“As publishers são malvadas. Ficam colocando microtransações para tirar cada vez mais dinheiro dos jogadores e aumentar seus lucros homéricos”. A verdade não é bem essa, e a coisa é bem mais complexa do que simplesmente “as editoras são empresas que precisam ter lucro”. A terrível realidade em que o mercado de games se encontra hoje é a culminação de um problema que vem demonstrando seus sintomas há cerca de uma década.
Neste artigo, a estreia da minha coluna Pensamentos Delfianos no novo DELFOS, vou demonstrar passo a passo como chegamos a este ponto, em que quase todo jogo AAA é RPG e recheado de loot boxes e microtransações. Veja bem, para entender como isso tudo aconteceu, é importante pensarmos no funcionamento do mercado gringo. Várias coisas citadas por aqui, como o preço dos jogos em dólares, não valem para o Brasil, mas são importantes para o contexto geral.
QUANTO VALE UM JOGO?
Em 2005, foi dada a largada para a geração do Xbox 360, e com ela tivemos o último aumento no preço dos jogos em disco. Até o PS2, um jogo original em caixinha custava nos States 50 dólares. Com o advento da então next-gen, houve um aumento e os jogos passaram a custar 60 W. Bushes.
Esta geração também trouxe muitas mudanças. Agora o serviço online era uma realidade, trazendo novas possibilidades de multiplayer e mesmo de vendas de jogos e expansões – que passaram a ser popularmente conhecidas como DLCs (downloadable contents).
Para este texto, talvez a principal novidade tenha sido a moda dos games como experiências. O final da geração anterior já viu o sucesso de jogos mais cinematográficos, como God of War, mas foi por esta época que eles realmente se popularizaram, com lançamentos como a série Gears of War e Uncharted.
O problema, como o diretor de God of War, David Jaffe, revelou posteriormente, é que experiência custa bem mais para desenvolver do que gameplay. E desde 2005, os custos subiram bastante. Comparemos com outro entretenimento que gostamos muito. No Brasil, em 2006, o preço de um ingresso de cinema caro era de 19 reais. Hoje estamos beirando os 40 contos. Desde então, o custo de vida também subiu, o que significa que os custos para criar um jogo ficaram maiores. Mas o preço de venda final se manteve o mesmo, uma vez que o mercado sempre considerou jogos caros demais e não aceitaria um novo aumento.
Esta geração também popularizou as vendas digitais. Inspirada por jogos de azar (onde você costuma trocar dinheiro por chips), a Microsoft optou por uma jogada moralmente questionável. Para comprar os jogos digitais do Xbox 360, você precisava de “pontos Microsoft”, que eram comprados com dinheiro real. Para deixar tudo intencionalmente mais confuso, 800 pontos eram o equivalente a 10 dólares. Assim, você tinha a sensação de que estava gastando menos do que realmente estava. Mantenha isso em mente, pois se tornará importante anos depois.
TAPANDO O BURACO
Com isso, quem faz jogos teve que procurar formas alternativas de cobrir o buraco. Foi o início da popularização das DLCs, que trouxeram consigo suas próprias polêmicas. Houve casos bem irritantes, como o de Assassin’s Creed II, que dizia que duas das últimas sequências estavam corrompidas, mas que você podia pagar um extra para ver a história inteira. Outro caso pentelho foi o de Prince of Persia, que terminava em um cliffhanger que era resolvido em um DLC. O fato de ambos serem da Ubisoft demonstra não que a Ubisoft era mais malvada, mas que por ser uma das maiores editoras – e, portanto, um das que mais gastavam em desenvolvimento – foi uma das primeiras a ter que lidar com o fato de que a conta não mais fechava.
Isso tudo levou à fundação da organização sem fins lucrativos chamada Liga Delfiana Anti-DLC, que se incomodava com o fato de os jogos não mais serem vendidos completos. Mal sabíamos nós que as coisas ficariam ainda pior, pois um novo problema surgia no horizonte.
Lojas como a Gamestop estavam lucrando com a venda de games de forma que as editoras julgavam predatória. Eles aceitavam jogos usados como parte do pagamento em compras, e depois vendiam estes mesmos jogos a preço de banana. Era comum nos States você conseguir comprar jogos AAA recém-lançados por 10 dólares ou menos. Com isso, uma segunda pessoa – e uma terceira, quarta ou quinta – tinha acesso à mesma experiência de quem pagou 60 dólares sem dar dinheiro algum para os criadores.
Isso, somado à moda de games como experiência, algo que a maioria das pessoas jogaria apenas uma vez, criou um verdadeiro problema. Sujeitinho comprava Uncharted, matava no final de semana e levava de volta à loja para trocar por outro jogo. Sujeitinho 2 chegava lá na semana seguinte ao lançamento, e comprava o mesmo disco por metade do preço, matava em alguns dias e voltava à loja. Sujeitinho 3 então, comprava por um quarto do preço, e assim o ciclo continuava, com o preço caindo cada vez mais. Isso na época acabou se tornando um problema mais grave do que a pirataria, uma vez que os consoles dessa geração, especialmente o PS3, demoraram para ser hackeados.
MULTIPLAYER
O mercado então teve que tentar solucionar o problema: como fazer as pessoas não venderem seus jogos, mas continuarem jogando pelas semanas e meses seguintes ao lançamento? A resposta parecia ser o multiplayer. A esta altura do campeonato, quase todos os consoles estavam conectados à internet, e muitos jogos passaram a explorar muito bem isso. Call of Duty se tornou uma inspiração no mercado, por ter sempre uma curta campanha cinematográfica, mas manter os jogadores interessados graças ao seu PVP (player versus player).
Não demorou para outros jogos focados no single player começarem a incluir modos PVP. Foi o caso de Uncharted 2 e Assassin’s Creed Brotherhood. Isso não foi de todo ruim.
Eu mesmo nunca fui muito de PVP, mas gastei umas boas horas em Bioshock 2 e em Assassin’s Creed Revelations. Foram os únicos até hoje que eu joguei o suficiente para chegar ao nível máximo.
Porém, não era fácil repetir o sucesso do Call of Duty. Os PVPs de alguns jogos, como Dead Space 2, simplesmente não vingaram. Pouco depois do lançamento, já era praticamente impossível conseguir encontrar partidas. Imagina o desespero dos criadores, quando criaram toda uma parte do jogo (que custava milhões de dólares) e as pessoas simplesmente ignoravam. É a melhor definição de jogar dinheiro e trabalho no lixo que já tivemos no mercado de games.
Assim, isso não inibiu a venda de usados. Era necessário dar um jeito nisso, fazer as editoras verem algum retorno do mercado de segunda mão. Foi aí que surgiram os…
ONLINE PASSES
Foi aqui que os jogadores realmente começaram a ficar com raiva das editoras, por considerá-las predatórias e anti-consumidor. Funcionava assim: quando você comprava um jogo, ele vinha com um código de uso único que ativava parte dele. Esta parte normalmente era o modo multiplayer, mas em alguns casos, como Batman: Arkham City, você precisava do código para jogar a campanha completa.
Caso você comprasse o jogo usado, obviamente o código já teria sido ativado pelo usuário original. Então você ficava com duas opções: ou ficava com o jogo capado ou comprava o passe diretamente na loja online dos consoles. O preço padrão do passe online era de 10 dólares, que comumente era mais do que o preço do disco usado em lojas como a Gamestop.
O mercado odiou isso. Argumentavam que o jogo no disco estava incompleto, e tinham razão. As reclamações foram tantas que os passes online duraram pouco. O problema que os causou, no entanto, continuava, e cabia a quem trabalha com jogos pensar em outras formas para lidar com o preju.
XBOX ONE
A essa altura estava chegando uma nova geração, e a Microsoft propôs uma solução em seu novo console.
Inspirada pelo funcionamento e pelo sucesso da Steam nos computadores, os jogos em disco para o Xbox One seriam ligados à sua conta da Xbox Live. Assim, ao inserir o disco, ele seria totalmente instalado e você não precisaria mais do CD para rodá-lo. Outra vantagem é que você não precisaria do disco nem para novas instalações, uma vez que o jogo estaria sempre vinculado à sua conta e você poderia baixá-lo novamente sempre que precisasse. Por outro lado, o disco se tornaria praticamente inútil depois da instalação inicial. Você não poderia vendê-lo, mas também não poderia emprestá-lo para um amigo.
A internet teve um patatus! Poucas vezes uma jogada de uma empresa foi considerada tão hostil pelo mercado. Até a Sony entrou na jogada, fazendo um vídeo com o tutorial de como dividir os jogos de PS4, claramente tirando sarro da Pequenomole.
Não demorou para a Microsoft voltar atrás. O admirável mundo novo que ela propunha para o Xbox One não mais existiria. Mas o problema que inspirou esta solução não iria embora.
FREEMIUM, DO LATIM “NOT REALLY FREE”
Paralelamente a isso, o mercado dos jogos de celulares vinha crescendo muito. Provavelmente se você tem crianças na família, deve perceber que elas jogam bem mais em celulares do que os mais velhos. As motivações são óbvias. Todo mundo já tem um celular de qualquer jeito, e a maioria dos jogos é grátis. #sqn
Acontece que o progresso nesses jogos costumava ser pago. Basicamente, os jogos freemium servem como algo que vai incentivar o seu vício. Para você continuar fazendo progresso, era necessário pagar. Ao contrário dos DLCs, no entanto, você não pagava pelo que queria comprar. Você pagava pela chance de ganhar o que queria. Eram as hoje famigeradas loot boxes.
Esta mecânica, inspirada por jogos de azar, fazia com que a maioria das pessoas não gastasse dinheiro nenhum e tivesse a ilusão de que os jogos eram grátis. Sua diversão era bancada por alguns usuários hardcore que acabavam gastando mais do que pretendiam – ou podiam.
Lembra lá atrás, dos pontos Microsoft? Pois é, a mesma tática estava sendo utilizada nos jogos de celular. Você não comprava direto a chance de ganhar o que queria, mas primeiro gastava seu rico dinheirinho na moeda fictícia do jogo. Só depois trocaria esses pontos pelo que queria. Como os pontos são vendidos em pacotes, você poderia ter que gastar cinco dólares para comprar algo que custa três, por exemplo, além de perder a conta de quanto está gastando no meio do caminho.
Com estas economias próprias, os jogos de celular estavam se popularizando e conseguindo lucrar. Mas será que isso funcionaria em jogos de console, vendidos a 60 Trumps? Ora, só tem um jeito de descobrir.
E assim começamos a enxergar o panorama no qual nos encontramos hoje.
POR QUE TUDO É RPG?
Uma das preocupações do mercado era manter você jogando para não vender seus jogos. Um jogo que conseguiu isso foi Diablo III, que até hoje é muito jogado. Esta permanência se deve ao foco do jogo em loot gerado aleatoriamente. Para mim, matar determinado inimigo pode dar uma armadura pintuda, enquanto para você, pode gerar uma birosca. A única forma de ganhar o que você quer é continuar jogando e ter um bocado de sorte.
Isso é bem diferente do que tínhamos em God of War, por exemplo, onde abrir determinado baú sempre dava a mesma recompensa. Se você queria algo, bastava uma busca online para saber onde encontrar. Nos RPGs de loot aleatório, não tinha jeito, você era obrigado a jogar, e jogar, e jogar mais um pouco, muitas vezes continuando a jogar horas depois de ter deixado de ser divertido.
Isso explica o fato de quase tudo de alto orçamento que sai hoje ser RPG, inclusive séries que nunca foram do gênero, mas que agora são, como Assassin’s Creed. O próprio sistema de progressão de um RPG tradicional é amigável a isso. Em qualquer RPG, você pode encontrar uma arma ou uma armadura que seja absurdamente boa. Porém, conforme você sobe de nível e avança no jogo, ela vai se tornando cada vez menos útil até virar… bem… inútil. Muitas vezes você é obrigado a trocar a sua espada lendária com dano de fogo e que causa sangramento por uma espada comum simplesmente porque esta é de um nível maior. É a obsolescência programada aplicada a videogames. É a mecânica que muitos gostavam no gênero RPG sendo usada para o mal.
MICROTRANSAÇÕES
Ao mesmo tempo, isso é uma forma bem fácil de vender conteúdo. As desenvolvedoras não precisam mais criar toda uma mecânica de multiplayer (Assassin’s Creed Origins, por exemplo, nem tem mais multiplayer) para te manter jogando. Ela acaba criando os mesmos itens que sempre criou (normalmente um grupo limitado de tipos e efeitos) e coloca estatísticas aleatórias para cada uma delas.
Você não tem mais a opção de comprar exatamente o que você quer, mas pode optar por comprar uma caixa que talvez, quem sabe, com um pouco de sorte, possa trazer algo legal. E claro, as caixas mais caras são as que têm a maior chance de incluir o que o jogador deseja. É totalmente jogo de azar, você não compra um produto, mas aposta na sua sorte. Fico pensando se os políticos brasileiros preveram isso quando resolveram tributar videogames como jogos de azar.
O mercado costuma ver microtransações com dois níveis de maldade. O menos malvado é quando você compra apenas itens cosméticos, que deixam seu personagem e equipamentos mais bonitinhos. É o caso de jogos como Destiny 2 e Overwatch.
Há uma outra categoria, no entanto, que é considerada a segunda vinda de Damien. É o que é chamado de pay-to-win ou, em outras palavras, quando você paga por vantagens. Isso começou a ser criticado por desbalancear as partidas de PVP, mas hoje está sendo bastante usado nos single players também.
Sombras da Guerra, por exemplo, bloqueia o final da sua história com dezenas de horas de gameplay chato e repetitivo, que você pode pular simplesmente pagando. Need For Speed, tradicional jogo de corrida com dezenas de iterações, este ano virou RPG também.
Em Need For Speed Payback, o progresso em cada corrida é limitado pelo nível de seu carro. Para subir de nível você precisa jogar várias vezes as corridas pelas quais já passou, em cada uma tendo a chance de ganhar uma carta que pode, talvez, subir o nível do seu carro. Ou então, pagar para ter a mesma chance e progredir mais rápido.
Este parece ser o tema dos lançamentos AAA deste final de ano. Star Wars Battlefront 2, que sai hoje, vem rodeado de polêmicas. A internet deu um piti tão grande pelo fato de que demoraria 40 horas para liberar o Darth Vader ou o Luke Skywalker que a EA resolveu cortar os custos dos personagens em 75% antes mesmo do lançamento (as reclamações dos jogadores foram tamanhas que a EA resolveu ontem tirar temporariamente a possibilidade de comprar coisas no jogo com dinheiro real). Chegamos ao ponto em que os jogos são desenvolvidos em torno de modelos de monetização, pois é a única forma de bancar os custos de um jogo de alto orçamento hoje em dia.
Paralelamente a isso, a mesma EA cancelou o jogo single player de Star Wars sendo desenvolvido pela talentosíssima Visceral, aquela que nos brindou com Dead Space na geração passada. O recado é claro: não é mais sustentável comercialmente fazer experiências single player do tipo pague e jogue apenas uma vez.
UM CENÁRIO LAMENTÁVEL, MAS VOCÊ PODE MUDAR ISSO
De certa forma, chegamos a este ponto por causa da intransigência dos jogadores. Não quisemos aumentos. Não quisemos online passes, não quisemos o sistema do Xbox One como ele foi originalmente concebido. E quisemos manter o direito de comprar nossos jogos AAA na Gamestop por cinco dólares (obviamente, tudo isso se aplica bem mais aos EUA do que ao Brasil) na semana seguinte ao lançamento. Toda ação causa uma reação.
Na realidade brasileira, não precisamos ir muito longe para pensar em como a cultura do “quero levar vantagem” acabou estragando algo bom para todo mundo. A lei da meia-entrada para eventos culturais fez com que todo mundo desse um jeito de conseguir uma carteirinha, mesmo que não tivesse direito ao benefício. O resultado é que os shows aumentaram de preço consideravelmente acima da inflação e do valor do dólar para cobrir o prejuízo. A meia entrada virou a metade do dobro.
Outro caso é a Amazon gringa, que era um verdadeiro paraíso de compras baratas e excelente atendimento. No entanto, a nossa alfândega é uma porcaria e segurava as encomendas por muito tempo antes de entregá-las. A gente sabia que a culpa não era da Amazon, mas era com ela que íamos reclamar. E como o atendimento dela era muito bom, a resposta costumava ser devolver o dinheiro e considerar a encomenda perdida.
Isso se tornou tão comum que a empresa se viu obrigada a acrescentar o “custo Brasil” nos produtos. Passou a enviar para o nosso país apenas através de couriers, que cobram o imposto antecipado e mais uma taxa chamada “desembaraço aduaneiro” que, assim como o nome sugere, é basicamente uma propina para a nossa alfândega liberar logo a encomenda. Isso aumentou o custo para compras na Amazon (com exceção de livros, que segundo o nosso governo são a única forma de cultura e portanto não pagam imposto de importação) em mais de 100%, tornando praticamente inviável para todo mundo.
Assim como a lei da meia-entrada e as compras na Amazon, a possibilidade da compra de usados a preço de banana era algo que trazia um benefício imediato, e agora estamos pagando o preço por isso. Se tem algo que você faz que parece bom demais, ou dá a sensação de que você está levando vantagem, pode ter certeza que não vai ser para sempre assim.
Então, se você gosta de jogos single-player focados na experiência ou, caramba, se você gosta de videogames como um todo e quer ajudar a acabar com este cenário lamentável que vivemos, compre seus jogos novos (vale até esperar baixar o preço) e vote com a carteira mostrando que lançamentos como The Evil Within 2 e Wolfenstein: The New Colossus têm valor e ainda podem dar lucro.
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