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Quando vejo jovens descolados, moderninhos e cheios de “atitude” divinizarem bandas do chamado Brit Pop (como Oasis), do Rock Alternativo, ou do movimento Indie, a coqueluche do momento, acomete-me um misto de pesar e decepção. A tão disseminada cultura do presenteísmo, a tendência de se valorizar apenas aquilo que pertence à sua geração, traz malefícios a diversas atividades sociais.
Na música, e mais especificamente no Rock n’ Roll, a amnésia juvenil fica muito evidente. Superestimar grupos surgidos a partir da década de 90 e esquecer ou simplesmente ignorar aqueles que criaram, moldaram e revolucionaram – os chamados vanguardistas – o estilo não significa apenas perder a valiosa oportunidade de construir uma perspectiva histórica, mas também, e sobretudo, de criar repertório e de ter referências musicais. É com o acúmulo de boas referências – o que só se obtém com o resgate e a devida valorização do passado – que se desenvolve bagagem, ceticismo, exigência e padrões de comparação.
É justamente a ausência de um conhecimento mais profundo e detalhado do passado do Rock n’ Roll que impulsiona uma considerável quantidade de jovens a embarcar, sem maiores questionamentos, nas ondas midiáticas de Salvação do Rock.
De tempos em tempos, a indústria musical (aí incluídas as publicações e as emissoras musicais), apoiada na amnésia juvenil, elege, de acordo com critérios exclusivamente pecuniários, os seus apaniguados, os seus queridinhos que, na maioria dos casos, são bandas de qualidade altamente questionável. Oasis, Strokes, Libertines, Arctic Monkeys, The Killers, Kings of Leon, Franz Ferdinand e, mais recentemente, Mallu Magalhães e MGMT.
Basta que lancem um ou, no máximo, dois discos de alguma relevância para que recebam tratamento digno de quintessências do Rock, de encarnações da rebeldia, do inconformismo, da sinceridade e da atitude. Tanto elogio para grupos, em geral, pouco carismáticos, tecnicamente indigentes, liricamente paupérrimos e com um indisfarçável apreço pelo comercialismo.
Não que eu seja ingênuo ou romântico a ponto de achar que os cânones do Rock façam música sem pensar no retorno financeiro que ela pode trazer. Afinal, músico é uma profissão como qualquer outra do campo artístico e os músicos também precisam comer, pagar suas contas, sustentar suas famílias e viver com algum luxo. Entretanto, uma coisa é a busca pelo lucro estar fundamentada em música e arte de altíssima qualidade. Outra, completamente diferente, é o comercialismo pelo comercialismo, sem qualquer relevância artística. E isso, que chamo de picaretagem, é o que pratica boa parte dos grupos dos estilos supracitados.
Nessas superestimadas bandas, por exemplo, não se ouvem riffs marcantes e poderosos (uma das condições de existência do estilo), nem melodias nobres e muito menos vocais empolgantes e bem postados. A atitude, a rebeldia, o inconformismo e a sinceridade não passam de jogo de cena. São, na verdade, bandas de boutique, com pouca ou nenhuma relevância artística e produtos de tendências passageiras.
Para chegar a essas constatações é necessário, antes de tudo, um certo esforço para vasculhar o passado. É nas décadas de sessenta, setenta e oitenta que se encontram os principais artífices do mais democrático dos estilos musicais.
Foi nessas épocas, quando o sucesso e o reconhecimento nasciam quase sempre da criatividade, da competência e da perseverança – muitas das bandas passavam anos e anos tocando e se aperfeiçoando na cena underground para então conseguir, com muita dificuldade, gravar o primeiro disco – e não de generosos trampolins midiáticos e da cultura do presenteísmo, que surgiram grupos antológicos, geniais, memoráveis.
É deprimente perceber que jovens bem nascidos (aqueles que efetivamente têm condições para consumir e apreciar a cultura) desconheçam ou subvalorizem a elegância de Brian May e a magnificência do Queen, a inesgotável inventividade de Angus Young, o magnetismo de Ozzy Osbourne, o feeling admirável de David Gilmour, a sofisticação clássica do Deep Purple, a progressividade vanguardista do Queensrÿche, os complexos e sensíveis arranjos do Yes, as melodias memoráveis do Iron Maiden e do Thin Lizzy, a agressividade e rebeldia genuínas do Metallica, o teatralismo pioneiro de Alice Cooper, o inteligente marketing e o Hard Rock contagiante do Kiss, a voz impecável de Ronnie James Dio, os poderosos riffs de Tony Iommy, a versatilidade do Rush, a irreverência sincera do Van Halen, a raça e a firmeza de propósito do Motörhead, a finesse do Jethro Tull, a genialidade explosiva de Jimi Hendrix…
Esses músicos e outros, essas bandas e outras (The Clash, Rolling Stones, The Who, The Doors, Scorpions, Sex Pistols, Led Zeppelin, Whitesnake, etc) construíram e definiram, de uma forma ou de outra, com maior ou menor contribuição, musicalmente e ideologicamente o Rock n’ Roll.
Elas só obtiveram a respeitabilidade e o prestígio de que hoje gozam porque tinham um talento incomum ou, mais ainda, porque inventaram, desafiaram e quebraram paradigmas. Além disso, todas elas, sem exceção, têm uma discografia extremamente sólida (e não apenas um ou dois discos que se destacam), de tal forma que são corriqueiras as discussões sobre qual é, de fato, a melhor obra de cada uma delas.
Outra diferença abissal entre os grandes grupos do passado e os “grandes” do presente é a qualidade técnica dos músicos. Antigamente, cada banda tinha, pelo menos, um ou dois instrumentistas fora de série. Hoje, encontrar exímios músicos nas bandas da moda é uma tarefa árdua e encontrar gênios é praticamente impossível. Ademais, não se faz mais vocalistas como no passado. Geoff Tate, Bruce Dickinson, Ronnie James Dio, Rob Halford, David Coverdale, Freddie Mercury, Ian Gillan, Robert Plant e Bon Scott são todos, em maior ou menor grau, vocalistas performáticos, teatrais, de invejáveis extensão e alcance vocais. Eles não se limitam ou se limitavam apenas a cantar, mas também interpretam, encarnam personagens, vivenciam as letras e fascinam o público. Por isso, são chamados, com justiça, de frontmen. Bem diferente, portanto, do que se observa hoje em dia. Falta aos vocalistas das bandas que despertam a paixão dos jovens descolados mais empatia, carisma, teatralismo, performance. Comedimento, apatia e bom comportamento em excesso definitivamente não combinam com o verdadeiro espírito do Rock n’ Roll.
Tentar minimizar o prestígio e a qualidade das grandes bandas do Rock ao argumentar que boa parte delas é/era pretensiosa, como já ouvi algumas vezes de jovens moderninhos, não passa de pura hipocrisia. Se a sociedade valoriza a excelência na literatura, no cinema, na ciência e em tantas outras atividades profissionais, por qual razão a competência técnica na música é muitas vezes desvalorizada? Se um músico, por dedicação, paixão e profissionalismo, atinge um nível técnico acima da média, por que ele deve ser chamado de pretensioso, hermético e arrogante? Deve-se então admirar aqueles que não estudam teoria musical, que pouco praticam e tocam sem o mínimo de versatilidade, musicalidade e feeling? Desde quando expandir horizontes, fundir sonoridades e se dedicar é sinônimo de pretensão? Esse tipo de crítica, além de denunciar desonestidade intelectual e má-fé de quem a emprega, parece-me uma tentativa desesperada e, portanto, contraproducente (porque condena a meritocracia), de rebater as críticas.
Não, não é proibido gostar de bandas mais novas, surgidas da década de noventa para cá. Nesse período, há, sim, grupos de ótima qualidade, como Alice in Chains, Soundgarden, Dream Theater (este, apesar de ter nascido no final dos anos 80, foi na década seguinte que se estabilizou e se notabilizou pela interessante e, por vezes, genial mistura de Heavy Metal com Rock Progressivo), Pantera, Pain of Salvation, Nirvana, Nevermore, etc.
O que não dá para aceitar passivamente é a veneração, por parte dos tais jovens descolados, moderninhos, vazios e comportadinhos de bandas como Oasis, Libertines, Kings of Leon, Arctic Monkeys, Franz Ferdinand, The Killers, Kaiser Chiefs, Mallu Magalhães, Strokes e MGMT, como se elas representassem o que há de melhor e mais arrojado no cenário do Rock.
Ainda que, de fato, esses grupos apresentassem qualidades, seria demasiadamente cedo para endeusá-los. Para não deixar qualquer dúvida, afirmo, convictamente, que essas bandas são musicalmente fracas e só atingiram tal nível de popularidade em função do apoio quase que irrestrito que recebem da mídia musical. A tese de que eles não prosperariam se não tivessem o mínimo de qualidade é uma falácia. Não é necessário ser competente para receber atenção e ser aplaudido mundo afora. Aliás, muito pelo contrário. Afinal, o que faz as estrelas do tenebroso Axé Music serem tão populares, elogiadas e celebradas senão a maciça exposição midiática? O que fez os igualmente tenebrosos Backstreet Boys e Menudo prosperarem? Para extrapolar um pouco a discussão, o que seria de Fernando Collor de Mello se sua candidatura à presidência não fosse abraçada pela grande mídia?
Esses e tantos outros casos confirmam, além do poder midiático de forjar fenômenos de crítica e público, que popularidade e elogios em profusão não necessariamente significam competência e qualidade. Atestam também que nenhum homem é uma ilha, ou seja, que todos nós somos, em certa medida, influenciáveis. Por isso, ao contrário do que diz o senso comum, nossos gostos não são absolutamente subjetivos. Eles são formados por uma dimensão subjetiva – aquela que diz respeito tão-somente a cada indivíduo – e outra objetiva, influenciada e moldada por convenções, tendências, julgamentos, regras e pela mídia.
Por isso, novamente ao contrário do que prega o ditado popular, gostos, pelo menos no que se refere à parcela objetiva, são perfeitamente discutíveis. É a discussão deles que também aperfeiçoa nossas referências e nossos juízos de valor. Dizer, portanto, que o Heavy Metal, o Hard Rock, o Rock Progressivo e o Rock Clássico são superiores ao Rock Alternativo, ao movimento Indie e ao British Pop não é arrogância, pedantismo ou algo do gênero. É apenas discutir gostos com base em argumentos plausíveis. Quem tenta obstruir o debate a partir do ponto de vista (falso, diga-se de passagem) de que ele se reduz a uma questão de foro íntimo, puramente particular, é que está sendo arrogante. A subjetividade, apenas uma das dimensões dos nossos gostos, não pode servir como elemento obstaculizador de debates.
Certamente, se os mencionados adolescentes do primeiro parágrafo (que tem, sim, pouca capacidade de discernimento porque lhes faltam referências e conhecimento sobre o passado) se dessem ao trabalho de conhecer as origens do bom, velho e verdadeiro Rock n’ Roll, suas bandas preferidas deixariam de ser espetaculares, geniais e inteligentes para se tornarem medíocres, burras e, no máximo, legais. Isso, claro, com uma dose gigantesca de boa vontade.
Nota do Corrales: Não deixe de ler amanhã a resposta do Cyrino a este texto. Se você chegou atrasado, é só clicar aqui.