Começo esta crítica Os Fabelmans contando como a sessão de imprensa começou. Antes do filme, Steven Spielberg e sua gloriosa barba apareceram na tela para uma introdução. Ele disse que Os Fabelmans é o filme mais pessoal que ele já fez, e que é uma homenagem à sua família e à arte do cinema. E esta de fato é a melhor introdução para as duas horas e meia que se seguiriam. Ou para esta crítica Os Fabelmans, que será bem mais pessoal do que o normal aqui no DELFOS também.
CRÍTICA OS FABELMANS
Os Fabelmans parece muito uma versão mais séria de Os Goldbergs. Sam, o protagonista, é um nerd fascinado pelas artes audiovisuais, que passa o tempo filmando sua família e amigos em filmes documentais e fictícios. Ele adora fazer isso, e sua paixão e criatividade carregam Os Fabelmans nas costas.
Tem algo muito charmoso em ver a criação de filmes pelos olhos de uma criança. Aquela solução de quebra-cabeças, de como recriar violência ou cenários fantasiosos de forma crível e sem machucar ninguém. Ora, é justamente daí que Os Goldbergs e obras como Rebobine, Por Favor extraem boa parte do seu humor fofinho. E Os Fabelmans também tem muito disso.
Entre as presepadas cinematográficas do Sam, também acompanhamos os dramas, conflitos e alegria da sua família ao longo de alguns anos. Eu me identifiquei com o filme em muitos aspectos, inclusive com essa parte dramática, mas como o crítico imparcial que nunca fingi ser, devo dizer que é justamente nos rolos familiares que Os Fabelmans perde em timing, se tornando longo e arrastado.
A IDENTIFICAÇÃO
Sabe, desde que eu era criancinha, sempre soube que era uma pessoa criativa. Porém, só mais recentemente, comecei a entender o que isso significa. Ser criativo não é apenas gostar de criar piadas, narrativas e outras coisas que eu vivo fazendo aqui no DELFOS ou em outros lugares que abrem espaço para minhas baboseiras.
Ter uma personalidade criativa afeta muitos aspectos da sua vida. Eu diria que pessoas criativas são mais lúdicas, mais brincalhonas. Mas também são mais tristes e mais propensas a ansiedade. São coisas que venho pensando e analisando, não apenas na minha própria vida, mas também do que vejo em outras pessoas criativas e não criativas. Além disso, algumas pessoas criativas se dão muito bem, ganhando muito dinheiro e notoriedade. Mas a maioria de nós acaba ficando com fama de vagabundo, tendo que responder sucessivas vezes à fatídica pergunta “qual é seu trabalho de verdade?”. Afinal, criatividade não serve o capitalismo. Até que serve, big time. Mas para cada Spielberg, a humanidade tem milhares de Anvil, ou até de gente que alcançou ainda menos – quiçá nada.
Os Fabelmans, de alguma forma, serviu de confirmation bias para essas coisas que venho pensando. Os personagens mais desenvolvidos da família, Sam, seu pai e sua mãe (ele tem também irmãs, mas elas não são tão desenvolvidas) entram direitinho nesses arquétipos.
OS ARQUÉTIPOS
O pai de Sam é um engenheiro, com um trabalho “normal”, e altamente valorizado pela sociedade. Ele tem muito talento, mas seu talento é empregado em um “trade“, em um serviço muito bem pago. Já a mãe de Sam é uma pianista e cantora cujos sonhos criativos nunca vingaram financeiramente. Ela é uma artista, mas do grupo de criativos que acaba ficando em casa por não servir a sociedade de forma apropriada.
É neste meio que cresce Sam, um apaixonado por cinema, criativo e artístico. Ele quer fazer filmes, mas seu pai tem dificuldade em entender que a coisa vai além de um hobby para ele. A família até incentiva, especialmente a mãe, mas as dificuldades para ter uma carreira criativa lucrativa são muito conhecidas por todos. “É bem mais seguro passar num concurso público”, dizia o pai de um amigo meu. E isso, este desenvolvimento das pessoas criativas e seus dramas, é o que mais gostei aqui.
Sim, o cinema e a cultura pop como um todo contam muito a vida de pessoas criativas. Mas quantos documentários e cinebiografias você já viu como aquele supralinkado do Anvil, que fala de quem “quase” chegou lá? Ou de quem não chegou nem perto? A gente vê um monte de filmes, livros e obras sobre quem serviu tão bem ao capitalismo que virou sir. É o Queen, os Rolling Stones ou o Johnny Cash. Nunca tem um filme sobre o carinha que toca Legião Urbana no bar perto da sua casa. A história dele não é interessante, porque ele é só um ninguém supostamente sem talento que nunca chegou a lugar algum.
CRÍTICA OS FABELMANS E OS SPIELBERGS
Isso fez com que eu achasse muito legal o tratamento dado à mãe de Sam, e até mesmo ao amigo da família interpretado pelo Seth Rogen. São claramente dois criativos que nunca fizeram sua criatividade “vingar”. No caso do personagem de Rogen, ele até conseguiu um emprego “de adulto”, algo que pague as contas mesmo sem usar sua criatividade como gostaria. E essa é a história da maioria de nós. Afinal, se nossa criatividade não vai pagar as contas, precisamos dar um jeito de fazer isso, pois ninguém vai pagar para nós, e se não pagarmos, seremos engolidos pelo monstro das grandes empresas.
É bem claro que o Sam é o personagem que representa o Steven Spielberg. E todo mundo sabe que Steven Spielberg é uma das pessoas criativas mais bem sucedidas da história. Em outras palavras, ele serve o capitalismo muito bem, e este link comprova isso. E é por isso que essa história está sendo contada. Por causa do pequeno Sam/Steven, não por causa de sua mãe.
FILOSOFIA À PARTE
Falando especificamente do filme, e não tanto da sociedade e do que é esperado de nós, senti alguns problemas de timing e narrativa fortes no filme. Toda a parte sobre cinema é adorável e muito legal. A história da família, no entanto, segue alguns caminhos bem clichês e óbvios, que acabam sendo carregados justamente pela atuação e direção muito acimas da média.
Um exemplo sem spoilers desses problemas é a vida escolar de Sam. Isso simplesmente não é mostrado, sendo que um enorme pedaço do filme é focado na sua vida familiar e seus sonhos. Daí sua família muda de cidade pela segunda vez por causa do trabalho do pai. E de repente a escola se torna extremamente importante, mostrando o menino lidando com bullies, garotas e outras coisas tradicionais das pessoas jovens.
CRÍTICA OS FABELMANS: NÃO É IMPORTANTE, ATÉ COMEÇAR A SER
Ora, a escola não era nem um pouco importante, até que se tornou. E sim, eu sei que isso funciona como uma perfeita analogia ao que falei acima da criatividade (não serve o capitalismo, até que começa a servir). Mas não acho que foi intencional. E inclusive já senti isso, uma mudança radical de tom e narrativa, em outros filmes do diretor (A. I. – Inteligência Artificial em especial). Isso me incomodou em 2001 e me incomodou em 2023.
Os Fabelmans é, em muitos aspectos, uma autocinebiografia do Spielberg. Não sei se ele escolheu mudar os nomes (ao contrário de Os Goldbergs) para tentar ficcionalizar mais as coisas (e se encaixar melhor nas fórmulas de prêmios hollywoodianos) ou para poder negar que de fato é um filme retratando sua vida. De qualquer forma, é claramente pessoal, mas em qualidade e tom está bem mais próximo da obra recente do diretor do que de seus clássicos do passado.