“Caramba, que grande obra!”. É isso o que sempre digo quando termino de ler algo que me deixa ora alegre, ora pensativo. Este é o melhor sentimento que alguém pode ter. É isso o que sempre aprendi nas aulas de arte e literatura. Chama-se catarse. É este o objetivo de todas as artes: deixar-nos apreensivos e pensativos sobre algo e feliz por ter nos dados a oportunidade de sair da caverna, adentrar a toca do coelho ou tomar a pílula vermelha.
Quando comprei a obra de Art Spiegelman, eu a devorei como uma criança devora uma caixa de balas de caramelo. O enredo, os desenhos e o clima de realidade são tão bem feitos que me envolveram significativamente. Maus narra, através de flashbacks, a história da vida dos pais do próprio autor, Vladek e Anja Spiegelman e de tudo o que eles passaram na época do holocausto: as centenas de milhares de mortes, as humilhações, judeus de toda a Europa mortos, a supremacia alemã. Tudo está ali e de uma forma detalhista, introspectiva e metafórica.
Mas o que mais surpreende, é que Maus vai além do clichê que todas as outras artes já apresentaram sobre o tema. O que mais impressiona é o caráter psicológico e familiar da obra. A convivência de um pai que sobrevivera a Hitler e sua utopia eugênica, e de um filho, com dotes de artista, que sabe que pode lançar uma grande obra com as memórias de seu velho já doente, e por isso se aproxima dele e passa a visitá-lo constantemente.
Vladek, com o passar do tempo, torna-se um velho rancoroso consigo mesmo, cheio de vícios e poucas virtudes. Seriam, talvez, consequências dos maus tratos que viveu nas mãos dos nazistas? Nas inúmeras artimanhas para poder sobreviver e do que encarou em Auschwitz? Vladek é a encarnação perfeita do estereótipo do judeu sovina (palavras ditas pelo seu próprio filho no meio da narrativa), que sempre arranjava meios de ter o que comer, de trocar ouro por comida e que morrera rico. Vladek se mostra um cara esperto, que sempre tem uma carta na manga para conseguir sobreviver, cuja sorte, ao seu lado, lhe poupara de coisas piores.
Art também está ali na obra, ora como narrador, ora como coadjuvante, ora como protagonista. Fica difícil até de perceber se Art fez a obra para escancarar ao mundo o mal do nazismo e da Segunda Grande Guerra ou se a fez para si próprio, para poder entender a si mesmo e o que seus antepassados viveram. Talvez seja uma coisa ou outra. Talvez sejam todas elas e mais um pouco. Seria uma autobiografia? Ou a história de seus antepassados?
Art, o filho, por sua vez, amadurece ao longo da obra e vai de um ilusionista a um grande artista renomado com o lançamento da própria obra que acabara de lançar: Maus. O enredo vai da invencionice à realidade, do factual à ficção. Art enfrenta a dura realidade da vida de seus pais e se torna psicologicamente alterado por algo como aquilo ter existido. Art é afetado pela dura e triste versão dos fatos, enquanto desenha e escreve a própria história de sua vida e do enredo de sua obra. Ambos se misturam. Ambos se complementam.
Por falar nos desenhos, os traços de Art Spiegelman são detalhistas e não nos poupam de quase nada. Muito bem executado, somos levados para dentro da Polônia e do universo doentio e sanguinolento dos nazistas. A arte de Art (juro que a rima não foi proposital) retrata com maestria até os esquemas mais minuciosos e consegue passar uma veracidade até então difícil de ser transportada para as histórias em quadrinhos. A maneira como os esconderijos judeus são mostrados (os bunkers), os mapas, o background, são realmente impressionantes.
Muitas vezes somos surpreendidos com a metalinguagem usada por Art. É a obra dentro da obra. Quadrinhos falando de realidade, é a realidade do mundo dos quadrinhos. Art bebe das mais doces inspirações do que Orwell fez com o seu Revolução dos Bichos e até do que Esopo fez com suas fábulas.
O antropomorfismo, realizado por Art, representando judeus como ratos (ou maus, em alemão), poloneses como porcos, alemães como gatos e cachorros como americanos, dá-nos a impressão de que vivemos em uma terrível e inescapável cadeia alimentar, onde cães perseguem gatos, que perseguem ratos. Um sistema bruto e covarde de superioridade de raças. A sociedade só pode ser entendida quando esta é representada por raças (animais) e como cada raça pode ser superior à outra, pois seria difícil, a olho nu, compreendermos de onde o racismo, o preconceito e a indiferença surgem entre nós, já que somos todos iguais. Será que vivemos como se fôssemos animais ou são só máscaras que usamos para sobreviver e governar? Eis a questão chave do livro.
Art Spiegelman apresenta-nos uma obra prima atemporal e merece o selo delfiano por excelência. É uma daquelas obras que só poderiam ser apresentadas por alguém sagaz o suficiente para mostrar, com tanta clareza, as mazelas da sociedade e do que o nazismo causou na história de nosso povo. Por várias vezes cheguei a questionar se teria colocado todas as minúcias da própria vida se eu fosse o autor. Art aparece gritando com seu pai, evitando-o, ouvindo-o, aprendendo a amá-lo, expondo-o. É difícil para nós falarmos sobre nós mesmos e sobre os nossos fantasmas. Ainda mais relatar uma das épocas mais sombrias da história humana e de como as pessoas conseguiram (será?) se livrar delas.
Quando se termina de ler a obra, várias perguntas surgem. Uma delas, que sempre ficará na minha mente quando falamos do nazismo é “por quê”? Por que alguns se sentem superior aos outros? E como alguns, como Vladek e Anja, conseguiram sobreviver, mesmo depois de serem submetidos a tantos maus-tratos? Eu odeio pensar nisso, mas eu amo a catarse de tudo isso.
P.S.: Spiegelman hoje vive em Nova Iorque, onde ainda mantém sua revista, Raw, considerada por muitos como um artefato de vanguarda. Tornou-se um crítico ferrenho a George W. Bush e sua política. Maus é, até hoje, a única HQ a ganhar o prêmio Pulitzer.