O Balconista

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Leia mais sobre Kevin Smith:
– Resenha de O Balconista 2: You never go ass to mouth!
– Resenha de Menina dos Olhos: o tropeço do cara.

Ter que trabalhar em seu dia de folga, descobrir que sua namorada fez sexo oral em 37 caras (contando você) e que a sua ex, por quem você era apaixonado no colegial, vai se casar com um designer asiático. Até aqui, parece ser um dia normal na vida de Dante (Brian O’Halloran) e seu melhor amigo, Randal (Jeff Anderson), balconistas de uma loja de conveniência e de uma locadora, respectivamente, bem como de dois traficantes que ficam o dia todo sem fazer nada do lado de fora (os famosos Jay e Silent Bob). Pode parecer estranho, mas estamos falando do filme de estréia de um dos diretores mais reverenciados entre os nerds: Kevin Smith.

O roteiro de O Balconista surgiu quando Kevin estava na faculdade de cinema e o apresentou a um colega de curso, Scott Mosier (que iria se tornar produtor e editor de todos os próximos filmes do Sr. Smith). Os dois resolveram fazer o filme a qualquer preço, o que custou a saída de Kevin da faculdade, mantendo apenas o seu trabalho numa loja de conveniência, por sinal a própria em que o filme se passa.

Voltando à história: Dante acorda com um telefonema de seu chefe avisando que ele teria que trabalhar em seu dia de folga, fazendo com que ficasse impedido de jogar hóquei. É o começo de um dia onde tudo vai dar errado.

Ele abre a loja e os clientes habituais vão aparecendo. Começam a desfilar os tipos mais estranhos, como um cara que faz propaganda contra cigarros, um homem que procura a dúzia perfeita de ovos e um velhinho com o intestino solto que quer usar o banheiro e ler – enquanto faz as suas necessidades – uma revista de sacanagem.

Sua namorada Veronica (Marilyn Ghigliotti) insiste que ele largue o trabalho e volte a estudar, mas Dante não quer isso. Prefere ficar em um emprego a voltar para a faculdade. Ao mesmo tempo, ele tenta lidar com os clientes com o máximo de “profissionalismo”.

Já Randal é o oposto de Dante: tem completa noção de seu trabalho sem perspectivas e, por isso mesmo, destrata todo e qualquer cliente sempre que possível, protagonizando as melhores piadas da história. Isso porque Kevin Smith escreveu o papel pensando em interpretá-lo, mas acabou ficando com Silent Bob, o traficante que faz dupla com Jay.

Até aí tudo está normal, mas as coisas começam a tomar outros rumos quando a namorada de Dante confessa ter feito sexo oral com mais 36 caras além dele, apesar de ter transado com apenas três. Digamos que ele não estava preparado para essa informação!

Logo depois, Randal lhe traz uma outra bomba: sua ex-namorada, Caitlin (Lisa Spoonhauer), de quem ele tanto gostava no colegial, está noiva de um designer asiático e quando ela vem lhe visitar, ele tenta reconquistá-la. Mas graças às constantes interferências de Randal, sempre com a melhor das intenções, nosso herói Dante pode acabar é sem mulher nenhuma ao final deste péssimo dia. E agora chega, porque já contei muito da história. Quem quiser saber como esse dia infernal termina, terá de correr atrás do filme.

Com uma produção de orçamento apertado, 26.800 dólares, o diretor teve de vender sua tão amada coleção de histórias em quadrinhos (isso deve doer) para completar o orçamento da produção, financiada através de cartões de crédito e empréstimos de amigos e da família. Já na metade das filmagens, iria faltar dinheiro, porém, um incidente envolvendo o ator e amigo de escola de Kevin, Jason Mewes (que faz o traficante falastrão Jay) salvou o filme. Ele saiu com um dos carros da produção para uma balada, e acabou sendo pego numa enchente que arruinou o automóvel. Com o dinheiro do seguro foi possível terminar o filme.

Contando com elenco reduzido, os coadjuvantes foram interpretados pelos amigos do diretor e por membros da produção, sendo que um deles chega a interpretar quatro papéis diferentes. Um filme minimalista, com basicamente uma única locação.

A fotografia é em preto e branco, onde se destacam os contrastes, embora seja, em certos momentos, muito granulada, feia mesmo. O filme também apresenta pouquíssimos movimentos de câmera. O próprio Kevin Smith mais tarde reconheceu este como sendo seu filme mais pobre visualmente. Porém, este visual “fraco” é compensado com um excelente roteiro de humor anárquico e tiradas rápidas e cáusticas, que acabam por desviar a atenção da imagem simples. Como exemplo dos diálogos espertos, temos a já clássica discussão sobre os operários da segunda Estrela da Morte em Star Wars – Episódio VI: O Retorno de Jedi.

Aliás, os diálogos têm tanto conteúdo e numa velocidade tão rápida, que as legendas simplesmente não dão conta de sintetizar tudo. Quem tem um bom domínio da língua inglesa é beneficiado e com certeza vai curtir muito mais o filme.

O sucesso da fita fez também com que Smith assinasse, em 1999, um contrato com a rede americana de TV ABC para a produção de uma série animada baseada em O Balconista. Porém, a estréia da série, que já tinha até sido anunciada durante os comerciais do Super Bowl (tradicionalmente, um dos espaços publicitários mais caros do mundo), foi constantemente adiada. Quando ela finalmente estreou, o público já tinha perdido o interesse e apenas dois episódios chegaram a ser exibidos antes que fosse cancelada. Kevin Smith lançou então, através da Miramax, um DVD duplo com os seis episódios (os dois que foram ao ar e mais quatro inéditos) produzidos.

Mais tarde, ele “homenagearia” este fato em Procura-se Amy, quando os personagens principais tentam fechar um acordo de uma série animada com a MTV, uma espécie de exorcismo à maior roubada em que ele já se meteu.

Em seu primeiro longa, Kevin Smith destila suas futuras ambições. Seus personagens tratam de assuntos contemporâneos à juventude da classe média suburbana estadunidense. Seus anseios e conquistas, seus medos, paranóias e seus relacionamentos. Tudo isso, aliás, não deixa de ser um tema em comum entre os nerds do mundo inteiro.

Os tipos usados nesse filme se repetiram de outras formas nos trabalhos seguintes do cineasta, com outras crises existenciais, outras dores de cotovelo, o jeito de encarar um relacionamento e o seu término e as mudanças do mundo. Tal como o próprio Kevin Smith, seus filmes crescem e seus temas idem. O Balconista seria a infância de um cineasta em plena formação. Afinal, esse filme, além de ter vencido o Festival de Sundance (um dos mais importantes do cinema independente), angariou uma legião de fãs e o tornou um dos cineastas estadunidenses mais cultuados dos anos 90, bem como uma das figuras mais queridas entre a comunidade nerd. Então, nada melhor do que aproveitar o momento da chegada de O Balconista 2 aos nossos cinemas para rever o primeiro, ou, se você ainda não viu, descobrir onde tudo começou.

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