.
– A única pequena reclamação que faço da edição brasileira é, infelizmente, a capa. Parece que as editoras brasileiras não se atentam muito pela beleza das capas de seus livros. O importante, porém, é que ninguém compra livro pela capa, né? Ainda bem. Porém, há algo de positivo na edição brasileira, que ilustra nosso próximo tópico.
– A edição tupiniquim traz a mesma forma de impressão do original argentino, na posição horizontal, uma forma diferente de ler HQs. Muitos países editaram a obra e adaptaram-na para a forma vertical, como estamos acostumados. Eu sinceramente achei a ideia da editora brasileira muito boa ao não mudar a forma de impressão. Foi a primeira história em quadrinho que li dessa forma. E você, amigo delfonauta, já leu quadrinhos na posição horizontal? Conte aí nos comentários.